Por Solidaridad

Um médico cubado em terras tupiniquins

Fernando Baggio
Blog do Baggio
8 min readNov 18, 2018

--

– Papai!! — disse Yoran, ao ver seu Ibraim chegar em casa após 7 meses longe, correndo imediatamente para o seu colo. O reencontro entre pais e filhos deve ser igual em todo lugar do mundo, pesou Liset, a esposa e Ibraim. Claro, ela própria não continha a felicidade de vê-lo. “Está tão lindo, mas emagreceu”, notou.

Yoran desceu de seu colo e foi correndo pegar um cartão que havia feito para o seu pai em comemoração ao dia dos pais. O cartão era muito bonito, feito em cartolina vermelha. A escola em que estudava Yoran havia promovido uma exposição para os dias dos pais onde todos os pais foram vê-la e ao final poderiam levar para casa o cartão que seus filhos haviam preparado. O de Yoram quem levou foi o avô. Ibraim ainda estava em missão no Brasil à época e só pode ver o cartão pela internet uma semana depois. Mas era recompensado com a alegria de Yoran em poder mostrar naquele momento. Ibraim não deixara por menos. Trazia para Yoran um carrinho muito bonito, cinco livros de contos brasileiros e alguns gibis. Apesar da pouca idade, Yoran já amava leitura.

– Filho, estes gibis são brasileiros e são os mais famosos lá”, disse Ibraim mostrando os personagens divertidos da Turma da Mônica, disse, Ibraim, entregando os coloridos gibis ao filho.

Yoran se divertiu com os gibis e fazia observações como “eles tem rotos redondos assim no Brasil, pai?”, “Que legal, as casas deles ficam em um vilarejo com ruas de terras e muito gramado”, entre muitas outras observações. Seu pai disse que iria usar os gibis para ensina-lo a falar português. Ele ficou empolgadíssimo com a idéia.

Liset estava terminando o almoço que era um verdadeiro banquete, El Congrí! O cheiro daquele prato com feijões vermelhos e carne de porco estava contaminando toda a vizinhança. Ibraim estava ansioso para prova-lo.

– Nada traz mais memória afetiva de um povo do que o cheiro da comida antiga — disse Ibraim para Liset, que retribuiu entendendo perfeitamente o afeto de suas palavras.

Claro, Liset jamais havia deixado a ilha, mas seu marido já havia morado na URSS, e trabalhado em muitos países pelo mundo. Enquanto conversavam, até de forma atropelada (coisa típica de quem tem muito assunto para colocar em dia, especialmente quando se tem na conversa um guri de 7 anos), algumas palmas foram ouvidas do lado de fora. Era dona Vilmares, a vizinha que trazia um bolo para oferecer ao ilustre vizinho que chegará. O carinho não era por menos, Ibraim era homem importante.

– Um bolo para nosso herói, disse dona Vilmares quando ele chegou à porta (que já estava aberta, como de costume).
- Não me trate assim, senhora Vilmares, fico envergonhado — respondeu Ibraim, já meio encabulado.

– Sim, Ibraim era um herói para aquele povoado em que vivia sua família. El Brujo tinha poucos habitantes, mas a proximidade com Santiago dava ao povoado ares de cercania da grande cidade cubana. Embora seu povo gostava mesmo era da vida no povoado. Afinal, menos de 200 pessoas vivem ali. Ibraim conhecia cada uma delas. Mais do que isso, foi médico de todas elas, praticamente. Muito embora não seja o único médico do povoado, longe disso.

– Ibraim é um homem incrível, Liset, temos muito orgulho desse nosso filho — disse a ainda empolgada Vilmares. Enquanto falava entrava pela porta o senhor Daris.

– Sua benção, meu pai, disse Ibraim ao vê-lo.

– Meu filho! — exclamou o senhor Daris, emocionado ao ver o filho.

Mal teve tempo de ver o filho e o neto já corri para dar um abraço no vovô. Yoran estava louco para mostrar os presentes que ganhara. Todos em festa, mas para completar faltava sentar-se à mesa. Almoço pronto.

Durante o almoço, todos perguntam sobre o Brasil. Ibraim esteve em uma cidade no norte do país, no estado do Pará, e conta que o país é muito grande e tem uma cultura muito diversificada.

– A cidade tem cerca de 20mil habitantes e só havia três médicos, todos cubanos — contou para a surpresa de todos.

– E não havia como atender a todos os doentes mesmo que eu trabalhasse 24h. E ainda havia os índios, que moram em aldeias afastadas da cidade e sem nenhuma assistência médica. Disseram-me que antes de eu chegar até lá estavam sem médicos havia 3 anos, e todos que foram antes não ficaram nem 2 meses. Agora não sei como ficarão — externando uma real preocupação.

Ibraim mostrou como isso o chocou. Não era parte de sua consciência social ver pessoas sem atendimento médico. Mesmo em El Brujo, com seus menos de 200 habitantes, havia pelo menos 6 médicos. E nunca viu ninguém ficar doente sem ter um médico por perto.

– Sim! Em Cuba temos a felicidade de ter um governo que nos dá o que precisamos para podermos criar nossas famílias, estudar e trabalhar — completou senhor Daris.

– E lá no Brasil, apesar de ser um povo muito amável, há muita confusão. Sabem pouco sobre nós e o que sabem foram os americanos que contaram. Acham que vivemos em um país muito ruim. Mas é triste ver como sofrem lá e nem imaginam a vida que temos aqui — comentou Ibraim

Ibraim sabia das dificuldades e todas as limitações impostas pelo governo de seu país ao seu povo. Ele tinha plena consciência do controle que o regime das Castro mantinham na ilha. Mas a vinda ao Brasil o fez refletir mais sobre esse controle.

– Dizem que não temos liberdade em Cuba. Pois digo que temos mais liberdade que qualquer brasileiro. O Brasil, país mais capitalista em que já estive, tem liberdade para falar, tem internet, podem criticar o governo, ir às ruas, fazer greves, podem fazer tudo isso. Mas não tem liberdade. Eles precisam trabalhar e nada do que façam é o suficiente para alimentar suas famílias ou dar moradia a elas.

Ibraim tinha uma impressão positiva do Brasil, na verdade, passava uma idéia encantada de um país muito miscigenado que poderia parecer ao mesmo tempo com Cuba e com EUA, tinha pobreza comparada à Somália, onde o médico esteve em missão anos antes, e riqueza comparada aos xeiques árabes. Mas ele pensava em um povo humilde, bastante sofrido.

– É diferente a cultura deles. É um país que vive na esperança e isso é estranhamente triste. Porque nunca se vive o presente, não se discute a realidade, mas sempre pensam que o amanhã será melhor sem saber ao certo o que querem para o amanhã — disse, reflexivo, Ibraim, que detinha a atenção de todos.

– Não se pode viver para o futuro se não sabe viver o presente. Isso é loucura — disse o velho senhor Daris.

– Sim, papai — assentiu, Ibraim.

Enquanto via seu filho brincar com o carrinho novo em uma mão e tentar decifrar as palavras em português em outra mão, Ibraim pensou que talvez a ausência do presente na vida dos brasileiros fosse, pelos menos em parte, causada exatamente pelo excesso de distrações. “Seria possível que esse povo tivesse mais capacidade de viver o presente se não houvesse tantas coisas para distraí-los dele?”, pensou.

– Você conta com muita alegria sobre o Brasil, mas me contou que eles não gostam da gente. Como é isso? — perguntou Liset, ao mesmo tempo encantada pela compaixão do marido, mas resistente com a idéia de amar um povo que te odeia.

– Eles não nos odeiam. De fato, eles não nos conhece. São dominados pelas idéias dos americanos e nos chamam a todos de comunistas, como se isso fosse um crime — sorriram todos.

– Eles são apenas ignorantes em relação ao nosso povo. Acham que somos todos vitimados por um governo autoritário comunistas, mas não fazem a menor idéia do que é a vida aqui. Jamais conheci um brasileiro que tenha vivido em Cuba. Conheci um médico que me disse que esteve em Havana uma vez. Elogiou a beleza, mas finalizou que nunca viu um país tão atrasado — completou, Ibraim.

– Atrasado?! — senhora Vilmares, perguntou em tom de indignação

– É que eles julgam assim, senhora. Eles pensam que toda a tecnologia, os carros, toda a industria que eles têm disponível, dá a eles uma vantagem na evolução social. E, claro, isso é muito diferente daqui. Eles podem ter tudo na sociedade. Mas a verdade é que poucos têm tudo e a maioria não tem nada e só trabalha uma vida para ter um pouco. Pior, quanto mais se trabalha e tem coisas materiais, mais precisam trabalhar para manter aquilo. É um pensamento muito injusto com o ser humano. Ele precisa ter coisas materiais para ser respeitado. Só que nunca vão ter o suficiente. É um escravidão — completou, Ibraim

– Isso me dá pena. Parecem não entender o que é a vida sem esses julgamentos das coisas materiais — Liset, disse com um pesar profundo.

– Sim, não vivemos em um país perfeito. Não sei se há um. Não temos acesso a todas as coisas. Nos falta o básico, muitas vezes. Claro, sabemos que isso também é culpa desse embargo americano. Mas tenho uma certeza, não há nada mais importante do que o que temos aqui. Nossos filhos tem educação garantida, nós temos moradia garantida, todos temos a melhor saúde, e temos alegria do dia-a-dia. Não trocaria isso por uma sociedade que pensa como pensa essas sociedades capitalistas. É muito individual, falta socialismo, que é uma forma real de compaixão e igualdade. Só fomos para o Brasil porquê os médicos de lá, que são ótimos, não querem atender o seu próprio povo. Na cidade que fiquei tem um médico nascido lá, mas que foi estudar medicina e nunca mais voltou, “quer ficar rico”, dizem seus antigos amigos. Isso eu nunca irei entender. Mas respeito. É diferente da gente. Mesmo assim, é um povo incrível que levarei em meu coração para sempre.

Sob os olhares atentos e emocionados de todos, Ibraim deixava claro porque era tido como um herói. Seu pai se emocionou com as palavras de seu querido filho. Ao fundo começa o som de uma salsa bem ali próximo, a música não poderia faltar na volta de Ibraim. Em frente de sua casa, já jogavam cartas seus amigos. Ibraim mal podia esperar para ir juntar-se a todos.

– Cuba é mesmo um lugar mágico — disse Ibraim na mesa onde todos assentiram com as cabeças.

--

--

Fernando Baggio
Blog do Baggio

Sou músico, educador, estudante de mestrado em Artes da Música e amante e filósofo amador. Adoro escrever sobre política, futebol e coisas que o inspiram.