O Judiciário que legisla, ou o ativismo jurídico

Rafael Bartoletti
Blog do Bart
Published in
7 min readJun 30, 2018

Caros, me deparei com esse texto escrito pelo Juliano Figueiredo de Mattos, que estudou Direito da UFPR, que me pareceu uma boa consideração a respeito dos fundamentos teóricos do ativismo jurídico e da atuação legisladora dos ministros togados do STF. Todo o crédito é dele. Os links estão no final do artigo.

Você perguntou por teorias que justifiquem isso [a atividade legisladora do Poder Judiciário]. Elas existem, mas nem sempre são tão óbvias assim. Quando eu estava na faculdade de direito, me ensinaram umas três ou quatro, mas ninguém nunca fala ou escreve abertamente “temos que subverter a separação de poderes”, “vamos dar poder infinito aos julgadores de forma a inutilizar os legisladores”.

Não sei qual a sua formação profissional, mas as palavras-chave que você precisa saber são:

  • Positivismo
  • Neoconstitucionalismo

1. Estou falando de positivismo JURÍDICO, não do positivismo francês que todo mundo conhece. São coisas diferentes, apesar de terem correlações.

O positivismo jurídico é o paradigma que guiou o direito contemporâneo. Foi fundado pelo jurista alemão Hans Kelsen no século XIX, que queria criar uma ciência pura e independente do direito, desvinculada de outras áreas do conhecimento como a sociologia, a história e a filosofia. Essa era a tendência da época, diversos ramos do conhecimento queriam “declarar independência” imitando os padrões das ciências naturais e se afastando de tudo o que parecesse “irracional” ou “metafísico”. Nisso ele criou uma teoria geral do direito absolutamente formalista, baseada no conceito de norma jurídica, separada e independente da moral, dos costumes, da metafísica.

Para ele, o direito só é norma jurídica, e norma jurídica é o que as instituições oficiais declaram como tal. Leis expressas, decisões judiciais, atos administrativos, etc, são então normas jurídicas simplesmente por serem formalmente válidas, e não por causa do seu conteúdo. Justiça, bem, moral eram conceitos que Kelsen afastava fervorosamente de sua metodologia, porque ele temia que eles ameaçassem a pureza e autonomia da ciência que ele queria fundar, subordinando-a à filosofia, etc.

Ele foi monstruosamente influente, e até hoje ninguém realmente conseguiu se livrar completamente do positivismo como fundamento estrutural do direito como é produzido e praticado. Porém, isso não significa que ele não tenha sido criticado e rejeitado.

2. No final da segunda guerra, com o julgamento de Nuremberg, a defesa dos oficiais nazistas era: “Estávamos cumprindo ordens. Estávamos cumprindo a lei.” Então, o positivismo de Kelsen foi completamente questionado, demonizado. Um direito puramente formal, oficial, sem fundamento material, permitia genocídio. A partir disso, os teóricos do século XX se empenharam em combater o positivismo, e criar alguma alternativa.

Porém, ninguém queria voltar ao paradigma anterior, chamado jusnaturalismo, a tradição clássica do direito com fundamentos morais e ontológicos que existia desde a filosofia grega e medieval. Até hoje isso é considerado “retrocesso”, ou ninguém nem entende direito o que é porque metafísica é um troço que saiu de moda com Kant.

Enfim, como superar o positivismo, compensar o formalismo frio, sem preencher o vácuo moral com as teoria morais clássicas, de fundamento objetivo? Isso teve um resultado duplo: de um lado, uma corrente neopositivista, que simplesmente tenta atualizar o positivismo, sem ser necessariamente kelseniana, e ora assume que é formalista, porque insiste que moral e justiça são coisas subjetivas, relativas e contingentes, ora finge não ser, porque senão nada garante a solidez dos direitos fundamentais; de outro lado, o neoconstitucionalismo.

3. Neoconstitucionalismo, às vezes chamado pós-positivismo, é a corrente que tenta preencher o vácuo moral do direito formal com alguma forma de valores materiais. Mas, já que a moral clássica aristotélico-tomista e a moral racionalista moderna são feias e reacionárias, eles preenchem com a moral progressista contemporânea. Direitos humanos, multiculturalismo, ambientalismo, proteção de minorias, etc e etc. E o principal meio de implementação dessa moral no direito é a constituição.

A constituição tem essa importância porque desde o nascimento das democracias modernas ela é o tipo de norma que encarna o pacto político de uma determinada sociedade, fundando e definindo um Estado e colocando limites ao seu poder na forma de direitos fundamentais.

Então, os neoconstitucionalistas pegam uma característica primordial das formas de Estado modernas, e a hipertrofiam. São alcoólatras de direitos fundamentais, e pensam que a solução para o perigo do formalismo permitir o arbítrio autoritário é mais direitos fundamentais, mais coisas enfiadas na constituição como cláusula pétrea, o que resulta numa verdadeira inflação constitucional. Não por acaso, nossa constituição de 88 é enorme e esmiuçada. Trata desde a forma de governo até alíquotas tributárias, fundo de garantia, reforma agrária e política urbana.

Em termos técnicos, os direitos fundamentais se dividem em categorias periódicas. Direitos fundamentais de primeira geração, segunda geração, etc. Os primeiros que surgiram, lá atrás, eram principalmente negativos, proibições à ação do Estado, e são as liberdades fundamentais da democracia (propriedade privada, direito de ir e vir, liberdade de expressão, etc). Da segunda geração em diante, temos direitos fundamentais positivos, coisas que o Estado é obrigado a dar ou proteger (direitos trabalhistas, meio-ambiente limpo e saudável, educação, saúde, etc). Esses são os tipos de direitos que os neoconstitucionalistas querem expandir. Vivem falando de direitos de terceira, quarta, quinta… enésima geração.

Eu não fui exatamente um aluno dedicado, mas era bem óbvio que o neoconstitucionalismo é absolutamente dominante no meio jurídico brasileiro. E ele não é só uma teoria geral do direito, abstrata ou só algo relevante para o direito constitucional. Dele derivam nas últimas décadas uma série de aplicações em áreas específicas do direito.

Quem frequentou um curso de direito ou ler as produções acadêmicas do país nos últimos anos verá uma profusão de tendências à constitucionalização de quase todos os ramos do direito. “Constitucionalização do direito civil”, “constitucionalização do direito tributário”, “constitucionalização do direito do consumidor”, “do direito penal”, do raio que o parta. Termos como “força normativa da constituição”, “eficácia horizontal dos direitos fundamentais”, “cláusulas gerais” são as ramificações capilares do neoconstitucionalismo, muito comuns e são a ponta de lança da ciência jurídica no país.

O Fachin, por exemplo, foi meu professor, e uma das maiores estrelas da faculdade de direito da UFPR. Sua obra inteira é dedicada a fazer uma teoria crítica do direito civil, uma desconstrução neomarxista da propriedade privada, do contrato e da família, sempre fazendo ponte com a expansão dos direitos fundamentais. Casamento deveria ser um direito fundamental, então não reconhecer casamento entre homossexuais é uma forma de restrição obscurantista das liberdades e garantias do indivíduo contra o impulso ditatorial do Estado e das classes majoritárias que o controlam. Da mesma forma, o direito pode interferir nos contratos e na propriedade privada se entender que algum direito fundamental está sendo violado, e assim por diante.

No direito penal, isso leva ao chamado garantismo penal, e, em última circunstância, ao abolicionismo penal. Para não dar poder punitivo demais ao Estado, de forma que ele possa usar a violência indiscriminadamente, como nos terríveis anos de chumbo Regime Militar, deve-se colocar limites e mais limites à ação da polícia e do judiciário em matéria criminal. Todo mundo sabe que só preto e pobre vão presos no Brasil, então o direito penal é um ataque genocida aos direitos fundamentais das minorias e classes baixas. Eu tive professores que afirmavam abertamente que leis penais são uma mentira, que todos nós alunos cometíamos crimes todo dia, mas não éramos presos por privilégio, logo, melhor seria acabar com o direito penal e, enquanto isso não é possível, fazer com que o Estado puna cada vez menos e menos.

4. Então, com essa proliferação de direitos fundamentais e penetração das normas constitucionais nos diversos campos do direito, é natural que a côrte constitucional fique mais relevante, mais poderosa, receba mais demandas. Afinal… tudo virou assunto constitucional e uma disputa por direitos fundamentais.

E não faltam meios de ação nas mãos dos julgadores do STF para justificar suas decisões. Sempre é possível pegar alguma teoria sobre a atuação dos juízes constitucionais que lhes dê ferramentas argumentativas. “Ponderação de princípios”, todos aqueles termos que eu já citei, termos em alemão. Tudo isso vem da ideia de que se os juízes não tiverem espaço de discricionariedade, se eles forem apenas “bocas da lei”, não tem como a moral, o bem e a justiça penetrarem na muralha formalista.

A não ser por via legislativa, mas isso está fora da alçada dos juristas, e os progressistas de gravata não querem contar com o processo democrático para fazer esse serviço. Eles sabem que não é certo se os legisladores vão acabar ou não criando leis com o conteúdo que eles querem, então ao invés de esperar até que uma nova emenda constitucional formalize algum novo direito explícito, eles justificam que os juízes criem novos princípios e direitos no ato mesmo de julgar. A isso eles chamam “aplicação do direito”, “interpretação normativa”, e outros eufemismos.

Mas isso não é só um poder dos juízes. Tenha sempre em mente que os pequenos déspotas de toga lá em cima têm um enorme respaldo teórico por trás. Eles só aplicam o que escolhem num rol de opções pré-disponíveis construídas na academia. Opções longamente formuladas e impregnadas como o mais alto padrão teórico. E o judiciário tem mais poder centralizado para formalizar essas tendências de forma imediata do que o legislativo. Bem… essa é a ideia do legislativo, que as normas jurídicas sejam produzidas por debates longos entre representantes legítimos do povo.

5. No final, é aquilo que o Olavo já falou várias vezes. Direitos não são nada senão obrigações em “voz passiva”, então criar mais é mais direitos, cria-se mais e mais obrigações que o Estado tem que cumprir. Para isso, é preciso então aumentar o aparelho estatal, a burocracia, a arrecadação de recursos, o que significa necessariamente o aumento e concentração do poder político, e não sua diminuição. O judiciário tem a vantagem de ser concentrado por natureza, como o executivo, mas sem ser eletivo como este e o legislativo, então se torna ideal para forçar mudanças normativas.

Post original, no perfil do excelente Santini

https://www.facebook.com/jose.santini.90/posts/2308586305823222

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