Os Desprezados e os Desprezíveis

Fernando Baggio
Blog do Baggio
Published in
8 min readApr 26, 2020

Estado de Emergência! Esse é o nome de decretos de vários governos pelo mundo. Traz também o subtítulo de “Estado de Excessão”, algo que está fora do que é dito como normalidade. E assim, bilhões de pessoas no mundo se vêem fora da normalidade. Na Ásia, países não democráticos como a China impõem toque de recolher e fecham completamente cidades e regiões com milhões de pessoas. Coréia testa massivamente sua população e ninguém pode sair sem máscaras. A Europa se vê diante de um caos imprevisto, ou ignorado, e paga caro por isso.

A doença contagiosa atravessa o Atlântico e destrói argumentos populistas de líderes que adoram uma pós-verdade mas que não conseguiram destruir, ao menos dessa vez, a verdade cruel da pandemia. Nos trópicos e países tropicais o até então considerado vírus das baixas temperaturas, mostra que ele era também letal em altas temperaturas. Quis o destino, ou a ignorância (daqueles que ignoram) que das capitais mais afetadas estivesse uma das mais quentes e úmidas do Brasil, Manaus.

Com um mundo fora da ordem nunca se viu tanto grandes filósofos contemporâneos sendo incitados a falar e sendo publicados em grandes jornais. Nomes como Byung-Chul Han, Zizek, Sloterdijk, Emke, Latour, entre outros nomes de complexos pensadores aparecem em diários matutinos todos os dias para ajudar a população do mundo a refletir sobre o momento atual. Nada diferente acontece com os cientistas, igualmente desprezados. Deles, além de opinião se espera a salvação. “Deus está morto! E foi o homem quem o matou”, disse Nietzsche. Agora, é o humanismo material que é posto à prova. A ciência pode nos salvar? O filósofo questiona: mas salvar de quem? Do vírus ou de nós mesmos?

Se antes os desprezados filósofos e cientistas são chamados à foco, milhões de pessoas são postos fora dele, muito além do foco, além do centro, chegando ali na margem e sendo jogados para fora dela. Agora marginalizadas, pessoas que todos os dias saíam de casa para trabalhar obedientemente para o sistema capitalista, se vêem no escuro absoluto. A cada dia da pandemia muitos dos que antes não sabiam que estavam tão próximos da margem, hoje vêem-se fora dela. Sem acesso, sem trabalho, sem voz, gritam aos milhões sem serem ouvidos pelos poucos que comandam. Esses, que até ontem eram a classe média trabalhadora, orgulhosa de “vencer na vida”, hoje sentem-se desprezados.

Sabendo o que é viver entre a linha que divide a margem, um grupo de pessoas agora se vê mais fortemente distante do centro. Artistas de todas as áreas são um sistema a parte. Músicos, atores e atrizes, cineastas, pintores, artistas plásticos, circenses, estão, em sua maioria, numa classificação que já sugere a exclusão por opção. Aquilo que rompe, que quebra as barreiras por imaginação, que supõe transgressão, mas que, ao mesmo tempo, vive. Mas a arte é uma forma poderosa de se comunicar com o outro, com o mundo, com o interno, com o externo. O artista, humano que é, tem sede e fome, tem frio, tem medo. Por isso vive também para sobreviver. Estar dentro e fora do centro por opção é diferente de estar fora por impedimento. Se comunica, mas não mata a fome e a sede. A maioria vê o desprezo latente.

Da arte sobram aqueles que pouco tem nela sua substância, mas tiram dela o sustento. Os famosos, que pouco contribuem para as formas profundas da arte, são desejados pelos desprezíveis, porque estes sabem que se significarem a arte como apenas entretenimento, conseguem distrair o povo daquilo que a arte profunda propõe: desafiar, desobedecer, desieraquizar, desqualificar e criar novos centros. Mas enquanto o cantor desafinado e bêbado diverte aqueles que estão entediados, a arte e o artista ficam cada vez mais à margem.

Juntam-se todos aos que nascem e vivem à margem, os desprezados originais. Pretos, pobres, oprimidos, sabem que morrer por falta de água tratada, comida, infecção besta, por falta de atendimento médico, é algo corriqueiro. Os desprezados originais, matáveis, descartados. Os desgraçados do berço original. O Estado para estes não falta porque não apenas não atende, mata. Os desprezados originais são os que mais morrem por desprezo absoluto. Se gritam, se desafiam, se alertam, são imediatamente reprimidos, perseguidos e mortos pelos desprezíveis. São eles os que constituem mais de 75% dos presos no Brasil, os mais 80% mortos pelo Estado. Os que mais morrem por armas de fogo. Mas também os que morrem por falta de atendimento nos hospitais, muito anterior à pandemia. Soma-se a esse grupo, índios, ribeirinhos, desgraçados desde sempre pela ganância e poder dos desprezíveis.

Se o novo desprezado agora está em casa sem ter como ganhar dinheiro, com risco de fome, ou já com ela. Se viu um parente morrer por falta de atendimento, sem leitos em UTIs, ou sem ventiladores disponíveis para ele, bem vindo ao mundo dos desprezados. Os desprezados originais sempre viveram e morreram assim. Pode ser que seus filhos agora estejam com muitas dificuldades para receber aulas em casa. Pode ser que ele não acompanhe. Pode ser que o novato do além-margem esteja trabalhando de casa, com redução de rendimentos superiores à 50%, e veja uma sobrecarga inacreditável para lidar com seu trabalho, mais a educação do filho, mais a comida por fazer, a casa por limpar, um chefe irredutível e incompreensível. Ele reclama, grita e ninguém ouve. Na verdade, todos que ele conhece estão assim também. Quando uma multidão grita sem saber o que fazer e seu grito não ecoa, não chega a “ninguém”, ele é um desprezado.

É possível que esse novato esteja recebendo a “bolsa família Covid-19” de 600 Reais que o governo deu depois que a oposição conseguiu aprovar essa quantia, ao invés dos 200 Reais pretendidos pelo governo. É possível que esteja reclamando dessa pequena quantia que não dá pra nada. É possível também que ele já tenha criticado o Bolsa Família, que não chega a 200 Reais para as famílias mais pobres do país. Tenha dito, pensado ou concordado que esse dinheiro (o seu dinheiro) não deveria ser destinado “a esses vagabundos” porque eles nunca irão querer trabalhar. Agora fica indignado com a falta de assistência dos desprezíveis e a incapacidade de poder ir trabalhar. Vê-se dependente do governo. Deseja mais assistência, mais cuidados, mais Estado. Talvez agora o novo desprezado consiga entender o que é “incapacidade de ter um trabalho”. Porque os desprezados originais já nascem com ela por razões que precedem qualquer pandemia. Talvez agora você, um novo desprezado, entenda melhor.

Os desprezíveis, por ora, contam com tudo. Eles ocupam o centro. Ocupar é uma palavra que talvez você já tenha desprezado, mas ela sempre foi um conceito político e por isso você nem mesmo tenha sabido tratar disso dessa forma. Os desprezíveis sempre souberam como conceito primordial o que significa a palavra ocupar. Quem ocupa domina o que ocupa. Os desprezíveis, então, ocupam o centro hegemônico. Ali, ditam o que é e o que não é. Também deixam claro o que jamais será. Eles disputam o centro, mas só com quem já está no centro. Essa é a ilusão da democracia. Sempre uma troca entre os desprezíveis.

No início da pandemia chegamos a tratá-la como uma forma “democrática” de contágio e letalidade. Até pode ser, mas como na democracia social, são as margens, os desprezados que sofrem mais e primeiro. Se chegar no centro é porque tudo já foi destruído à sua volta. O vírus chegou ao Brasil através dos que tem mais dinheiro. No Brasil ele chegou da Europa, centro de poder colonizador. É irônico pensar agora nessa colonização viral. Era para ser um vírus da elite, ao menos era o que se imaginava. Não foi.

No Brasil a pandemia mata mais os desprezados. Mais e mais rápido. Os hospitais de campana foram erguidos nos bairros nobres da capital paulista, a mais poderosa força econômica do país. Mas a maior quantidade de covas abertas foram dos cemitérios das margens. O cemitério da Vila Formosa, em São Paulo, centenas de covas estão já prontas e sendo ocupadas. O número de mortos por Covid-19 entre os moradores do nobre bairro do Morumbi e da Vila Brasilândia, periferia da zona norte de São Paulo, é abissal. Mas o que chama atenção é a letalidade. Morumbi tinha até dias atrás 297 casos positivos para Covid-19 e 7 mortos. Já na Brasilândia eram 89 casos confirmados e impressionantes 54 mortes (Fonte: G1)

Nasceu na Ásia. E isso só foi relevante para a disputa do centro, onde as narrativas incorrem em fantasias do inimigo comunista contra o amigo capitalista. Mas é o amigo capitalista que aconselha você, da margem, a injetar desinfetante em si mesmo para se curar. É como um messias que sugere suicídio coletivo como forma de salvação. Ou um líder que incentiva a explosão do próprio corpo para levar consigo impuros pecadores. Assim agem os desprezíveis.

Os desprezíveis agem para manter os desprezados exatamente assim: desprezados na margem, longe do centro. Talvez agora você esteja se sentindo assim. Talvez agora você possa criar um pouco mais de empatia pelos desprezados originais. Talvez você esteja finalmente calçando os sapatos deles. Talvez você dependa até mesmo da caridade, empatia e solidariedade dos desprezados originais para sobreviver agora, pois pode ter aprendido uma lição importante: os desprezíveis se odeiam, odeiam a todos, e vivem em guerra, disputa. Já os desprezados originais, se ajudam para sobreviver longe do centro tendo como principais inimigos os que o centro ocupam, os desprezíveis.

Por fim, talvez nenhum filósofo ou cientista tragam as respostas que desejamos. Talvez essas respostas, ou ainda as melhores perguntas devam ser feitas à margem, bem longe do centro, daqueles que desprezam. Será lá, entre os desprezados originais, que talvez encontraremos as formas próprias de um futuro longe o grande círculo e das engrenagens do poder capitalista. Talvez venha do Emicida, do Krenak, ou de um menino que te aclame quando você estiver com fome e desesperado. Talvez, se tudo der errado, terá enfim dado certo.

Você sonhou em ser um desprezível, mas sempre foi muito mais próximo da margem, sempre esteve mais perto do que agora é, um desprezado. Bem vindo. Agora acorde e lute.

--

--

Fernando Baggio
Blog do Baggio

Sou músico, educador, estudante de mestrado em Artes da Música e amante e filósofo amador. Adoro escrever sobre política, futebol e coisas que o inspiram.