FRANCIS BACON: O PROBLEMA FUNDAMENTAL DO NOVUM ORGANUM

Rafael Bartoletti
Blog do Bart
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12 min readApr 21, 2018

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Para atingirmos o ponto central do problema filosófico que subsiste nas considerações de Francis Bacon é importante, como ensina o Prof. Mario Gonzáles Porta (2014), operar antes uma reconstrução histórica e uma reconstrução do argumento textual. Para isso, importa direcionar o olhar na direção do status quaestionis donde parte Bacon, quais os supostos dos problemas vigentes no pensamento de sua época, quais os supostos do seu próprio pensamento. Justifica-se isto porquê, na tese do Prof. Porta, aquilo que une toda a história da filosofia, e a divide em períodos, não é a mudança de ambientes, costumes, e outros processos civilizatórios que determinam a divisão histórica da humanidade, nem sequer as próprias teses de seus atores principais. Para este professor, o que une a história da filosofia, e a faz essencialmente filosófica, é o desenvolvimento dos problemas enfrentados pelos autores, que se unem essencialmente e se desenvolvem de maneira orgânica.

1. Considerações Históricas

1.1. História da Filosofia

Quanto ao status questionis do problema levemos em conta a certa confusão que há nesta época.

Num tempo anterior, precisamente entre os séculos XII e XIII, há um movimento filosófico interessante. Chegara e difundira-se as obras perdidas de Aristóteles ao Ocidente, por via dos povos mouros. A recepção dada à estas obras não foi unânime. Por um lado, pensadores como Santo Alberto Magno e Santo Tomás de Aquino receberam-nas com entusiasmo, e se utilizaram de seus métodos, de seu vocabulário e de seus conceitos, para pensarem a filosofia cristã, sem deixar, porém, de lado a tradição que receberam dos Padres. Em outra trincheira, estavam aqueles que a rejeitaram como se herética fosse. Houve condenações papais e episcopais às doutrinas aristotélicas, averroistas e tomistas.

Soma-se a isso toda a disputa nominalista acerca do estado ontológico das categorias, gêneros e espécies, que já vinha desde a tradução boeciana do comentário de Porfírio à Isagoge, mas que ganha força com figuras do tipo de Abelardo e Guilherme de Ockhan.

Vê-se nessa rapidíssima e superficial digressão, que a movimentação filosófica dos dois séculos que precedem Bacon é de uma disputa, por vezes feroz, entre várias escolas filosóficas: o realismo de tipo platonizante, o realismo aristotélico e o nominalismo. Qual deles estaria certo? Por quê há tanta confusão nas ciências teoréticas? Por quê não se alcança um conhecimento verdadeiro acerca dos objetos filosóficos?

1.2. História da Técnica

Se a filosofia não logrou uma unidade de conhecimento certo acerca de seu objeto, não é possível dizer isso da técnica na época de Bacon.

O autor nasceu em meados do século XVI: o século da chegada da bússola, da pólvora e da prensa no Ocidente.

O progresso nas ciências técnicas parecia ser grandioso. Grandes nomes figuram nesta época, como Copérnico, Galileu Galilei e Leonardo da Vinci.

Nicolau Copérnico, Galileu Galilei, Leonardo da Vinci e dois dos seus estudos, um anatômico e outro técnico.

2. Sobre o conhecimento e a verdade

Francis Bacon não é um cético. Não impugna ele a razão, nem afirma a impossibilidade do conhecimento.

No aforismo I de seu Novum Organum, diz Bacon (1973, p. 29):

O homem, ministro e intérprete da natureza, faz e entende tanto quanto constata, pela observação dos fatos ou pelo trabalho da mente, sobre a ordem da natureza; não sabe nem pode mais.

Neste aforismo, Bacon insiste na principal potência própria do homem, supostos do estabelecimento de seu problema fundamental: um ser que é “interprete” da “ondem da natureza”. Isto se faz, segundo Bacon, pelo conhecimento sensorial e pelo conhecimento intelectual, em suas palavras a “observação dos fatos” e o “trabalho da mente”.

Este aforismo, porém, se analisado em conjunto com o aforismo XXIII, que reza “não é pequena a diferença existente entre os ídolos da mente humana e as ideias da mente divina, ou seja, entre opiniões inúteis e as verdadeiras marcas e impressões gravas por Deus nas criaturas, tais como de fato se encontram” (BACON, 1973, p. 23), revela algo ainda mais profundo. Que é o conhecimento verdadeiro para Bacon?

2.1. A tradição aristotélica.

Antes da referência a Bacon, é importante voltar o olhar à tradição filosófica, notadamente a tradição aristotélica, sobre o assunto.

Para Aristóteles, a verdade e a falsidade encontram-se primeiramente nos juízos, e não nos conceitos. Dizer “x” ou dizer “y” não é dizer alguma verdade ou falsidade, mas no dizer “x é y” ou “x não é y” haverá falsidade ou verdade, na medida em que “x” for ou não realmente “y”.

A verdade e a falsidade estão na referência do objeto de uma proposição à realidade. Diz Aristóteles (2002, p. 179) no livro delta da Metafísica: “Falso é dizer que o ser não é ou que o não-ser é; verdadeiro é dizer que o ser é e que o não-ser não é.”

Insiste, ainda, Aristóteles (2002, p. 429), no livro theta da Metafísica:

O ser verdadeiro e falso das coisas consiste na sua união ou na sua separação, de modo que estará na verdade quem considera separadas as coisas que, efetivamente, são separadas e unidas as coisas que, efetivamente, são unidas; ao contrário, estará no erro quem considera que as coisas são contrárias e a como efetivamente são.

Isto ficou bastante assentado na reflexão escolástica, que precede a filosofia moderna de Bacon, notadamente no axioma medieval que diz veritas est adaequatio intelectos et rei, a verdade é a adequação do ato de intelecção e das coisas. Podemos citar, à guisa de exemplo, Santo Tomás de Aquino em seu De Veritate:

A primeira consideração quanto a ente e intelecto é pois que o ente concorde com o intelecto: esta concordância diz-se adequação do intelecto e da coisa, e nela formalmente realiza-se a noção de verdadeiro. Isto é pois aquilo que o verdadeiro acrescenta ao ente, a saber, a conformidade ou adequação da coisa e do intelecto, a cuja conformidade, como se disse, segue-se o conhecimento da coisa: assim, pois, a entidade da coisa precede a noção de verdade, contudo o conhecimento é um certo efeito da verdade.

Na doutrina da tradição aristotélica há alguns supostos:

a. Há um mundo real.

b. No mundo real há ordem, e esta ordem consiste precisamente na causalidade: formal, material, eficiente e final.

c. O mundo real existe fora do sujeito e independe de qualquer operação psíquica.

d. O homem, porém, possui intelecto, e este intelecto tem o poder de conhecer esta ordem.

A título de diferença, entre a tradição aristotélica cristã e o próprio texto de Aristóteles, a primeira dita que esta ordem cósmica foi pensada e criada do nada por Deus. Haveria, portanto, para a filosofia cristã, dois movimentos de verdade: a adequação das coisas aos atos do intelecto divino, e a adequação do intelecto humano às coisas.

2.2. A recepção de Bacon

Os já citados aforismos I e XXIII do Novus Organum de Bacon parecem sugerir que o autor recebeu em parte esta tradição aristotélica consolidada.

No aforismo I, Bacon trata da capacidade do homem de conhecer a “ordem da natureza”. Aqui pressupõe justamente aquilo que de que trata os textos da tradição aristotélica: há uma ordem e o homem não só é capaz de conhecê-la, senão que consiste precisamente nisto a sua diferença específica.

O aforismo XXIII diz que as “marcas e impressões gravadas pro Deus nas criaturas” são “ideais da mente divina” (BACON, 1973, p. 23). Poderíamos nos alongar aqui e tratar de como Santo Agostinho operou a mudança fundamental do conceito de Ideia platônico para a Ideia como objeto arquetípico da mente divina.

Vem ao caso, porém, meramente evidenciar que Bacon insere-se nessa tradição que identifica o mundo como ordem pensada por Deus, cujo conhecimento humano é possível.

Dissemos que Bacon recebe esta tradição parcialmente.

Para a tradição aristotélica, o conhecimento é necessário para a ação, porém este não é o fim último nem do homem, nem do conhecimento. Ora, sendo o homem um composto substancial que tem por diferença específica o intelecto, o seu fim último é teorético: o homem é feito para contemplação da verdade. O conhecer é fim em si mesmo.

Bacon não admite isso. Para Bacon, conhecer é poder, isto é, o conhecimento tem por fim o poder de manipular as causas e efeitos do mundo, com vista à felicidade humana.

No aforismo III, diz Bacon (1973, p.21):

Ciência e poder do homem coincidem, uma vez que, sendo a causa ignorada, frustra-se o seu efeito. Pois a natureza não se vence, se não quando se lhe obedece. E o que à contemplação apresenta-se como causa é a regra da prática.

Para Bacon, o conhecimento das causas, sobretudo das causas formais e materiais, serve ao homem e à técnica. Conhecer, por exemplo, as formas dos metais permitiria ao homem modelá-las a fim de obter metais de liga mais leves, ou para fazer utensílios de cozinha. O conhecimento das formas das frutas, poderia dar ao homem o conhecimento de como mantê-las em estações climáticas adversas. (REALE, 1990, p. 343). A relação que se estabelece entre o intelecto e as coisas, deve ser vir à prática.

3. O problema fundamental do Novum Oganum

Partindo das reflexões elaboradas nas páginas anteriores, podemos construir o problema fundamental que o Novum Organum pretende enfrentar:

a. Há um mundo real.

b. Este mundo possui certa ordem.

c. Esta ordem consiste nas quatro causas fundamentais: formal, material, eficiente e final.

d. O homem é capaz de conhecê-la.

e. Este conhecimento teórico deve servir à prática. Conhece-se o mundo para dominá-lo e nele agir, em vista do maior conforto humano.

f. A técnica tem atingido notável conhecimento verdadeiro.

g. A filosofia, ao contrário, não consegue estabelecer verdades.

Portanto, segue-se a pergunta: Como é possível obter o conhecimento verdadeiro acerca dos objetos da filosofia?

Bacon localiza o problema da conceituação, isto é, na recepção abstrata das formas existentes na ordem real. Ainda movendo-se na tradição aristotélica, Bacon considera que o silogismo é a consideração de proposições utilizadas a título de premissas, com o fim de obter outra proposição. As proposições, por sua vez, são de tipo componente ou dividente entre conceitos. Se os conceitos, portanto, forem mal abstraídos, haverá problemas e falhas na formação das proposições e dos silogismos.

O silogismo consta de proposições, as proposições de palavras, as palavras são o signo das noções. Pelo que se as próprias noções (que constituem a base dos fatos) são confusas e temerariamente abstraídas das coisas, nada que delas depende pode pretender solidez. Aqui está porque a única esperança radica na verdadeira indução. (BACON, Aforismo XIV, 1973, p. 21)

Neste aforismo, Bacon fala de uma “verdadeira indução”, ao passo que a contrapõe, no aforismo XVI, à uma “indução vulgar” (BACON, 1973, p. 22).

O problema, segundo Bacon, está no método utilizado para operar a abstração conceitual. Aqui reside a crítica à lógica de Aristóteles. Curioso é notar a ironia no próprio título da obra de Bacon. Se os escritos aristotélicos que tratam do conhecimento foram reunidos e denominados Organum, Bacon propõe ao mundo um Novum Organum, um novo método de conhecimento.

À indução vulgar, o autor dá o nome de “antecipação da natureza”; à verdadeira indução, de “interpretação da natureza”.

Os nomes dados são bastante reveladores. Por antecipação, Bacon compreende a formulação conceitual daquilo que é mais universal pelo intelecto ativo sem suficiente observação da natureza. Por intepretação, Bacon entende a observação suficiente da natureza, que gera conceitos intermediários até ter fôlego suficiente para atingir os conceitos mais universais.

A antecipação gera opinião, a interpretação gera conhecimento.

Tanto uma como a outra via partem dos sentidos e das coisas particulares e terminam nas formulações da mais elevada generalidade. Mas é imenso aquilo em que discrepam. Enquanto que uma perpassa na carreira da experiência e pelo particular, a outra aí se detém de forma ordenada, como cumpre. Aquela, desde o início, estabelece certas generalizações abstratas e inúteis; esta se eleva gradualmente àquelas coisas que são realmente as mais comuns na natureza. (BACON, Aforismo XXII, 1973, p. 23)

As causas desta pressa na observação sensível da realidade, da antecipação que gera universalidades apressadamente, que gera noções falsas e impedem a verdadeira ciência, são chamadas “ídolos” e podem ser, segundo Bacon, de quatro tipos: ídolos da tribo, ídolos da caverna, ídolos do foro e ídolos do teatro.

Os ídolos da tribo consistem nos próprios desvios da natureza humana, na condição de limitação que o homem se encontra diante da complexa realidade. “O intelecto humano é semelhante a um espelho que reflete desigualmente os raios das cosias e, dessa forma, as distorce e corrompe” (BACON, Aforismo XLI, 1973, p. 27).

Os ídolos da caverna estão ainda dentro da natureza humana, porém são as dificuldades individuais. “Pois cada um — além das aberrações próprias da natureza humana — tem uma caverna ou uma cova que intercepta e corrompe a luz da natureza” (BACON, Aforismo XLII, 1973, p. 27). Aqui, pode-se colocar as leituras individuais, a autoridade de alguém admirado pelo sujeito, a tentação de construir um sistema a partir de uma pequena descoberta feita, etc. (REALE, 1990, 339). Consiste este ídolo, parece, na própria tendência soberba do homem para atingir um conhecimento universal sem grandes esforços.

O terceiro tipo de ídolos, os chamados ídolos do foro, são aqueles que nascem do convívio humano. Para Bacon, uma das marcas fundamentais da comunidade humana é a linguagem e esta pode ser perigosa; as palavras “bloqueiam espantosamente o intelecto” (BACON, Aforismo XLIII, 1973, p. 28). Segundo Reale (1990, p.339) os nomes das coisas podem ser dadas de maneira descuidada pelo vulgo, de maneira às vezes confusas e sem precisão conceitual. Além disso, ainda segundo aquele historiador da filosofia, o conjunto dos homens por convenção dá nomes a coisas irreais. Para Bacon, este tipo de nomeação imprecisa, confusa e obscura pode confundir o intelecto e ensejar raciocínios deturpados.

Os ídolos do teatro são os impeditivos decorrentes dos próprios sistemas filosóficos. Estes sistemas, dogmáticos que são, atuam sobre as mentes dando-lhes verdades tidas como certas ou certa estrutura lógica pronta e irrefletida, o que impede naturalmente o raciocínio mais profundos. Poderíamos falar em dogmatismo da tradição filosófica.

Dissemos que estes ídolos são as causas da antecipação à natureza, uma maneira de abstração conceitual que incita no homem certa rapidez irrefletida aos dados sensíveis, de maneira que fornecem logo princípios universais irrefletidos à razão. Os dois primeiros ídolos guardam relação com a própria natureza humana, o primeiro da espécie e o segundo individual, de forma que as paixões e a limitação do intelecto são causas dos conceitos obscuros. Os dois últimos ídolos são imposições externas ao sujeito, da comunidade dos homens, da linguagem, dos dogmas filosóficos.

O primeiro passo, portanto, para atingir um conhecimento verdadeiramente filosófico acerca das primeiras causas e dos princípios mais fundamentais, é operar a superação de todos os conceitos, mais ou menos gerais, que houverem na mente: vindos da natureza humana confusa, obtidos sem o devido cuidado e observação metódica, impostos pela linguagem ou por dogmatismo religioso.

Uma vez cumprida esta parte negativa, é necessário, então, partir à construtiva: por método científico, observar os aquilo que se apresenta aos sentidos humanos e daí induzir, com cuidado, método e observação cuidadosa, os princípios gerais que constituem o cosmos. Mas isto, é objeto para outro estudo.

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4. Bibliografia

AQUINO, Santo Tomás de. Questões disputadas sobre a verdade in: Verdade e Conhecimento. Trad. Luiz J. Lauand e Mario B. Sproviero. São Paulo: Editora WMF, 2011

ARISTÓTELES. Metafísica. Org. Giovani Reale. Loyola: São Paulo, 2002.

BACON, Francis. Novum Organum. Coleção Os pensadores, vol. XIII. Trad. J. A. Reis de Andrade. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

REALE, Giovanni. História da Filosofia: Do humanismo a Kant. São Paulo: Paulus, 1990.

Novum Organum, em sua edição de 1620.

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