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Direitas e Esquerdas brasileiras

Fernando Baggio
Blog do Baggio
8 min readMay 10, 2018

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Já há muito tempo ouço o tal de direita e esquerda, mas nos últimos anos, especialmente depois de 2013, a coisa se acentuou. Muitas vezes na forma de acusação: “você é esquerdista, você é direitista”. Aí começaram a surgir os apelidos jocosos, agressivos, petralhas, coxinhas, esquerdopatas, mortadelas, e nunca mais parou. Foi ainda reforçada pelos memes, piadinhas curtas feitas por foto e montagens, tentam ser uma espécie de aforismos da modernidade, sem, no entanto, alcançar nenhuma profundidade.

Sem ter estudado isso, a não ser nas longevas aulas de história da Revolução Francesa com o prof. Paulo em São João da Boa Vista, lá no século passado (sem exagero), fui pesquisar. Queria saber mais sobre o que define políticas e ideologias de direita e esquerda para saber onde eu me encontrava, onde os governos se situavam, onde os partidos militavam, e onde chegariam essas políticas caso vencessem.

Descobri que há um grave erro já de início: todas as definições de direita ou esquerda no mundo não se enquadram no Brasil. Parece haver um problema de contexto em tempo e espaço que simplesmente é ignorado no Brasil. Acredito que para maior parte da população essa ignorância é normal, já que não estudamos isso adequadamente. Mas para os profissionais da política, sejam os políticos, sejam os jornalistas que cobrem política, sejam os cientistas políticos que escrevem colunas por aí, parece ser proposital a construção desse limbo.

Origem

A origem dessa divisão acontece na Revolução Francesa (1789–1799). A França era um país de monarquia absolutista há séculos. Um levante popular arruinou a monarquia em três anos. Mas as discussões foram intensas durante esse processo dentro do Parlamento francês. A casa ficou dividia, e essa divisão ficou marcada também fisicamente: ao lado direito da cadeira do presidente da casa estavam os que apoiavam a monarquia, e ao lado esquerdo os que apoiavam a república. Isso mesmo, assim foi criada a divisão “direita/esquerda”.

Muito antes, portanto, de Karl Marx, só para mostrar a confusão que se faz hoje. Também não vou entrar nos detalhes da Revolução Francesa, mas se quiserem revisitar essa história poderão concluir que a chamada esquerda da época foi muito diferente da esquerda que veio depois de Marx, por exemplo. Se parecia até muito mais com a direita de hoje. E a direita francesa era monarquista, ou seja, bastante diferente da de hoje.

Direitas e Esquerdas

Há muitas direitas e muitas esquerdas na história. É correto relacionar os espectros políticos ideológicos com o tempo em que ocorreram e o lugar em que estavam, ou estão. Talvez o erro mais comum é nos referirmos a esses espectros no singular. Porque eles são mais que plural, eles são múltiplos, multifacetados, totalmente inseridos no cotidiano do lugar em que estão.

Pra começar, o comunismo. Toda vez que essa palavra surge causa frisson. A origem do comunismo vem antes do estudo profundo sobre sociedade européia do século XIX, feita por Karl Marx (1818–1883) e Friedrich Engels (1820–1895), como eles mesmo apontam. Porém, é com eles que o termo atual fica conhecido. Eles fizeram muito mais do que escrever uma cartilha, como parecem muitos imaginar. Criaram um estudo profundo sobre classes, divisão social e o capitalismo. Não se pode, de forma alguma, negar a importância de seus pensamentos. Não é à toa que são considerados entre os maiores pensadores da história. As criticas proferidas a eles passam bem longe do que de fato seus pensamentos estabeleceram. Acredito ser muito difícil alguém ter lido “O Capital” de Marx, por exemplo.

Também não vou falar sobre o conteúdo específico do pensamento de Marx e Engels. Mas é importante destacar que quando a União Soviética implementou seu comunismo na Revolução Russa de 1917, Marx e Engels já haviam morrido há anos. Claro que a Revolução Russa contou com os pensamentos de Marx para realizar sua revolução. Mas o que se viu após a concretização da revolução pouco se aproveita dos estudos originais do comunismo. Rússia, China e todos os outros país que implementaram governos comunistas não conseguiram chegar ao cabo do processo descrito por Marx. Todos acabaram se revelando governos ditadores e autoritários. Em suma, todos falharam miseravelmente marxianamente falando.

Hoje há quem difere (e gosto disso) o marxismo do marxiano. Quem descreve isso muito bem é Raymond Aron. O Marxista se atém à luta de classes, à tomada do poder, à disputa por ele. O marxiano se atém aos estudos da sociedade, suas distorções, seus desequilíbrios, enfim, aos problemas sociais causados pela diferença de classes e acúmulo de capital (até mesmo pelo Estado dito marxista).

Pelos problemas todos que surgiram nos governos revolucionários comunistas do início do século XX, muitas outras formas de governo e de política foram surgindo, derivando-se mais ou menos dos ditos comunistas marxistas. Entre eles os socialistas e os social-democratas. Esses espectros foram se distanciando dessa origem comunista e dialogando mais e melhor com um mundo cada vez capitalista e globalizado. Criaram governos que tornaram seus países seguros e equilibrados socialmente. Muitos tiveram problemas na economia. Governos assim tendem a gastar muito para prover mais. Mas os tempos modernos também vêm trazendo um novo modelo econômico para alguns países, de forma a serem mais sustentáveis.

Já a direita tem elo forte com a economia, com o dinheiro, com o capital. Seus principais textos vem de uma escola chamada de Liberalismo Econômico. Desde Adam Smith(1723–1790), autor dos estudos mais importantes sobre o liberalismo, passando por John Keynes (1883–1946) Friedrich Hayek (1899–1992) — o economista principal da Escola Austríaca — até a Escola de Chicago (pós crash de 1929, onde foi criado o New Deal) e o neoliberalismo (já pós Segunda Guerra encabeçados pelos Chefes de Estados Ronald Reagan e Margareth Thatcher), a direita é desenhada por economistas, basicamente.

Suas idéias são centradas no mercado, na produção e no crescimento. Hayek também fez um estudo sobre o totalitarismo nos Estados comunistas e mostrando como um Estado absolutista tende a gerar acúmulo de renda e poder e, portanto, com desigualdade enorme.

Para as direitas liberal e neoliberal o Estado deve ser mínimo, o mercado deve ser livre e que o mesmo se auto-regula, há o direito da propriedade privada, e tudo deve ser produzido pelo capital privado, cabendo ao Estado ser apenas o administrador do seu povo (seja lá o que isso queira dizer).

O surgimento das grandes instituições financeiras no século XX marcam também o início de uma nova era. E essas instituições tem papel fundamental pós Segunda Guerra com o Plano Marshall, que socorre a Europa e o Japão com bilhões de dólares emprestados.

Ainda há a direita conservadora, mais ligada aos costumes e moral cristã. Essa direita tem propósitos bastantes controladores dentro da sociedade e tenta impor regras e normas para padrões sociais que julgam ser o correto. É bastante autoritária e truculenta.

O que é contraditório é que a Igreja Católica no Brasil tem papel fundamental na criação do PT, por exemplo. E sempre esteve mais ligada a lutas sociais do que os valores e preceitos da direita conservadora. Mas a direita conservadora também não se resume à moral cristã. Ela também é bastante aristocrática e tem valores aliados aos antigos valores medievais, por exemplo. Embora, hoje em dia, nada disse se enquadraria de fato.

Brasil

No mundo as características de países regidos por governos essencialmente de direita ou essencialmente de esquerda em nada se parecem com o Brasil. O Brasil é, do ponto de vista mais ortodoxo, uma verdadeira bagunça ideológica. Seus governos e seus partidos, especialmente pós retomada da democracia em 1985, não podem ser definidos como direita ou esquerda. Todos eles praticaram governos com Estado gigante e altíssimos impostos (características de esquerdas) ao mesmo tempo com liberdade de mercado, capital privado e alto acúmulo de renda (direitas). Tem uma combinação de Estado provedor -ainda que é muito mal provedor, embora os gastos sejam dignos dos melhores Estados do planeta nesse sentido, mas a entrega esteja entre os piores — e sistema de mercado globalizado com multinacionais e mega instituições financeiras.

Se analisarmos os Governos mais longevos dessa nova República brasileira, FHC e Lula, veremos mais semelhanças entre eles do que diferenças. Embora haja muito esforço de seus partidos para publicitarem as diferenças — quase sempre com ataques e acusações de parte a parte — esses partidos tem até origens parecidas. O PT nunca foi comunista e o PSDB nunca foi neoliberal. Tanto o PT quanto o PSDB quando chegaram ao poder tenderam mais à direita, e fora dele PT voltou-se mais à esquerda (pelo menos nos discursos) e o PSDB mais à direita (vide seus novos quadros). Ambos firmaram acordos com a direita brasileira mais tradicional, ambos criaram facilidades para grandes empresários e poderosos, ambos também criaram políticas sociais importantes, ambos mantiveram o Estado enorme, e por aí vai.

Não é por acaso que analistas dizem que não há partidos nem de direita e nem de esquerda no país. E jamais houve governos de direita e de esquerda na Nova República. Talvez precisemos enquadrar direita e esquerda sob as características do Brasil. O que chamamos aqui de direita e de esquerda tem características bastantes peculiares, como demonstrei. Não faz sentido defender (ou acusar) aqui no Brasil o neoliberalismo e o comunismo. Talvez aqui estejam todos mais ao centro. Mas até o momento todos ajudaram a manter intacta as grandes fortunas (ou ajudaram a crescer), manter intactas as poderosas famílias e as poderosas instituições pertencentes a elas.

É, portanto, bastante infantil dizer que a esquerda se resume aos exemplos de Cuba, URSS, China, Coréia do Norte e Venezuela, e que a direita se resume aos EUA. É medíocre acusar alguém de nomes como marxista. Até porquê não se sabe do que está falando. Tanto a direita e seus planos econômicos, quanto a esquerda e suas políticas sociais, puderam trazer contribuições bem como arruinaram algumas nações. Mas aqui no Brasil, nem uma nem outra operaram tradicionalmente. Nem mesmo os militares do Golpe de 1964, financiados pela direita americana contra o eminente comunismo, foram de fato um governo de direita. Muito pelo contrário, eles foram um governo de Estado totalitário, regime fechado, mercado fechadíssimo. Foram sim conservadores, mas jamais liberais. Embora foram, antes de tudo, combatentes raivosos da esquerda comunista.

Então, é melhor que analisemos nossas falas e acusações sobre um e outro, ou mesmo se nossas crenças e ideologias são realmente representadas pelos partidos e candidatos que apoiamos. Porque nada disso até o momento parece ser próximo da realidade. As brigas de redes sociais e as discussões sobre política muitas vezes parecem estar falando de algo do século XIX que jamais passou perto de existir por aqui. Sem entender o que somos, fica muito difícil apontarmos para um futuro. Muito difícil.

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Fernando Baggio
Blog do Baggio

Sou músico, educador, estudante de mestrado em Artes da Música e amante e filósofo amador. Adoro escrever sobre política, futebol e coisas que o inspiram.