Afinal, o que é literatura?

Jacob Paes
Blog do Book4you
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5 min readMay 4, 2017
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Em 2016, o anúncio do vencedor do Prêmio Nobel de Literatura gerou certa polêmica, para dizer o mínimo. A surpresa foi grande ao Bob Dylan ter sido escolhido pela Academia Sueca. Logo o debate teve início: o trabalho do músico pode ser considerado literatura?

No Brasil, Carolina Maria de Jesus, ex-catadora de papel que ganhou projeção mundial nos anos de 1960 com sua obra — um relato sobre a vida na favela — foi homenageada recentemente pela Academia Carioca de Letras, e sua obra, colocada em xeque pelo professor Ivan Cavalcanti Proença, que declarou: “O livro ‘Quarto de Despejo’ não é literatura. Ouvi de muitos intelectuais paulistas: ‘Se essa mulher escreve, qualquer um pode escrever’”. (Mais detalhes sobre a história aqui).

Um estudo feito neste ano no Reino Unido acabou tocando na questão "o que conta como Literatura?". Isso porque a Royal Society of Literature buscava apresentar um panorama atual dos hábitos de leitura no Reino Unido e acabou tomando uma decisão curiosa como ponto de partida: em vez de classificar o que é e o que não é literatura, deixou os entrevistados definirem a partir de seus próprios termos o que entrava ou não na classificação ao tentarem responder às perguntas. Assim, o estudo trouxe alguns destaques para essa discussão.

O termo

Segundo o dicionário Aurélio, Literatura é a "arte de compor trabalhos artísticos em prosa ou verso". O Oxford, por sua vez, tem uma definição um pouco diferente: são “obras escritas, especialmente aquelas consideradas de mérito artístico superior ou duradouro” — definição mais próxima a algumas das adotadas pelo Michaelis na língua portuguesa: "Arte de compor escritos, em prosa ou em verso, de acordo com determinados princípios teóricos ou práticos" ou "o conjunto das obras literárias de um país, um gênero, uma época etc. que, pela qualidade de seu estilo ou forma e pela expressão de ideias de interesse universal ou permanente, têm reconhecido seu alto valor estético".

Portanto, as definições não ajudam a tirar a dose de subjetividade da questão. De acordo com o escritor e crítico Jonathan Gibbs, em artigo publicado no The Times Literary Supplement (TLS) comentando exatamente o mesmo estudo, o termo “Literatura” sempre vai ser contestado, uma vez que "carrega consigo o aroma de valor, e assim o elitismo".

No estudo, foram entrevistados 2 mil britânicos e 75% deles, dentro da ideia aberta do que é Literatura, consideraram ter lido algo literário nos últimos 6 meses. Isso sugere que essa arte seria muito mais popular do que os críticos da área gostariam de dizer, afinal, quase todo mundo estaria lendo Literatura — claro, considerando a sua própria definição do termo.

Outra constatação interessante é a de que apesar de a maioria da população leitora ser mulher (54%), os entrevistados ainda elencaram autores homens e brancos com maior representatividade entre aqueles considerados "literários". Dos 400 autores citados, apenas 31% são mulheres e 7% são do grupo de negros, asiáticos ou mestiços. A pesquisa também revelou que os entrevistados desse grupo leem menos do que a população em geral. Por outro lado, os britânicos citaram um bom percentual (44%) de nomes estrangeiros e fizeram uma divisão equilibrada entre autores vivos (51%) e mortos (49%).

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Mas, afinal, quem escreve Literatura?

De acordo com a pesquisa, os britânicos consideram Literatura obras de William Shakespeare (citado 210 vezes), Charles Dickens (184 vezes) e J.K. Rowling (132 vezes). Em quarto lugar, aparece Roald Dahl, único fora do pódio com mais de 100 citações (101). O top 10 é formado ainda por Jane Austen (59), Stephen King (40), George Orwell (32), as irmãs Brontë (30), Enid Blyton (26) e J.R.R. Tolkien (25). Nomes mais populares vêm na sequência: Dan Brown em 11º lugar, James Patterson em 13º e Agatha Christie em 15º. 20% dos entrevistados não souberam citar um autor considerado literário.

Além do romance, gênero tido como Literatura por 90% dos entrevistados, poesia (89%) e contos (78%) foram os dois tipos de obras mais citados. Na sequência, vêm os livros infantis (74%) e históricos (73%). Mas os britânicos também elencaram livros de cozinhar (23%), guias de viagem (31%), jornal (32%) e até artigos on-line ou de blogs (33%) como Literatura.

Então o que é Literatura?

É claro que a pesquisa não foi capaz de chegar a uma definição mais precisa para o termo. E não é difícil entender por que. Como bem apontou Gibbs no seu artigo do TLS, "a Literatura pode ser pensada como uma superestrutura que cresce organicamente (ou é construída) em cima de livros". Eles "falam uns com os outros, e os leitores falam uns com os outros, e assim a cultura se acumula, surge como produto de experiências de leitura, mas também, inevitavelmente, nutrindo e influenciando as experiências de leitura por vir".

Um exemplo de como a classificação do que se encaixa ou não no termo pode ser escorregadia é 'O Diário de Anne Frank'. Visto na época de sua escrita, dificilmente seria considerado uma obra literária. Mesmo assim, tornou-se uma com o passar do tempo. "Isso significa que a 'Literatura' não pode ser definida de forma programática, examinando apenas as características do texto. Como ele é retomado e tratado pela cultura mais ampla tem um impacto também".

Mas Gibbs não acredita que a Literatura seja uma "moeda desvalorizada" por conta disso: "aceitá-la como um termo que tem usos variados e contextuais não deveria torná-lo menos útil para aqueles que fazem o seu uso máximo. Afinal, foi a pesquisa que levantou a questão do que é Literatura, não os entrevistados. Se você perguntasse à pessoa que lê Jeremy Clarkson ou Doreen Virtue [e os classificou como Literatura] o que ela estava lendo, a resposta não seria 'Literatura'; eles diriam 'um livro'”.

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Jacob Paes
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Editor de livros, graduado em Produção Editorial e estudante de Letras/Italiano. No tempo livre, curte séries, filmes, carros e, claro, livros @tresemeiopodcast