A pena de morte: mudança na redação do Catecismo Católico

Rafael Bartoletti
Blog do Bart
Published in
13 min readAug 3, 2018

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O Santo Padre, Papa Francisco, mandou alterar a redação do parágrafo 2267 do Catecismo da Igreja Católico, de maneira que assim passa a ser a nova redação:

“2267. Durante muito tempo, considerou-se o recurso à pena de morte por parte da autoridade legítima, depois de um processo regular, como uma resposta adequada à gravidade de alguns delitos e um meio aceitável, ainda que extremo, para a tutela do bem comum.

Hoje vai-se tornando cada vez mais viva a consciência de que a dignidade da pessoa não se perde, mesmo depois de ter cometido crimes gravíssimos. Além disso, difundiu-se uma nova compreensão do sentido das sanções penais por parte do Estado. Por fim, foram desenvolvidos sistemas de detenção mais eficazes, que garantem a indispensável defesa dos cidadãos sem, ao mesmo tempo, tirar definitivamente ao réu a possibilidade de se redimir.

Por isso a Igreja ensina, à luz do Evangelho, que «a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa», e empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo.”

Em primeiro lugar, Roma locuta, causa finita. Se o Papa assim ensinou e assim quis, então nos resta apenas ouvir e obedecer. Contudo, certa celeuma injustificada tomou conta das redes sociais, tomando parte aqueles que não devem ter louça para lavar em casa. Alguns amigos me enviaram mensagem pedindo a minha opinião; quem sou eu para dar opinião a respeito daquilo que decide o Romano Pontífice? Publico, então, não uma opinião, mas algumas reflexões pessoais acerca do novo texto. Logo de início já adianto: estou com o Papa e não abro.

§1 — Da dignidade da pessoa humana.

O mais perverso dos criminosos perde a sua dignidade ao cometer crimes bárbaros como homicídio, estupro, etc.? A respeito disso muita tinta já foi gasta. Consideremos aqui a doutrina de dois grandes doutores: Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino.

Santo Agostinho foi especialmente sensível ao tema do mal no mundo. Ele fora maniqueu antes de sua conversão ao Catolicismo. O Maniqueísmo pregava a doutrina da substancialidade do mal: o mal existiria em si e por si. Agostinho foi veemente no combate a essa heresia. Afirma o Santo Doutor:

As naturezas corrompidas pelo vício da má vontade são más, é certo, como viciosas, mas como naturezas, são boas. E, quando a natureza é castigada, além da natureza, é bom também não ficar impune. A razão é ser justo o castigo e ser bom tudo quanto é justo. Ninguém sofre castigos por causa dos defeitos naturais, mas pelos voluntários, visto como o próprio vício que, robustecido pelo costume e, por assim dizer, entranhado na natureza, chegou a ser natural, também teve origem na vontade.(S. Agostinho, De Civitate Dei, XII, III)

Neste pequeno trecho, está condensada toda a doutrina a respeito do mal em Agostinho. O autor distingue entre o mal como substância e o mal moral. Este caracteriza-se pelo mal uso da liberdade: o sujeito escolhe agir de maneira contrária à natureza, isto é, à vontade de Deus inscrita na ordem cósmica. O mal moral decorre da ação má e é justo que seja punido.

Contudo, isto não afeta a sua natureza. A natureza de algo é sempre boa, porque foi pensada, querida e criada por Deus. Aliás, o mal moral, a existência de vícios, é fundamento mesmo para demonstrar que não há um mal substancial.

A natureza, embora sendo viciada, é bem. (…) Porque não existe mal algum nocivo a Deus, mas às naturezas mutáveis e corruptíveis, contudo boas, segundo os próprios vícios demonstram. E demonstram-no porque, se não fossem boas, não poderiam prejudicá-las. Que fazem, com efeito, ao prejudicá-las, senão que percam a integridade, a beleza, a saúde, a perfeição e quantos bens o vício costuma subtrair ou roubar à natureza? (…) Donde se segue que, embora incapaz de prejudicar o bem imutável, o vício não pode prejudicar senão o bem, visto como toda a sua razão de ser consiste em prejudicar. (S. Agostinho, De Civitate Dei, XII, III)

Assim, o crime somente é crime porque praticado por uma natureza que é substancialmente boa, porque é e, se é, é por vontade divina, ainda que corrompida.

Ora, na ordem das coisas o homem, animal racional, é por natureza superior a tudo quanto neste mundo existe: inanimados, vegetais e animais. Esta dignidade da pessoa humana, que subsiste na natureza racional do homem, não se perde com a corrupção do vício. Ainda que privado da graça, o criminoso permanece em estado de mera natureza.

O criminoso é mal porque quis agir de maneira maléfica, mas a sua natureza é boa, porque é na ordem do ser, e tudo quanto é é bom.

Santo Tomás de Aquino assume este mesmo pensamento de Santo Agostinho. Diz Tomás:

É portanto impossível que o mal signifique certo ser ou certa natureza ou forma. Resta, portanto, que o termo mal designe certa ausência de bem. Eis porque se diz do mal que “nem existe, nem é um bem”; porque sendo o ente como tal um bem, não se nega um sem o outro (Tomas de Aquino, S. Theologiae. I, q. 48, a. 1).

Tomás afirma no De Malo, que o mal é apenas um “ente de razão”, uma ausência de ser substancializada pelo intelecto cognoscente.

Portanto, Tomás reafirma a doutrina Agostiniana de que não existe uma substância má na ordem do ser, mas são chamadas más pessoas os criminosos, ainda que a sua natureza seja boa pela ordem querida por Deus, por suas escolhas e ações más que contrariam a própria natureza boa que possuem.

§1.1. — Objeção

Poderia-se objetar a isso com o que é dito por Santo Tomás em S. Theologiae IIa. IIae., q. 64, a. 2 ad. 3, cujo texto é o seguinte:

Deve-se dizer que pecando, o homem se afasta da ordem racional. Decai, assim, da dignidade humana, que consiste em ser naturalmente livre e existir para si mesmo. Ele cai, de certo modo, na escravidão dos animais, de sorte que se deva dispor dele como convém à utilidade dos outros. E também se lê no Salmo: “Estando elevado em honra, o homem não entendeu, viu-se nivelado aos animais sem razão e a eles se assemelhou”. E também se lê no livro dos Provérbios: “O insensato estará a serviço do sábio”. Portanto, se é mal em si mesmo matar um homem, que se conserva em sua dignidade, pode, contudo, ser um bem matar um pecador, como se abate um animal. Pois, o homem mau é pior que o animal e ainda mais nocivo, como diz o Filósofo.

É importante notar, porém, os termos usados por Tomás. Diz ele que o homem “cai, de certo modo, na escravidão dos animais”. De fato, a palavra usada no texto original é quodammodo, um advérbio que significa “de certo modo”, “em certa medida”;

Isto quer dizer que a natureza humana do homem mau não se iguala à do animal, mas é a ela assemelhada: torna-se análoga ao animal.

Uma analogia é uma certa igualdade com certa diferença. Em que precisamente consiste essa igualdade e essa diferença entre o homem pecador, o criminoso, e o animal irracional?

A igualdade consiste em que o pecador, na doutrina católica, não é mais portador de liberdade; a liberdade é causada pela graça, e com a perda da graça pelo ato pecaminoso perde-se a liberdade de escolha entre o bem e o mal.

A diferença consiste na própria natureza. O homem mal não perde a sua natureza boa, como dito pelo próprio Tomás nas citações anteriores. E essa natureza é superior na ordem deste mundo à do animal irracional: é um bem mais perfeito do que a natureza dos brutos.

Portanto, é possível entender esta passagem da Summa da seguinte maneira: o homem perde a plenitude da sua dignidade em função da perda da graça. Nas palavras já citadas de Agostinho, a natureza prejudicada pelo vício perde “a integridade, a beleza, a saúde, a perfeição e quantos bens o vício costuma subtrair ou roubar à natureza”, sem contudo prejudicar a sua constituição ontológica, a sua dignidade e bondade na ordem cósmica criada. Esta conclusão é corroborada pelo texto do ad tertium da questão imediatamente posterior, no qual Santo Tomás explica que:

Deve-se dizer que o animal bruto é por natureza diferente do homem. Por isso, não é preciso julgamento para matar o animal bruto, se é selvagem. Se, porém, for doméstico, um julgamento será necessário, não pelo animal, mas pelo dano causado ao seu dono. Ora, o pecador não é de outra natureza que os justos. Por isso, faz-se mister um juízo para decidir se deve ser morto para o bem da sociedade. (Tomás de Aquino, S. Theologiae IIa. IIae., q. 64, a.3 ad. 2)

Como pode, então, Tomás afirmar que é possível matar tal homem que perde, e isso não é pouco, a graça, a liberdade, a união com Deus, mas não a sua natureza boa? Isso se explicará no próximo parágrafo destas reflexões.

Já podemos afirmar, porém, que a proposição do Papa Francisco na nova redação do paragrafo 2267 do Catecismo Romano, segundo a qual “a dignidade da pessoa não se perde, mesmo depois de ter cometido crimes gravíssimos”, está assentada na boa tradição teológica desses dois grandes e santos doutores da Igreja. A natureza humana, em si mesma boa e portadora de dignidade na ordem deste mundo, mantém a sua bondade substancial ainda que pratique ações más.

§ 2 — da Pena de Morte

Estabelecido que a dignidade da pessoa humana permanece a mesma, ainda que esta pessoa possa ser chamada má em função das suas escolhas e ações, façamos uma reflexão a respeito da pena de morte.

Na já citada passagem de Santo Agostinho, está escrito quanto à punição pelas más escolhas:

A razão é ser justo o castigo e ser bom tudo quanto é justo. Ninguém sofre castigos por causa dos defeitos naturais, mas pelos voluntários, visto como o próprio vício que, robustecido pelo costume e, por assim dizer, entranhado na natureza, chegou a ser natural, também teve origem na vontade.(S. Agostinho, De Civitate Dei, XII, III)

Segundo Tomás, há duas coisas às quais se dá o nome de justiça:

a. De modo impróprio, à justificação dos ímpios, isto é, a retificação da alma pela graça divina. Denomina-se, assim, com a palavra“justiça” a obra de retificação, pela graça divina, da alma humana que perde exatamente “a integridade, a beleza, a saúde, a perfeição e quantos bens o vício costuma subtrair ou roubar à natureza”.

b. De modo próprio, à virtude que retifica a ação relativa a outrem, isto é, dar a cada um o que é seu, o que lhe é próprio.

Aquilo que se denomina justiça de modo próprio, distingue-se em algumas espécies. Uma delas chama-se justiça legal, que consiste na relação da parte ao todo. Aqui trata-se de regular as ações de uma parte da comunidade em relação ao todo, isto é quanto uma pessoa deve dar de seus bens ao todo da comunidade a fim de garantir o bem comum. Ora, a existência é um bem, como ficou dito acima. Portanto, o problema é um problema de justiça legal: é virtuoso que uma comunidade tire o bem da vida de outrem em função de seu mal moral, isto é, de suas escolhas e de suas ações em função do bem comum? Santo Tomás acreditava que sim! Para entendermos, porém, a sua resposta é preciso por algumas premissas:

1a. Toda natureza é boa em si mesma e necessária à ordem do mundo, porque foi pensada, querida e criada por Deus.

2a. O mal moral de uma natureza racional não faz com que ela torne-se um mal ontológico. Continua ela sendo boa e necessária à ordem do mundo.

3a. É melhor o ser do que o não-ser.

Postas essas premissas, quando é permitido, segundo Santo Tomás, a pena capital?

Quando tal morte for necessária para a manutenção do bem comum de certa comunidade. Tomás utiliza-se de uma analogia com o corpo humano: dado um membro gangrenado, é necessário amputá-lo para a saúde do corpo. Assim também, um homem mal que se torna perigoso para uma sociedade deve ser amputado do corpo social. Imaginemos, por exemplo, Hitler. Será que a sua existência foi um perigo para o bem comum da sociedade humana? É evidente que sim. Portanto, por justiça, era necessário uma operação para matá-lo.

Duas questões se levantam.

A primeira delas consiste no conflito que aqui se estabelece entre as suas duas acepções de justiça: é melhor trabalhar pela justificação do ímpio ou tirar-lhe a vida a fim de proteger o bem comum? A resposta está no ad secundum do artigo 2 da questão 64 da IIa. IIae..

Deve-se dizer que segundo a ordem de sua sabedoria, às vezes Deus tira imediatamente a vida aos pecadores para livrar os bons; outras vezes, conde-lhes o tempo de fazer penitência, visando o que sabe melhor convier aos seus eleitos. A justiça humana procurar fazer o mesmo, matando os que são perniciosos para os outros, deixando, no entanto, tempo de penitência aos que pecam sem prejudicar gravemente aos outros. (S. Theologiae IIa. IIae., q. 64, a. 2)

Tal pena é permitida quando o criminoso é pernicioso aos outros, quando oferece perigo grave e iminente para os bons. Imaginemos uma guerra: o exército que injustamente é atacado em seu território deve matar o inimigo injusto para proteger os seus cidadãos. Portanto, se for possível neutralizar tal perigo pernicioso, grave e iminente contra os bons, então a pena capital não é necessária, afinal é possível e querido que o criminoso se converta, chegue ao conhecimento da verdade e seja salvo (cf. 1 Tm 2).

A segunda questão que se levanta diz respeito ao julgamento. Com efeito, Tomás afirma, na citação já feita alhures, que dada a dignidade superior da natureza humana, animal racional, toda pena de morte deve ser dada após julgamento.

Pensemos um pouco a respeito daquilo que ocorreu no mundo na história mais ou menos recente: a Revolução Francesa, o Fascismo, o Nazismo, o Comunismo e a pena de morte aplicada pelos EUA.

Quantas vezes vidas inocentes foram ceifadas por um Estado que julga-se capaz de decidir a respeito da vida de outrem e o faz, de maneira despótica ou em julgamento sob a égide da lei numa sociedade democrática, terminando por condenar à morte boas pessoas por julgamento injusto ou erro de julgamento?

Tais juízos não foram eles mesmos perigos iminentes, graves e perniciosos? Essa instituição moderna não é ela mesma um perigo de morte para os bons?

Sendo um perigo para os bons, a pena de morte não é permitida por Santo Tomás. Diz o autor:

Assim, o Senhor ensina que se há de deixar viver os maus, protelando a vingança até o juízo final, de preferência a correr o risco de matar junto com eles também os bons. (Santo Tomás, S. Theologiae IIa. IIae., q. 64, a. 2, ad. 1)

Em outra passagem, diz Tomás:

Pode-se considerar um homem sob duplo aspecto: em si mesmo ou em relação aos outros. Considerando o homem em si mesmo, jamais será permitido matá-lo, porque, em todo homem, ainda que seja pecador, devemos amar a natureza, obra de Deus que se desfaz pela morte. Mas, como já se explicou, a morte do pecador só se torna lícita quando se trata de preservar o bem comum, que o pecado destrói. (Santo Tomás, S. Theologiae IIa. IIae., q. 64, a. 6, resp.)

Levando em conta, portanto, que

(i) a dignidade da pessoa humana não se perde absolutamente pelos crimes cometidos;

(ii) no caso do criminoso não oferecer perigo grave e imediato aos bons, não há necessidade de pena de morte;

(iii) as penas de morte atuais são condição de perigo de morte para os bons;

(iv) a doutrina de Santo Tomás nos ensina que a morte do criminoso só é permitida nos casos de preservar o bem comum;

(v) no nosso tempo é possível neutralizar o perigo grave ao bem comum sem recorrer à pena de morte;

Então me parece ser bastante prudente a colocação que o Santo Padre faz:

Foram desenvolvidos sistemas de detenção mais eficazes, que garantem a indispensável defesa dos cidadãos sem, ao mesmo tempo, tirar definitivamente ao réu a possibilidade de se redimir.

A pena perpétua, por exemplo, neutraliza o perigo iminente e grave e pode ser revertida em caso de erro de julgamento, não oferecendo, assim, perigo de morte aos bons. Outras penas, longas, porém não perpétuas, em prisões de segurança máxima, podem ser também elas justas na medida que forem punições adequadas para delitos graves — o conceito de justiça tomista implica a racional ação em relação a outrem, na proporção que lhe cabe.

Já a antiga redação deste parágrafo do Catecismo dizia que a pena capital só é permitida caso fosse a “única via contra o agressor injusto”, e que “se os meios incruentos bastarem para conter o agressor e para proteger a ordem pública e a segurança das pessoas, a autoridade se limitará a esses meios”.

Continuava assim a redação antiga do Catecismo:

Na verdade, nos nossos dias, devido às possibilidades de que dispõem os Estados para reprimir eficazmente o crime, tornando inofensivo quem o comete, sem com isso lhe retirar definitivamente a possibilidade de se redimir, os casos em que se torna absolutamente necessário suprimir o réu são já muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes.

Talvez o problema tenha sido o uso da palavra “inadmissível”. Seria interessante ler qual é a versão oficial em latim para verificar qual o termo usado. Contudo, é evidente que ali o Santo Padre trata da vida ordinária de uma sociedade de pessoas humanas: ele faz menção às sanções penais do Estado e do desenvolvimento de detenção mais eficaz para a proteção do cidadão. Ali não trata-se de períodos de anormalidade, tempos de guerra por exemplo.

Portanto, não há nada de novo debaixo do sol. Não há nada de podre no Reino da Dinamarca.

Há apenas a voz de Pedro a nos lembrar o ensinamento do Senhor, cujo desejo mais profundo é que “todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade”, todos aqueles, sem exceção, que foram criados à “imagem e semelhança de Deus”.

Que em tudo seja Deus glorificado! Amém.

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