Ensaio sobre a subjetividade humana e a intelecção da existência de Deus.

Rafael Bartoletti
Blog do Bart
Published in
12 min readJun 5, 2017

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Vilém Flusser, em um artigo chamado Em louvor do Espanto, coloca a origem da religiosidade humana no temor e na admiração diante do “nada” donde originam-se as coisas que são. Num trecho, escreve Flusser a respeito do homem fundamental:

“As coisas advêm das sombras e cada uma é uma aventura assombrosa, seja ela uma fera ou um trovão, uma árvore ou outro homem. Diante de toda coisa que advêm o homem primordial treme, espantado, porque toda coisa é nova. Sendo nova, toda coisa é milagrosa. O tremor do homem face à coisa é, portanto, um misto de temor e admiração, é um tremor religioso”[1]

Segundo o autor, é próprio do homem o espanto. Este maravilhamento e tremor diante dos mistérios da realidade são princípios de atividades extremamente, demasiadamente, humanas, e. g. a reflexão filosófica e o sentimento religioso. Diante do assombro causado pelo mistério das coisas não há outras reações possíveis senão o temor e a admiração.

Ao deparar-se com a realidade, o homem percebe sua contingência e impotência, percebe algo que o transcende. Além disso, percebe também algo que transcende o próprio mundo, um certo “nada”, algo de absoluto que é origem e sustento daquilo que é.

A percepção desse mistério é a origem do temor religioso, ou seja, diante de uma realidade que se apresenta como totalmente outra o homem teme e curva-se. Diante de algo absoluto e potente, teme. O temor é a auto percepção de ser frágil, contingente e impotente diante da realidade. Concomitantemente, admira, maravilha-se com esta realidade infinita.

A relação entre o ser contingente e o ser necessário já foi muito explorada no campo da filosofia, desde Platão e Aristóteles, mas encontrou uma das melhores formulações termos filosóficos nos escritos de Santo Tomás de Aquino no século XIII.

a. A terceira via tomista para a intelecção de Deus: o ser necessário em si mesmo

Para Tomás a existência de Deus não é evidente ao homem por si mesma, senão para os “sapientes”. É possível, então, demonstrá-la pela razão. Segundo o Aquinate, é possível conhecer algo de duas maneiras, quais sejam (i) conhecendo a causa de algo e deduzindo dela seus efeitos necessário e (ii) conhecendo os efeitos e inferindo deles suas causas necessárias. Sendo Deus infinito e incausado por definição, o conhecimento de sua existência a partir do primeiro tipo é por si impossível. Resta, então, o conhecimento a partir de seus efeitos.

“Podemos demonstrar a existência da causa própria de um efeito, sempre que este nos é mais conhecido que aquela, porque, dependendo os efeitos da causa, a existência deles supõe a preexistência desta”[2]

Sobre o conhecimento de um ente, ainda segundo o Doutor Angélico, é possível perguntar-se sobre seu modo de existência, “se é”, e pela sua essência, “o que é”. Se o conhecimento de algo foi a partir de seus efeitos e sendo os efeitos desproporcionais à causa, como ocorre em Deus, o conhecimento desta por aqueles responde à primeira questão, já que neste caos é impossível dizer pelos efeitos a essência da causa; mas, poder-se-ia demostrar sua existência por esforço racional e é isto que o Aquinate o fará.

Este argumento é interessante para a filosofia que pretende investigar a experiência de Deus a partir da experiência do mundo, pois o homem que observa o mundo e percebe que as coisas não se sustentariam no ser e não viriam-a-ser sem algo absoluto e potente que fornecesse o fundamento e sustentação ontológicos para o ser contingente e seus movimentos necessariamente inferiria destas experiência e percepção a certeza da existência do Ser-Em-Si.

“O que não é só pode começar a existir por uma coisa já existente, pra, nenhum ente existindo, é impossível que algum comece a existir, e, portanto, nada existiria, o que, evidentemente, é falso. Logo, nem todos os seres são possíveis, mas é forçoso que algum dentre eles seja necessário”.[3]

As três primeiras das cinco vias do conhecimento de Deus que Tomás formula na Summa Theologiae I, q. 2, a. 3, resp. estão baseadas nessa relação entre a deficiência humana e a plenitude divina. Na terceira via, porém, o autor fundamenta o argumento exatamente na questão do ser. Todos os estes deste mundo são contingentes, pois não eram, são e corromper-se-ão. Poderiam ou não existirem. Se não eram e vieram-a-ser é porque algo preexistia à estas coisas na ordem do ser, pois, algo só pode vir-a-ser por força de outro que já seja, uma vez que do nada nada advém. Isto não pode ser reduzido ao infinito e Garrigou-Lagrange, em sua obra La Síntesis Tomista explica o porquê:

“Para ver el valor de estar pruebas, debe advertirse que la causa que es requerida necesariamente por los hechos y las realidades existentes que comprobamos, no se encuentra en la serie de causas pasadas; el hijo depende sin duda alguna del padre y del abuelo, que con frecuencia ya no existen cuando su descendiente todavía existe, eran tan contingentes como éste y exigían una causa tanto como éste; habían recibido la existencia la vida, la inteligencia; ninguno de ellos y ninguno de sus ascendientes podía decir: yo soy la vida”

A contingência dos antepassados é incapaz de sustentar no ser os seus descendentes porque eram eles também finitos. Nenhum ente deste mundo é capaz de dar a si mesmo a vida e o movimento, ou ordenar as coisas aos seus fins. É necessário que haja um ser fora da série que sustente o ser de todos, ainda que a séria seja ab aeterno.[4]

Todos estes argumentos de Tomás de Aquino são extremamente precisos logicamente e parecem oferecer uma boa resposta ao problema. Porém, como o próprio autor adverte na Summa Theologiae I, q. 2, a. 1, essas verdades devem ser investigadas racionalmente pelos “sapientes”, por ser a existência de Deus não evidente por si mesma. Como poderiam, então, na vida comum da maioria comum dos homens, aqueles que não são filósofos?

Na Summa Theologiae I, q. 2, a. , ad. 1, Tomás aponta um caminho para essa aporia:

“Conhecer a existência de Deus de modo geral e com certa confusão, é-nos naturalmente ínsito, por ser Deus a felicidade do homem: pois, este naturalmente deseja a felicidade e o que naturalmente deseja, naturalmente conhece. Mas isto não é pura e simplesmente conhecer a existência de Deus, assim como conhecer quem vem não é conhecer Pedro, embora Pedro venha vindo. Pois uns pensam que o bem perfeito do homem, a felicidade, consiste nas riquezas; outros, noutras coisas”.

Neste trecho o argumento Tomista é no sentido de que o homem naturalmente deseja ser feliz. Ora, a felicidade do homem é Deus. Logo, o homem naturalmente deseja a Deus. Ora, não é possível desejar algo que não é conhecido. Portanto, de alguma maneira o homem conhece Deus, objeto do seu desejo natural de ser feliz. No entanto, sendo Deus quem é, este conhecimento ínsito é necessariamente confuso. “Deve-se dizer, simplesmente, que Deus não é o que primariamente é conhecido por nós; mas, antes, pelas criaturas é que chegamos ao conhecimento de Deus”[5].

Com esta tese de Tomás de Aquino em mente, é possível então passar para o estudo da experiência de Deus desenvolvida por Edith Stein, que a tem como um de seus fundamentos.

b. Edith Stein: a divisão tripartida do homem e empatia

Edith Stein, judia, foi aluna do “Pai da Fenomenologia”, Edmund Husserl. O ceticismo provocado pelo estudo da filosofia a fez ateia. Depois converteu-se ao cristianismo ao ler a obra de Santa Tereza D’Avila. Foi monja carmelita, onde assumiu o nome de Teresa Benedita da Cruz, e mártir nas câmaras de gás de Auschwitz. Foi canonizada pelo Papa São João Paulo II. Em suas teses filosóficas buscou unir a Fenomenologia com o pensamento Tomista, o que é extremamente interessante para a nossa pesquisa, pois tenta unir a consciência do “eu” moderna com a intuição das essências de Husserl e o realismo do Aquinate.

Partamos neste estudo da estrutura da pessoa humana de Stein exposta em A estrutura da pessoa humana.[6]

A autora divide o homem em três partes, quais sejam o corpo, a alma e o espírito. O corpo é o responsável pela apreensão da realidade, por onde a alma padece e onde a alma se expressa. É no corpo que as primeiras interações com a realidade ocorrem e onde fundamentalmente o homem percebe a si mesmo como outro, diferente da natureza e como um todo indivisível. É pelo corpo que o a pessoa conhece primariamente.

A alma, que anima o corpo, tem uma parte mais profunda chamada espírito que a diferencia das almas dos outros seres animados. Quanto à alma, pode-se analisa-la em relação ao corpo, em relação ao espírito e em si mesma.

“El alma es el ‘espacio’ en medio del todo formado por el cuerpo, el alma y el espíritu. En cuanto alma sensible, habita en todos los miembros y partes del cuerpo, recibe de él y obra sobre él formándolo y manteniéndolo. En cuanto principio espiritual, ella transciende más allá de sí misma y mira un mundo situado más allá de su proprio yo: un mundo de cosas, de personas, de hechos; se comunica con él inteligentemente, y del recibe impresiones; en cuanto alma en el sentido proprio, habita en sí misma, y en ella el yo personal está como en su propia casa. En ella se reúne todo lo que proviene del mundo de los sentidos y del espíritu, en ella se hace la explicación interior con esos elementos; se toma posición, se saca de él lo que llegará a ser su propiedad personal y lo que formará parte de ella misma”[7]

A alma em si mesma é uma parte substancial do homem, onde todos os dados são reunidos, vindos do corpo ou do espírito, e relacionados. A alma consegue ordenar esses dados e fazê-los seus.

O espírito é próprio do homem. Neste mundo, não há outra espécie que o possua; o animal possui apenas a alma sensível. A alma espiritual “transciende más allá de sí misma y mira un mundo situado más allá de su proprio yo”. A alma espiritual revela a capacidade do homem de transcender-se e ir de encontro às outras coisas para conhecê-las e de refletir sobre si mesmo.

Sendo a alma espiritual própria do homem e princípio de transcendentalidade e conhecimento, então é próprio do homem sair de si e conhecer as coisas. Esta uma característica fundamental da existência humana. A experiência humana das coisas e sua reflexão sobre elas o faz perceber a misteriosa existência do mundo; o homem aventura-se para fora de si e percebe, espantado, a existência das coisas como algo misterioso. Esta capacidade de transcendência do homem, antes, por força de sua natureza, uma necessidade, o faz questionar-se sobre a sua própria existência e a do mundo e perguntar-se a respeito de suas causas últimas. O homem por natureza quer descobrir os fundamentos da existência. Espanta o homem sobretudo a finitude do ser; tudo lhe parece contingente, inclusive ele próprio. A finitude do ser reclama a plenitude, um ser em ato puro e causa eficiente de si mesmo por natureza, capaz de dar existência ao ser contingente e finito e de sustentá-lo.

“Así el ser eterno y el ser temporal, el inmutable y el mutable, e igualmente el no-ser, son ideas que el espíritu descubre en sí mismo; non están tomadas de otra parte. En lo que les concierne, una filosofía que parte del conocimiento natural tiene aquí un punto de partida. ”[8]

Son ideas que el espíritu descubre en sí mismo”. Esta proposição pode conter dois sentidos. O primeiro deles é da experiência humana de sua própria finitude. O homem olha para si mesmo e percebe a sua contingência que reclama um ser necessário para sustentar a si mesmo no ser e dar-lhe existência. Além disso, sua experiência aponta para aquilo que era e não é mais, ou aquilo que não é e será e ainda aquilo que desejaria ser, mas não o pode. O segundo sentido aponta para a necessidade lógica do ser necessário que é possível inferir a partir da reflexão racional, o que explica a não existência do fenômeno religioso nos animais brutos ou nos outros entes deste mundo.

O homem é, neste mundo, o único ente que possui em sua natureza a alma espiritual, i. e. que possui intelecto teórico e prático e volição racional. O intelecto teórico do homem é destinado a contemplar a Verdade última e a verdade de cada ser. Ele volta-se a si mesmo, para a sua própria experiência da existência, e se descobre finito e contingente. Descobre também que toda a realidade é finita e contingente; tudo parece advir do nada.

A alma humana, que recolhe os dados da existência e as intelecções do espírito, reflete sobre os dados que inteligira e racionalmente deduz a necessidade de um ser imutável, necessário, absoluto e ordenador capaz de dar existência ao mundo e sustentá-lo no ser.

“En diferentes momentos de su ser se abre un vacío, ¿viene de la nada?, ¿va hacia la nada?, ¿el abismo de la nada puede abrirse bajo sus pies en cualquier momento?”[9]

Ao deparar-se com a realidade o homem as intelige e percebe que a principal “marca” das coisas deste mundo é a finitude. Tudo pode ser ou não ser. Nenhuma das coisas pode dizer-se a existência em si. Sobre essa percepção o homem questiona-se se é o nada o fundamento do ser de cada coisa.

Aqui, Stein toca em três pontos importantes, quais sejam (i) qual a causa eficiente e material do nada — viene de la nada — (ii) qual a causa final do homem — va hacia la nada — e (iii) qual o fundamento ontológico do homem.

Essas três questões relacionam-se estritamente com as vias para conhecimento da existência de Deus apontadas por Santo Tomás. Com efeito, há, segundo o Aquinate, a necessidade da existência de um primeiro motor imóvel, uma causa eficiente incriada, de um ser necessário por natureza e de um ordenador das coisas criadas. Esta necessidade, segundo Stein, é conhecida pelo homem a partir de sua experiência do outro, a “empatia”, e de si mesmo. Com efeito, submetido à temporalidade e à contingência da existência, onde nada é potente para dar a vida e mantê-la por si mesmo, o homem encontra-se com o Totalmente Outro, Aquele que é a causa última de tudo o que há.

“O sentido simbólico e o sentido prático guardam uma relação de interna correspondência. Ambos apontam a mais além de si mesmos: permitem suspeitar a existência de um espírito pessoal que está detrás do mundo visível e que conferiu a cada ser o seu sentido, dando-lhe forma correspondente ao lugar que ocupa na estrutura do todo; um espírito pessoal que escreveu o grande livro da natureza e fala nele ao espírito do homem[10]

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[1] FLUSSER, Vilém. Em louvor do Espanto

[2] AQUINO, Tomás de. Summa Theologiae I, q. 2, a. 2.

[3] AQUINO, Tomás de. Summa Theologiae I, q. 2, a. 3, resp. (3ª Via)

[4] cf.: GARRIGOU-LAGRANGE, O.P., P. Réginald. La Síntesis Tomista. Buenos Aires: DEBEC, 1946, p. 92.

[5] AQUINO, Tomás de. Summa Theologiae I, q. 88, a. 3.

[6] cf. a obra utilizada aqui como comentário à filosofia de Stein: KUSANO, Mariana Bar. A Antropologia de Edith Stein: entre Deus e a filosofia. São Paulo: Ideias & Letras, 2014, p. 59–97.

[7] STEIN, Edith. Ser finito y Ser Eterno: Ensayo de una Ascensión al Sentido del Ser. México: Fondo de Cultura Econômica, 1994, p. 388.

[8] STEIN, Edith. Ser finito y Ser Eterno: Ensayo de una Ascensión al Sentido del Ser. México: Fondo de Cultura Econômica, 1994, p. 54.

[9] STEIN, Edith. Ser finito y Ser Eterno: Ensayo de una Ascensión al Sentido del Ser. México: Fondo de Cultura Econômica, 1994, p. 69.

[10] Stein, Edith. A estrutura de la Persona Humana. Madri: BAC, 2002, p. 141. in: KUSANO, Mariana Bar. A Antropologia de Edith Stein: entre Deus e a filosofia. São Paulo: Ideias & Letras, 2014, p. 90.

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