Uma breve leitura do “De Regno ad regem Cypri” de Tomás de Aquino: capítulo 1.

Por que os homens vivem em comunidade?

Rafael Bartoletti
Blog do Bart
Published in
7 min readApr 23, 2020

--

Notas preliminares:

a. Tomás não faz distinção no seu pensar entre filosofia e teologia, entre a vida humana natural e a vida sobrenatural. O homem é um todo, cujo fim último é Deus. Farei, porém, um esforço para me concentrar aqui nos aspectos da vida natural na polis, a fim de que o leitor não católico também possa aproveitar aquilo que de sabedoria meramente humana há nas reflexões de um grande homem, como o foi Tomás de Aquino.

b. Este texto é a primeira parte de uma série que deverá ser lançada semanalmente neste espaço. Entre neste link e clique em “follow” para receber em seu e-mail todas as nossas atualizações: https://medium.com/blog-do-bart

c. Um agradecimento especial ao Vinicius Cardoso, professor de letras antigas, que fez a revisão morfossintática deste ensaio. Acessem o seu canal, VINIeVERSOS no youtube clicando aqui. É um projeto bem legal que está nascendo.

d. Para contribuir com o nosso projeto, clique aqui.

1. Viver em sociedade: Uma necessidade natural do homem.

A vida em sociedade é, para Tomás, algo que decorre necessariamente da estrutura ontológica do ser humano. Para que se entenda isto, é conveniente, antes, destacar alguns pontos principais da antropologia tomista, que em muito deve à aristotélica.

Para o autor, o homem é um ente substancialmente composto, uma união substancial de alma racional e corpo — matéria; portanto, o homem nem é uma alma encarcerada num corpo, tampouco um corpo desprovido de alma, ou cuja alma não possui potência intelectiva. Dessa concepção substancial do homem decorre que o homem é capaz de conhecer, sensorial e intelectivamente, e é capaz de agir no mundo.

Para Tomás, toda ação humana é precedida de um juízo prático e se dá da seguinte maneira: o intelecto conhece algo e predica-o como bom, como fim de uma ação. Numa segunda operação, ainda da potência intelectiva prática, escolhe o melhor meio para alcançar tal fim (e aqui entram juízos de eficácia e morais); em seguida, a potência volitiva quer este algo bom e age para obtê-lo. Toda a vida prática é regida, assim, por um fim inteligido e por decisões prudenciais.

Diz Tomás (2017, p.28–29): “Hominis autem est aliquis finis, ad quem tota vita eius et actio ordinatur, cum site agens per intellectum, cuius est manifeste propter finem operari

Ora, é próprio do homem algum fim a que se ordene toda a sua vida e toda a sua ação, dado que age mediante o intelecto, cujo é manifesto para o fim a ser operado”

Se os homens fossem autossuficientes para sobreviver no mundo em solidão, à maneira como são alguns outros animais, bastaria, então, a luz da razão para que conhecessem o seus fins, predicasse-os como bons, e, por meio da vontade, agisse. O homem seria capaz de governar a si mesmo. Ocorre, porém, que dessa mesma ontologia do ser humano decorre a necessidade natural de viver em sociedade. Disso, dá Tomás duas razões.

2. Primeira razão: a carência humana

A primeira delas é a falta dos recursos necessários para viver no mundo existente num homem solitário.

Aliis enim animalibus natura praeparavit cibum, tergumenta pilorum, defensionem, ut dentes, cornua, ungues, vel saltem velicitatem ad fugam. Homo autem institutus este nullo horum sibi a natura praeparato.

Com efeito, aos outros animais a natureza preparou a comida, as peles, a defesa, como dentes, chifres, garras, ou ao menos velocidade para a fuga. O homem, porém, não é instituído de tais recursos preparados por natureza.

(AQUINO, 2017, p. 31–32)

O homem é provido naturalmente de inteligência, e, por meio do conhecimento técnico, é capaz de obter tudo o que lhe falta para a sobrevivência neste mundo, utilizando-se da ciência e do trabalho. Esta tarefa, contudo, não pode ser empreendida por um só homem: há marceneiros, médicos, juristas, professores, açougueiros, etc. Durante a sua vida, a pessoa singular empreende um caminho de especialização em certa seara da realidade, dado que, embora potencialmente o homem tudo possa conhecer, não há como numa só vida tornar todas essas potências, atos.

Só é possível unir todos os tipos de conhecimentos e técnicas capazes de assegurar o bem comum de cada homem se este estiver em comunidade, portanto.

O homem reúne-se em sociedade, então, por natural predisposição a doação de si, de sua vida, à outrem para o bem comum.

Est igitur necessarium homini quod in multitudine vivat, ut unus ab alio adiuventur

É, portanto, necessário ao homem que viva em multidão, de modo que um ajude ao outro” (AQUINO, 217, p. 33)

Operários — Tarsila do Amaral (

3. Segunda razão: a potência intelectual do ser-humano

A outra razão dada por Tomás para que o homem viva em multidão (usando a a sua expressão, in multitudine vivens) é essa mesma capacidade racional. O homem possui logos, razão. É capaz de conhecer e pensar, e comunicar este pensamento. Isto é próprio da natureza humana e, portanto, constitui uma das finalidades próprias do homem. Segundo a ordem cosmológica, é necessário que o homem viva em uma sociedade de falantes para que opere segundo aquilo que lhe é essencialmente próprio, o pensar e o falar.

Novamente, fala-se aqui em incapacidade do homem de realizar, numa só vida, toda a potencialidade de sua capacidade teorética, ele que é, em potência, tudo. Para contemplar melhor a totalidade do real o homem deve, por exemplo: ouvir e ler sobre aquilo que outros contemplaram a fim de conhecer o que não se conhece e corrigir aquilo que pensara conhecer. O homem necessita da comunidade para conhecer mais e melhor.

Um outro aspecto desta mesma capacidade noética é o falar: algo de que, neste mundo, apenas o ser humano é capaz. Estritamente falando — aqui me valho do vocabulário de Edmundo Husserl nas suas Investigações Lógicas — os signos emitidos por outros animais são meramente índices daquilo que subjetivamente eles sentem. Não são expressões que “apontam” para outras coisas além do emissor. Ao contrário, os signos emitidos pelos homens expressam algo daquilo que eles inteligiram do mundo.

Tal capacidade realiza-se plenamente apenas na comunidade de outros falantes, de tal modo que cada um possa dizer a outrem aquilo que pensou.

4. Uma terceira razão: a virtude

Embora esta razão não seja desenvolvida como fundamento para a vida em comunidade no De Regno, podemos inferi-la de outros textos de Tomás de Aquino, como a Segunda Parte da Segunda Parte da Suma de Teologia, onde são descritas as virtudes morais.

Que são virtudes? Virtudes são o aperfeiçoamento da vontade, de tal maneira que o homem queira e aja de acordo como agiria um homem bom e sábio.

Muitas dessas virtudes são aperfeiçoamento do agir em relação a outrem. Vejamos como exemplo a justiça.

Illud enim in opere nostro dicitur esse iustum quod respondet secundum aliquam aequalitatem alteri.

Com efeito, em nosso agir diz-se justo o que corresponde ao outro, segundo uma certa igualdade.

(AQUINO, IIa. IIae., q. 57, a. 1, respondeo, 2014, p. 47)

A justiça é definida por Tomás da seguinte maneira:

Iustitia este habitus secundum quem aliquis constanti et perpetua voluntate ius suum unicunque tribuit.

A justiça é o habito segundo oqual, com constante e perpétua vontade, dá-se a cada um o seu direito.

(AQUINO, IIa. IIae., q. 58, a. 1, respondeo, 2014, p. 56)

Para ser virtuoso, o homem deve-o ser em toda ou na maior parte de suas ações: tanto mais virtuoso será quanto maiores virtudes tiver. Portanto, o homem virtuoso só o será plenamente dentro da sua comunidade, quando souber agir com relação a outrem de tal maneira que aja vendo o outro como si mesmo.

Essa e outras virtudes, embora possam ser inteligidas, não se desenvolvem na vontade senão pela própria repetição da ação virtuosa, com certo esforço.

Com efeito, só é possível viver em plenitude a vida das virtudes se em comunidade.

5. Conclusões desta primeira parte.

É preciso, ao ler essas páginas, ter em mente que a vida feliz é, para Tomás, a perfeição de todas as potencialidades de um ente qualquer. Um leão teria uma “vida feliz” na medida em que fosse o mais perfeito dos leões. O homem tanto mais feliz será quanto maior for a realização de todas as suas potencialidades.

Tais potencialidades estão como que inscritas na própria substância do ser. A substância humana é “animal racional”. Portanto, a vida feliz é aquela orientada à perfeição das capacidades animais e racionais do homem.

Tais capacidades incluem, de maneira ordenada, a preservação da própria vida, a satisfação das necessidades fisiológicas, a vida virtuosa e o desenvolvimento da contemplação especulativa.

Ora, todas as potencialidades são impossíveis de serem elevadas à perfeição senão na vida comunitária, que possibilita, no convívio com os seus semelhantes, a dotação ao sujeito daquilo que lhe falta e a plena realização daquilo que nele está ordenado substancialmente para a relação a outrem.

O homem é um animal social. O homem é um animal que possui logos. Essas duas propriedades humanas, já expostas por Aristóteles, são recuperadas por Tomás para demonstrar que, neste mundo, é necessário que o homem viva em sociedades com outros homens.

Bibliografia

AQUINO, Tomás. Do Reino e Outros Escritos. Trad. Carlos Nougué. São Luis, MA: Livraria Resistência Cultural Editora; Santo André, SP: Armada, 2017

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. VI Volume. Trad. coord. Carlos-Josaphat Pinto de OLiveira, OP. São Paulo, SP: Edições Loyola, 2005.

--

--