Texto justificativo do Prémio de Ensaio PEN Clube 2016

penclubeportugues
Os Eixos da Língua
6 min readDec 20, 2016
Marinela Freitas, premiada de Ensaio

Isabel Cristina Mateus, Teresa Salema e João David Pinto Correia

Cumpre-me, na qualidade de porta-voz do Júri do Prémio de Ensaio PEN Clube 2016 constituído por Teresa Salema, presidente do PEN Clube Português, por João David Pinto Correia e por mim própria, dizer aqui algumas breves palavras e, desde logo, felicitar os vencedores ex-aequo, por unanimidade, deste prémio: Paulo de Medeiros com O Silêncio das Sereias: ensaio sobre o “Livro do Desassossego” (Tinta-da-China) e Marinela Freitas com o ensaio Emily Dickinson e Luiza Neto Jorge: Quantas faces?(Afrontamento).

E de os felicitar redobradamente, tendo em conta o ano de excepcional qualidade ensaística patente na short list que oportunamente o PEN Club divulgou e da qual faziam parte ensaios de vulto como os de António Marques A filosofia e o Mal. Banalidade e radicalidade do mal de Hannah Arendt a Kant; Pedro Eiras, Platão no Rolls-Royce: Ensaio sobre a Literatura e a Técnica e Ricardo Gil Soeiro, A Sabedoria da Incerteza: Imaginação Literária e Poética da Obrigação (Broch, Coetzee, Lispector, Llansol e Vila-Matas).

Começaria talvez por dizer que a atribuição deste prémio ex-aequo constituiu um desses encontros improváveis entre dois ensaios distintos que, aproximando metodologias, estéticas, tempos e espaços diversos, estabelecem um diálogo a várias vozes, não menos imprevisto mas surpreendentemente iluminador. Um diálogo que, a partir de três grandes autores representativos, procura problematizar a essência da escrita e o papel do escritor na modernidade, considerada desde as origens oitocentistas à sua expressão mais “tardia”, quero dizer, desde as origens ao tempo presente que é o nosso. Resgatando estes autores da sombra da discrição que, em maior ou menor grau, os envolve (em particular, Emily Dickinson e o enigma da sua auto-reclusão), procurando captar as múltiplas faces de rostos que permanecem esquivos, fazendo incidir sobre eles variações de luz ou de perspectiva, surpreendendo-os, interrogando-os, na tentativa de uma leitura nova ou renovada, mas em qualquer dos casos, desafiante.

Se estas foram razões determinantes para a escolha do Júri, convém sublinhar que nesta decisão pesou igualmente o facto de as duas obras vencedoras terem sido concebidas de raiz como um ensaio e não como uma recolha de textos dispersos ou dissertação em torno de um tema, mesmo se em ambos os casos a escrita surge profundamente ancorada às circunstâncias da vida académica e às exigências do rigor científico: no caso de Paulo de Medeiros, trata-se de um ensaio editado em primeira mão como obra original e, no de Marinela Freitas, trata-se de uma tese de doutoramento que foi refundida para publicação, como a alteração do título indicia.

Naturalmente, entende-se aqui o ensaio quer na acepção original de Montaigne, enquanto escrita de si, quer na acepção benjaminiana e adorniana enquanto forma aberta, instável, escrita a bordo dos dias e dos saberes, numa aproximação progressiva e desassossegada do objecto que, neste caso, é tantoo enigma da escrita de Bernardo Soares/Pessoa, de Emily Dickinson e Luiza Neto Jorge quanto a dos dois ensaístas que a si mesmo se buscam e se ensaiam no objecto de investigação, nas sucessivas aproximações, hesitações, modulações e fulgurações do pensamento que perseguem, nas conexões e imagens que entretecem o gesto de escrever. Ousando pensar-se, no gesto de ir rasgando caminho por entre as ruínas do que já foi pensado.

É, de alguma forma isso mesmo que afirma Paulo de Medeiros na “Nota Prévia” ao sublinhar que a escrita deste ensaio é o resultado de um longo processo de questionamento, um meio de encontrar respostas para as diversas perguntas de índole teórica que durante vários anos o desassossegaram no âmbito da leccionação de um seminário de pós-graduação sobre o Livro do Desassossego. Neste sentido, diz o ensaísta, ter-se-lhe tornado claro “que só através da escrita um pouco mais sistemática e desenvolvida poderia encontrar algumas respostas possíveis. O Livro do Desassossego é, antes de mais, um anti-livro, que coloca em questão, de forma absoluta e radical, muitos dos pressupostos da literatura. E fá-lo, antes de mais, através da técnica do fragmento. Seria tentador então, ao escrever sobre o Livro do Desassossego, fazê-lo igualmente através de fragmentos. (…) Daí a escolha do ensaio como forma mais apropriada de responder a alguns dos desafios colocados pelo texto de Pessoa; um ensaio fragmentado em pequenos ensaios, cada um dirigido a um aspecto individual do texto”.

Longe de ser mais um livro a acrescentar à vasta bibliografia pessoana, O Silêncio das Sereias representa assim, em primeiro lugar, o gesto de ousadia que caracteriza todo o ensaio. Uma tentativa de abordagem daquele que é porventura o texto mais enigmático e complexo de Pessoa (desde logo no que diz respeito a questões de autoria, de alteridade, de heteronímia, de textualidade e de representação), mas também um admirável esforço de síntese, tendo em conta a torrente da bibliografia pessoana e a actualizada rede de relações que estabelece com diversos autores centrais da modernidade, desde logo com Kafka que inspirou o título deste ensaio. Uma tentativa de abordagem que recorre à mesma “técnica” utilizada no Livro do Desassossego, procurando cercá-lo através da rede da escrita, de um conjunto de pormenores significantes, de imagens-tema e de fragmentos que se oferecem ao leitor como única bússola possível para navegar neste diário do acaso. E dessa forma iluminando, aqui e ali deixando entrever o rosto de Bernardo Soares de quem Pessoa disse um dia ser o seu “semi-heterónimo” mas que a si próprio se define como sendo “ninguém” ou “nulo”, uma “vida lida”. Navegação sem fim que, tal como no inacabamento do Livro do Desassossego, se configura como inquietação infinita, um permanente desassossego que, em última instância, apenas o canto ou o silêncio das sereias da escrita pode expressar e, porventura, apaziguar. O Silêncio das Sereias é um ensaio de navegação, a vários títulos, notável.

Se a sedução das palavras e os seus perigos, mas também a imaginação e o sonho constituem no Livro do Desassossego uma forma de resistência à mediocridade e aos tempos de indigência que são hoje os nossos, essa resistência manifesta-se igualmente, ainda que por vias distintas, na escrita de Emily Dickinson e de Luiza Neto Jorge que o ensaio de Marinela Freitas procura acompanhar e desmontar. Trata-se igualmente de um ensaio notável, até pela dificuldade acrescida de um duplo objecto de reflexão, pela profundidade crítica de que se reveste, pela escolha de duas grandes poetas da transgressão e da opacidade da linguagem. Um ensaio que, como sublinham as prefaciadoras Ana Luísa Amaral e Rosa Martelo, é, em certo sentido, pioneiro ao procurar conciliar uma visão prospectiva e uma visão ou visitação retrospectiva da modernidade. É essa perspectiva movente, em constante oscilação ou deslocação, que a forma do ensaio traduz construindo-se como permanente interrogação, abrindo caminhos para um “abismo de possibilidades” mais do que para um conjunto de respostas, justamente um aspecto que o júri não poderia deixar de valorizar.

Neste sentido, desenhando-se como tentativa de desvendamento do rosto de duas mulheres poetas, de invenção ou reconstrução de um diálogo de faces que se olham através do espelho do Atlântico, do biombo da distância temporal e espacial, o ensaio de Marinela Freitas procura uma leitura do mundo moderno a partir do lugar de uma fala feminina e do seu gesto primitivo, genesíaco, de desnomeação do mundo, de (re)invenção da palavra e da língua que lhe dá forma e o diz. Gesto simultaneamente transgressor e criador que tanto Emily Dickinson e Luiza Neto Jorge, convergindo ou divergindo no desenho, souberam, levar a cabo e que Marinela procura interrogar e dar a ver.

Pelo contributo precioso que Paulo de Medeiros e Marinela Freitas deram com estas obras ao prestígio do ensaio como género, pelo rasgar de novos caminhos de reflexão e de leitura que as suas obras representam, pela forma como interpelam o leitor, cumpre-me apresentar, em nome do Júri do Prémio de Ensaio PEN Clube, as maiores felicitações a ambos e desejar que, para além do reconhecimento do seu trabalho, o Prémio que hoje aqui vão receber possa constituir um estímulo para a escrita de novos ensaios, um desafio para novas e ousadas navegações.

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