Carta aberta à prefeita Maura Jorge
Prezada prefeita,
Embora sejamos conterrâneos, a senhora e eu nascemos e crescemos em condições absolutamente diferentes. Filha de família abastada, a senhora trilhou um caminho que se julga natural a uma pessoa de sua origem: estudou em boas escolas, acessou bons livros e cursou uma boa faculdade.
Filho de retirantes cearenses que se estabeleceram definitivamente em Lago da Pedra no início dos anos de 1970, fugindo das intermináveis secas que assolaram a sertão por anos, a mim restou lutar contra uma realidade de sofrimento que se impunha, de sorte que por muito tempo não consegui ter acesso aos mesmos bens educacionais que a senhora teve.
Como alternativa, me “exilei”, a exemplo de muitos conterrâneos meus, em paragens mais ao Sul do país, mais especificamente na cidade do Rio de Janeiro. Aqui, de agrura em agrura, consegui superar em certa medida o que o meu Maranhão havia me negado: o acesso a uma educação pública e de qualidade.
Com esforço, dedicação e uma boa dose de teimosia consegui ser aprovado no vestibular em uma universidade pública, algo antes inimaginável para mim. Fui cursar Biblioteconomia e tornei-me bibliotecário. “Biblio o que?”, deve a senhora estar se perguntando.
Não julgo sua ignorância sobre o tema, pois, assim como a senhora, eu também não sabia sequer da necessidade de se fazer uma faculdade para virar bibliotecário até eu decidir que seguiria essa carreira. Da realidade de onde vim, ou seja, de Lago da Pedra, onde a senhora é hoje prefeita e que sua família domina politicamente há pelo menos 40 anos, as bibliotecas eram (e me parecem ainda ser) instrumentos culturais absolutamente desconhecidos.
Embora seja consenso que as bibliotecas não estejam mais restritas aos livros, foram estes que me libertaram da ignorância para a qual eu parecia estar condenado quando deixei o Maranhão, quando deixei Lago da Pedra. Livros de bibliotecas públicas, comunitárias, universitárias, escolares, todos acessados gratuitamente.
A leitura me fez alçar vôos não só profissionais, me fazendo além de bibliotecário, um entusiasta e militante da área do livro, leitura e bibliotecas, mas também me fez crescer espiritualmente, reconhecendo e respeitando as diferenças, sendo mais solidário e combativo, inclusive politicamente, me fazendo desejar que todos tenham oportunidades iguais as que eu tive.
Em função disso, não posso deixar de lamentar que o quadro de insuficiência de bibliotecas no qual o Maranhão, em geral, e Lago da Pedra, em particular, estão inseridos. Talvez a senhora desconheça os dados, prefeita (ver aqui),mas o Maranhão tem hoje uma biblioteca pública para quase 31 mil habitantes, sendo que destas, uma apenas se encontra em Lago da Pedra.
Como não poderia deixar de ser, a biblioteca lagopedrense rende homenagem a uma figura execrável dos tempos mais sombrios da história recente do Brasil: Jarbas Passarinho.
Sendo a senhora uma pessoa estudada, prefeita, a senhora sabe muito bem que foi Jarbas Passarinho, enquanto ministro de estado, o signatário do Ato Institucional Número Cinco (AI5), escancarando a ditadura civil-militar no Brasil. “Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência”, disse ele se dirigindo ao presidente Costa e Silva por ocasião da assinatura do AI-5, instrumento político-jurídico que consubstanciou a repressão, torturando, exilando e matando centenas de opositores ao regime.
Escrúpulos de consciência, a propósito, é o que me parece faltar a senhora, prefeita, quando veta um projeto que instituiria uma Rede de Bibliotecas Escolares no município que a senhora administra com o argumento de que este geraria gastos à administração ou que este não é de interesse da população.
Igualmente a ausência de escrúpulos de consciência parece ter se assentado sobre os vereadores, aliados seus, que mantiveram o seu veto, contrariando suas (dos vereadores) próprias posições quando aprovaram (na fase legislativa) por unanimidade o projeto de lei de autoria do vereador Ariel Marinho, o qual ajudei a elaborar.
Ao vetar o referido projeto, prefeita, a senhora contribui com a perpetuação de uma realidade histórica de aversão aos instrumentos culturais nessa região. Não é segredo pra ninguém que o que falta de bibliotecas, museus, teatros etc., sobra de bares em Lago da Padre, ensejando uma onda cada vez mais crescente de violência, prostituição, consumo de drogas, acidentes de transito e toda sorte de desgraças que acarreta especialmente os mais jovens que deveriam ter nos instrumentos culturais uma válvula de escape, uma alternativa a essa realidade.
Conforme o Manifesto IFLA/UNESCO para bibliotecas escolares, este tipo de biblioteca “habilita os estudantes para a aprendizagem ao longo da vida e desenvolve a imaginação, preparando-os para viver como cidadãos responsáveis”. Ainda de acordo com o referido Manifesto, “a biblioteca escolar é essencial a qualquer tipo de estratégia de longo prazo no que respeita a competências à leitura e escrita, à educação e informação e ao desenvolvimento econômico, social e cultural”, sendo a responsabilidade sobre estas principalmente das autoridades locais, como é o seu caso, prefeita.
Isso quer dizer, prefeita, entre outras coisas, que o seu veto contraria as determinações das organizações internacionais de direito humanos, como esta da Federação Internacional de Associações e Instituições Bibliotecárias (IFLA) da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Sobretudo no Maranhão, o estado da federação com o menor número de bibliotecas escolares por escolas (15,1% das escolas maranhenses possuem o equipamento segundo os dados do censo escolar de 2014), dado que julgo também não ser do seu conhecimento, prefeita.
A sanção do projeto poderia representar, inclusive, prefeita, a oportunidade de emprego para bibliotecários que se formam todos os anos na Universidade Federal do Maranhão, em São Luiz, a apenas 300 quilômetros de Lago da Pedra, incluindo ai filhos dessa terra que quisessem desenvolver sua atividade profissional próximo a sua terra natal. Mas parece que isso também não lhe interessa.
O seu gesto, prefeita, bem como o gesto dos nobres vereadores, lhes faz perder a oportunidade de dar um passo adiante, um passo positivo frente ao histórico de descaso ao qual o Maranhão parece estar relegado. Queira a providência divina que nossos filhos e netos, incluindo os da senhora e dos seus vereadores (o que é pouco provável, pois logo logo estarão na capital, estudando em uma boa escola particular), não tenham de pagar por este ato infeliz.
Mas como nunca é tarde para se redimir. Sugiro ao vereador Ariel Marinho que reapresente a proposta na próxima sessão legislativa, se o regimento da Cassa Legislativa local assim o permitir, e que a prefeita sancione o projeto, instituindo a Rede Municipal de Bibliotecas Escolares do Município de Lago da Pedra, trazendo a este povo tão sofrido pelo menos um pouco de fé nesta tão desacreditada política.