Ruínas Jesuíta-Guaranis, parte 1: Aspectos Históricos e Planos de Viagem

Leo Cavallini
Blog Leo Cavallini -  Portugues
9 min readJun 22, 2017

Esta é uma série de cinco posts sobre uma viagem recente de ônibus e bike na Argentina e Paraguai para explorar as missões jesuítas do século XVII na América do Sul

(Read in english here)

Ilustração em um mapa da América do Sul de 1649 (Fonte: Biblioteca Digital Hispánica)

Planos de viagem

Após estudar um pouco sobre os assentamentos jesuítas na América do Sul, decidi fazer uma viagem de bike de Foz do Iguaçu, Brasil, às ruínas das reduções missionárias na província nordeste argentina de Misiones e no departamento sul paraguaio de Itapúa.

Toda a região, incluindo o estado brasileiro do Rio Grande do Sul, tem 30 ruínas jesuítas onde 7 são consideradas Patrimônio Universal da UNESCO.

Quanto à viagem, eu ficaria com quatro dessas ruínas:

  • San Ignacio Miní, Misiones, Argentina
  • Nuestra Señora de Santa Ana, Misiones, Argentina
  • Jesús de Tavarangüé, Itapúa, Paraguai
  • La Santísima Trinidad del Paraná, Itapúa, Paraguai

A ideia inicial era cobrir as distâncias de bicicleta saindo de Foz do Iguaçu para as cidades argentinas de San Ignacio e Santa Ana, depois a Posadas para atravessar ao Paraguai pela ponte internacional até Encarnación, terminando em Trinidad e Jesús de Tavarangüé.

Mas devido à janela de tempo que eu tinha disponível entre trabalhos em São Paulo, tive que fazer a maior parte da minha rota de ônibus e levei minha bike junto para cobrir pequenas distâncias. Outra forte razão pela qual decidi por isso foi que eu tenho uma bike de estrada e pelo menos metade da rodovia entre Foz do Iguaçu a San Ignacio, a Ruta Nacional 12, não tinha acostamento asfaltado, um monte de quilômetros era pista simples e existe um tráfego pesado de ônibus doubledeckers e caminhões. Considerando que a RN-12 é a estrada principal em Misiones que conecta a província ao Brasil e ao resto da Argentina, não queria correr esse risco.

A viagem é possível de bike? Sim. Se você tem uma gravel ou uma mountain bike. Os acostamentos não-asfaltados são cobertos de terra, grama ou cascalho.

Em resumo, meu plano de viagem acabou sendo:

  • 🚲 Foz do Iguaçu, Brazil, a Puerto Iguazú, Argentina, de bike: 13 km
  • 🚌 Puerto Iguazú a San Ignacio Miní de bus: 243 km
  • 🚲 San Ignacio Miní a Santa Ana de bike: 17 km
  • 🚌 Santa Ana a Posadas de bus: 48 km
  • 🚌 Posadas, Argentina, a Encarnación, Paraguay, de bus (Pedalar ali é proibido. Você também pode ir de trem): 10 km
  • 🚌 Encarnación a Trinidad de bus: 31 km
  • 🚲 Trinidad a Jesús de Tavarangüé de bike: 13 km

Voltando:

  • 🚲 Jesús de Tavarangué a Trinidad de bike: 13 km
  • 🚲 Trinidad a Encarnación de bike (não consegui embarcar em um ônibus): 35 km
  • 🚌 Encarnación, Paraguay, a Posadas, Argentina, de bus: 10 km
  • 🚌 Posadas a Puerto Iguazú, de bus: 302 km
  • 🚲 Puerto Iguazú, Argentina, a Foz do Iguaçu, Brazil, de bike: 13 km

Nos próximos quatro posts eu falo da logística e aspectos turísticos de cada lugar. Informação útil tanto para um ciclista, um mochileiro ou um turista de fim de semana.

Aspectos Históricos

As Missões Jesuíta-Guaranis da Companía de Jesús

A Companía de Jesús ou Companhia de Jesus foi fundada em 1540 pelos padres católicos espanhóis Ignacio de Loyola e Francisco Javier em Paris. Alguns dos missionários — os jesuítas — foram enviados ao final do século XVI aos territórios espanhóis na América do Sul, a porção oeste de acordo com o Tratado de Tordesilhas (1494). A porção leste era território português, Brasil atualmente. Suas principais tarefas eram expandir a exploração das terras espanholas e catequizar os nativos.

Ilustração de 1640. Um querubim carregando um nativo, representando as vontades da Companía de Jesús em converter os nativos.

Em 1608 os jesuítas chegaram à região do Río de La Plata vindos do Peru e fundaram a primeira missão, San Ignacio Guazú, onde a cidade de San Ignacio, Paraguai, se localiza hoje. Os próximos 25 anos viram a criação de 42 novas missões em toda a região. As reducciones, citadelas lideradas pelos jesuítas serviam também para proteger os guaranis dos ataques portugueses. Diferentemente do tratamento dado pelos portugueses que os escravizavam, desde 1596 cada carinha indígena dentro de uma missão jesuíta era considerado súdito do rei, portanto protegido de se tornar escravo nas mãos dos colonos españoles.

As citadelas eram compostas basicamente por uma praça central cercada pelas viviendas, as casas indígenas, uma igreja, um cemitério, o colegio e os talleres ou oficinas onde os nativos podiam aprender ofícios ocidentais. As estruturas eram todas construídas em pedra e madeira.

Concepção 3D de San Ignacio Miní. Todas as missões espanholas jesuítas eram construídas seguindo este padrão. Uma praça cercada por causas, a igreja ladeada pelo colégio e o cemitério, as oficinas e uma pequena fazenda (Créditos: Trexel Animation para Proyecto Experience).

Jesuítas e guaranis viveram juntos em paz: se por um lado o povo guarani era leniente e foi conquistado facilmente, por outro lado os jesuítas também eram permissivos quanto às tradições culturais dos nativos. Um sistema político liderado tanto por padres quanto por caciques administrava as reduções com sucesso.

As reduções foram bastante ricas econômica e culturalmente falando, trazendo proteção aos guaranis e elevando seu padrão de vida. Enquanto eles se tornaram monogâmicos e sedentários, puderam manter suas tradições e conhecimentos em esculpir madeira, fazer objetos de cerâmica, cozinhar com fogo, agricultura rudimentar, fazer roupas com couro de animais. Os nativos aprenderam novas técnicas como esculpir em rochas, manipular ferro e prata, costurar de modo mais avançado e foram introduzidos à cozinha européia com novas plantas trazidas pelos jesuítas e outras comidas e bebidas desconhecidas como vinho e queijo. As reducciones próximas costumavam comercializar umas com as outras.

Os jesuítas ainda introduziram a pólvora em suas vidas, melhorando suas técnicas de guerra com o uso de cavalos e armaduras de metal, enquanto mantiveram o uso de arco e flecha. Música foi outro tema de aprimoramento: enquanto os nativos já tocavam tambores e chocalhos, cantavam e dançavam, foram introduzidos a instrumentos musicais mais avançados como os de corda.

Mapa francês de 1656 mostrando a América do Sul. O Paraguai tinha um território muito maior, com terras onde hoje é Brasil, Uruguai eArgentina

No mapa acima, estamos falando sobre a área amarelada com o território limitado em amarelo e verde. Essa era a Província do Paraguay, muito maior que é hoje. A porção azul no topo à direita era o território português do Brasil.

A porção leste dessa região nos interessa especialmente: a região do Guayrá, o estado brasileiro do Paraná hoje. Lá foi fundado originalmente uma das missões que visitei, San Ignacio Miní. A região era densa em florestas e selvas, usadas pelo povo guarani para escapar dos portugueses e mamelucos.

O local tinha 15 citadelas em território paraguaio, sendo casa de mais de 100 mil nativos.

República do Guayrá. Todo o mapa incluindo as áreas em b ranco representa o estado brasileiro do Paraná hoje.

Em 1627 a região começou a ser invadida pelos Bandeirantes portugueses vindo do estado brasileiro de São Paulo — território português na época — para capturar guaranis e fazê-los escravos. Primeiro, ao redor das reduções e depois os Bandeirantes invadiram e destruíram as citadelas. As invasões capturaram mais de 60 mil guaranis.

Em 1631, os índios da região do Guayrá que sobreviveram se concentraram nas duas últimas reducciones que permaneceram intactas: San Ignacio Miní e Loreto. Mas era questão de tempo para que as duas citadelas fossem invadidas, então uma grande expedição foi organizada pelo padre Pablo Ruiz de Montoya: os 12 mil nativos restantes, 10% da população original, construíram mais de 700 canoas de madeira e navegaram Rio Paranapanema abaixo, ao norte da região, até encontrar com o Rio Paraná, a oeste.

Quando a expedição passou pela Ciudad Real del Guayrá, encontraram dificuldades: encomenderos tentaram pará-los e a região era local de uma sequência de sete cachoeiras, as Sete Quedas. Os índios tiveram que se desfazer de todas as canoas e continuar pela selva. Lá, 2 mil outros índios da redução de Tayaoba juntaram-se à expedição e alcançaram as reduções de Natividad del Acaray e Santa María del Iguazú, onde receberam ajuda para seguir em frente. Essas reduções hoje são Ciudad del Este no Paraguai e Foz do Iguaçu no Brasil respectivamente.

Em 1632, os jesuítas e 4 mil índios restantes se assentaram e refundaram as reduções de San Ignacio Miní e Nuestra Señora de Loreto no local onde estão hoje, na região sul da província de Misiones, Argentina. Esse episódio ficou conhecido como o Êxodo Guayreño.

Outra redução que visitei na região, Nuestra Señora de Santa Ana, foi construída na mesma década e está a poucos quilômetros de San Ignacio Miní e Nuestra Señora de Loreto, todas na província de Misiones.

Os trinta povos: 7 no Brasil, 8 no Paraguai e 15 na Argentina

Mais de um século depois, Portugal e Espanha assinaram o Tratado de Madrid em 1750, onde Portugal abria mão da Colonia del Sacramento (Uruguai hoje), a cidade mais próxima de Buenos Aires cruzando o Río de La Plata e um posto avançado português que oferecia perigo e vulnerabilidade para a espanhola Buenos Aires. Em troca, a Espanha cederia a porção escrito “Brasil” na figura acima, as Misiones Orientales na margem oeste do Rio Uruguay — a linha cinza dividindo Brasil e Argentina.

Agora imagine o cenário: sete reducciones, 30 mil guaranis vivendo em paz com os jesuítas por mais de um século. Os padres de repente chegam pra eles e dizem “vamo embora galera, a gente precisa cair fora”. Oras, terra é algo importante para os nativos, é onde seus parentes estão enterrados, eles vivem e se alimentam da terra e estão felizes assim. E agora é território português, expondo os nativos novamente à opressão portuguesa. Eles não podiam compreender isso, como uma decisão poderia mudar suas vidas assim e obrigá-los a simplesmente se mudar.

Então aconteceu a Guerra Guarani de 1754 em diante, após esforços do exército espanhol de retirá-los falharem. O conflito acabou em 1756 com a Batalha do Caiboaté, quando um bem-bolado entre os exércitos de Portugal e Espanha pulverizaram 1500 guaranis enquanto tiveram apenas 4 mortes de europeus. As quatro reduções no território agora-brasileiro foram tomados pelos portugueses ou abandonados. Portugal decretou a expulsão oficial dos jesuítas de suas terras.

A redução do território paraguaio em mapa de 1766

Em um panorama geral, o sucesso econômico das missões jesuítas e sua relativa independência da Coroa Espanhola levantou suspeitas de que poderia haver alguma disputa separatista a qualquer momento. Esse medo culminou na expulsão dos jesuítas de todo o território espanhol nas Américas sob ordem do Rei Carlos III em 1767, exatamente dez anos depois que Portugal lançou essa moda.

Todas as reduções foram tomadas por outras ordens cristãs como os Franciscanos, Dominicos e Mercedários ou deixadas ao abandono.

Ilustração acima: plano de uma redução e a lista populacional de 32 citadelas com seus nomes em latim em 1767, data da expulsão jesuíta. As que visitei: S. Anna, S. Ignatius Mini, Jesus and Trinitas (2a coluna).

De 1900 em diante, esforços de restauração foram feitos pelos três países vizinhos, culminando em sete reduções terem sido consideradas Patrimônio Universal UNESCO: San Ignacio Miní, Nuestra Señora de Santa Ana e Nuestra Señora de Loreto, todas na Argentina, Jesús de Tavarangüé e La Santísima Trinidad no Paraguai e a brasileira São Miguel das Missões.

A série

  • Ruínas Jesuíta-Guaranis, parte 1: Aspectos Históricos e Planos de Viagem
  • Ruínas Jesuíta-Guaranis, parte 2: San Ignacio Miní, Argentina
  • Ruínas Jesuíta-Guaranis, parte 3: Nuestra Señora de Santa Ana, Argentina
  • Ruínas Jesuíta-Guaranis, parte 4: Jesús de Tavarangüé, Paraguai
  • Ruínas Jesuíta-Guaranis, parte 5: La Santísima Trinidad del Paraná, Paraguai

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Leo Cavallini
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Yep, that's Don Corleone with a cycling helmet! Professional photographer, amateur cyclist, used Medium as my former studio blog. Based in London, Canada.