Vazio

Os significantes em haicai, dança e Manuel de Barros

Fernando Baggio
Blog do Baggio
5 min readOct 23, 2022

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Às vezes sinto vontade de escrever coisas sem conexão ou sem explicação. Não exatamente sem explicação, ou mesmo sem conexão, mas que assuma a possibilidade da palavra ser “mundo”. Como os textos haicai, ou além, como o pensamento que vagueia com um misto do que os olhos vêem e o que a mente pensa. Ou ainda, aquilo que a alma sente e não sabemos nem de onde e nem como explicar, e nem é preciso.

Usamos metáforas para tentar fugir às definições das coisas. Uma árvore não pode ser como a outra e sua beleza está em coisas inomináveis. Um nome, por forte que seja, aniquila um universo de outros nomes. A força do sentimento é brutalmente reduzida ao ser capturada pelo conceito. O conceito esfria, a razão embrutece, mas a loucura liberta. Por isso a poesia e a literatura podem repor as asas dos sentimentos através das palavras. Meu cérebro quer organizar para sentir, mas minha alma quer o justo contrário, quanto mais sentir, menos organizar, mais vontade de vida terá.

Acordo pela manhã, nessa época do ano, antes dos primeiros raios de sol. O nascer e o pôr do sol trazem essa vontade de loucura. Desde muito pequeno sentia que meu amor pelas montanhas da Serra da Mantiqueira era efêmero, impossível de fato, ou ao menos como eu gastaria que fosse. Vendo aquelas montanhas à distância, em perspectiva, sentia-me um gigante e tinha vontade imensa de abraça-las, talvez me deitar sobre elas como se fossem elas um denso edredom, só que muito mais especial. Sentia vontade de sentir seu cheiro, beijá-la como quem beija uma delicada flor. Quando mais perto chegava das montanhas, mais elas desapareciam. Na impossibilidade de tocá-las como gostaria, jamais poderia fazer outra coisa dentro desse sentir que não apenas o sentir da minha imaginação. O sol e seu gigantesco esplendor faz que eu o ame tentando não dar nomes aos sentimentos e sensações.

É no ritmo que um poema se encontra em completude. É no jogo de palavras e sons que ele transmite além de um sentido racional o que quer ele dizer. O haicai, segundo Byung Chul-Han, não precisa sequer querer dizer algo a alguém. Ele diz muitas coisas e cada um entenderá de uma forma. É o ritmo que interfere nas sensações. Ritmo…

Somos capazes apenas de traduzir coisas em palavras. Sentimentos são traduzidos e empobrecem. Todas as coisas perdem complexidades em nossas traduções. E na nossa profunda arrogância de achar que entendemos as coisas, esvazia-se a possibilidade de sermos parte. Já não somos mais parte do mundo, já não somos mais o mundo. Somos apartados dele por meio da razão e das definições. Quando nomeio algo torno-me logo senhor daquilo, dono, estou acima. Aquilo não é capaz de contradizer-me, não é capaz de defender-se. Sou eu, logo, o senhor daquilo e daquele outro e do mundo. Mas é o mundo que ri-se de mim.

Está em Manoel de Barros meu encanto e curiosidade pelas suas não-palavras que (não) nomeiam as coisas. As coisas na poesia de Barros são livres de objeto, mas nem por isso elas se tornam não-coisas. Elas continuam a ser coisas, mas livres de significados. Quando libertam-se de significados, ganham todo o poder de significantes. A ingênua malícia das coisas sem palavras fazem-nos sentir, apenas. Na graça de coisas serem livres de significados, tornam-se elas atores da vida, e faz-se, então, a perfídia das coisas" (Byung Chul-Han). Resignados diante de uma absoluta falta de capacidade de compreendermos, aquilo torna-se o vazio, e nele reside a criação verdadeira.

Certos espetáculos de dança mexem profundamente comigo. É uma arte que tento não entender, não explicar, não racionalizar. Corpos que mexem-se por uma força que não sou capaz de racionalizar, mas que mexe também comigo. Corpos que parecem trágicos e eróticos, aprofundam gestos que não sou capaz de traduzir. Suas luzes e sombras, com movimentos que, como um poema haicai, não são outra coisa senão ritmo e significantes, emparedam meu olhar já petrificado, aumentam meus batimentos cardíacos e, já sem o recurso da palavra, sinto. Sinto pelos poros, pelos olhos, suor, lágrima, pernas a bater como se estivessem lá no palco. É nesse vazio da palavra e da razão que meu universo cria. A dança não cabe palavra.

Uma vez fiquei mais de uma hora em frente a uma pintura de Rembrandt. Eu não queria dizer um único adjetivo sobre ela. E nem agora quero, mesmo diante do paradoxo de escrever sobre isso. Naquele momento uma vida aconteceu ali. Deu-se vida à força das pinceladas densas do artista em um de seus auto-retratos. Cada contraste de cores, sua densa textura fazia ter sobre mim a capacidade de não pensar naquilo como uma pintura em um quadro. Além, era real. Capturado por um profundo olhar, sentia-me quase que constrangido por invadir aquele espaço. Era a primeira vez que eu me entregava a uma obra de arte integralmente. Sentia-me frente àquela situação no mais profundo desconhecido, vazio. Estive pleno, quase envergonhado, sabe-se lá porquê. E é nesse "não saber o porquê" que a palavra falta e não faz falta, dando lugar ao sentir.

O mundo é menos explicável quando se vive nele. As contradições são apenas contradições para nós que opomos razões. Não há contradição entre palavra e não-nomes, não-sentido, não-palavras. A poesia de Barros, os haicais, são todos feitos, obviamente, de escritas, com palavras, mas que transbordam os sentidos, não apenas daquelas palavras mas outros tantos, como sensações, emoções, cores, texturas e ritmos. Se penso em um pássaro quase ao mesmo tempo de penso na conta de luz que preciso pagar, quando no mesmo momento sinto vontade de ir ao banheiro, porque em um texto preciso sempre dizer apenas uma coisa ordenada em um sentido lógico racional? É por isso que a arte precisa sempre ultrapassar o significado e ser mais significantes. A vida é apenas significantes, ainda que os significados façam sempre parte imperiosa dela. Tudo é ritmo, mas nem sempre somos capazes de compreende-lo. Nossa chave racional não é apenas o nosso maior diferencial, é também nossa prisão. Se eu sentir e calar-me, talvez tenha uma chance de me conectar com uma energia realmente sagrada. O vazio.

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Fernando Baggio
Blog do Baggio

Sou músico, educador, estudante de mestrado em Artes da Música e amante e filósofo amador. Adoro escrever sobre política, futebol e coisas que o inspiram.