Paredes do Infinito

Fernando Baggio
Blog do Baggio
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4 min readOct 22, 2022
"O Infinto"(2004, José Barrias)

Era um lugar. Era até mais que isso, era um habitat. Não passava de 35 metros quadrados, certamente, com parede espessa para segurar o som e o frio, mas era como um planeta inteiro ali. Talvez pela extensa estante de livro, muitos deles com muitos marcadores dentro deles, rabiscos e anotações que, quase certo, pouco ou jamais seriam lindos novamente. Como era certo de que muitos livros ali jamais seriam lidos ou acessados. Uma estante de livro é sempre um Ntu, um universo, um habitat em si, um ser-aí.

Próxima à estante, a manta quentinha na ponta do sofá a um braço de distância da larga poltrona de leitura, só não tão facilmente alcançada quando as pernas estavam esticas em um puff preguiçoso à frente da poltrona. Certamente, mais fácil de agarrar era a xícara de café (ou chá) na mesinha de apoio. Para essa distância cabia apenas o cuidado de não esbarrar e mandar o líquido ao taco de madeiras inteiriças. Perigo que espreita sempre em uma sala nem sempre tão iluminada. As luzes amareladas — exigências de uma vida — eram distribuídas em opções que íam do teto à numerosos candelabros. Havia só uma opção de forte luz branca, usada somente nas emergências das limpezas.

Contraste com a pequena cozinha que às vezes parecia clara como o caminho aos céus. Nenhum dedo poderia ser riscado por uma faca por causa de luzes opacas. A cozinha precisa sempre ter boa luz, sob o risco de não haver ninguém que pudesse cozinhar. É verdade que nela não havia muito mais que cafés, chás e tostas que fossem feitas. Tapiocas e um quentinho pão de queijo saiam, por vezes. Por norma, entretanto, ali não era sítio de grandes preparos alimentares. Naquele universo particular, apenas para aquecer o estômago e manter a alma em pé, servia a cozinha.

O pequeno banheiro era ainda mais da ordem prática. Não se espante, nem todo banheiro serve apenas às necessidades práticas da fisiologia humana. Em outros ambientes, o banheiro é refúgio. Não ali. Embora fosse nesse cômodo o lugar em que havia mais verdes. As plantas e pequenas decorações, como um pequeno quadro de 15x10 com uma imagem tão profunda de um longo caminho adentrando uma floresta tão densa que não seria possível ir tão longe dentro dela não fosse por aquela imagem.

À pequena cozinha confere a claridade para além da luz artificial da casa, dada pela exuberante janela, de grossos vidros mas de reluzência aguda, onde uma pequena vegetação pode ser vista — obra da vizinha zelosa ao seu jardim, pequeno paraíso dela, refúgio dos olhos dele — e um horizonte em que se contempla todas as possibilidades do tempo, a saber, chuva ou límpido azul, revoadas de pássaros ou distantes aviões. Universo esse separado pela mais densa porta, útil e fundamental para isolar o poderoso com de tambores sempre que preciso.

Na cumprida sala, extremada ponta inversa ao confortável sofá e estantes de livros, monta-se uma espécie de santuário, um templo cujo o altar não é recoberto de santos e entidades conhecidas pelas religiões. Cabe ao canto sagrado um instrumento musical. São engraçadas as formas de sentir Deus. Diria até, sentir-se Deus, criador e criatura sob a mesma pele. Deus em pele é alma que cria, força que imagina e produz. Talvez seja a pele que limita a capacidade de criar, já que nela está também toda a atrofia da expansão infinita. Pela música, vibração que consegue “furar a pele e a palavra”, a capacidade de viajar para o inexplicável traz de volta consigo aquilo de dentro não há.

Aquele móvel - obra de arte esculpida à mão, uma bateria- reflete a baixa luz da sala e seus pontos de luz expelidos pelo metal das canoas e aros do instrumento, potencializados pela sua cor dourada, flexionam a camada de sobras espalhadas até abaixo da mesa com suas parafernálias tecnológicas, seus botões coloridos e faders austeros que servem senão para dar mais pressão sonora ao ambiente. Constraste com a delicadeza do robusto piano de armário, velho mas imponente, acomodado próximo à bateria, como um ancião do tempo a cuidar do devir. Nem aquelas câmeras e microfones todos, cada um escolhido cuidadosamente para captarem sons e movimentos executados, serão capazes de traduzir o que os olhos fechados sentem. É preciso fechar os olhos para não deixar escapar a imagem mais profunda, indescritível, portanto, mas pontente o bastante para querer sair com a força de um tufão e experimentar os rostos outros como brisas frias e quentes. São os poros todos em ristes que denunciam que algo muito dentro de si já não pode ali ficar.

Nem tudo precisa registrar, divulgar ou contar. A essência desse lugar, digo, desse Ntu, universo, habitat, é o silêncio do dizer. Não é preciso dizer quando tudo que está presente já está dito por si. A completude é um infinito do devir eterno. A xícara dá sinais que o chá vai esfriar. Hora de parar um pouco e dar um gole…

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Fernando Baggio
Blog do Baggio

Sou músico, educador, estudante de mestrado em Artes da Música e amante e filósofo amador. Adoro escrever sobre política, futebol e coisas que o inspiram.