Ruínas Jesuíta-Guaranis, parte 2: San Ignacio Miní, Argentina
Esta é uma série de cinco posts sobre uma viagem recente de ônibus e bike pela Argentina e Paraguay para explorar as missões jesuítas do século XVII na América do Sul
Neste post você verá fatos históricos e fotos da minha visita, seguido por informações turísticas. Todas as imagens foram tiradas por mim, a menos que indicado.
Reducción Jesuítica de San Ignacio Miní, Misiones, Argentina
Como dito no primeiro post da série, a redução jesuíta de San Ignacio Miní foi fundada primeiramente em 1609 na região do Guayrá, onde hoje é o norte do estado brasileiro do Paraná. Fugindo da invasão dos bandeirantes portugueses vindo de São Paulo em buscas de escravos indígenas, os jesuítas e guaranis das reduções de San Ignacio e Nuestra Señora de Loreto migraram em 1629 para a margem leste do Rio Paraná, mais precisamente para os bancos do Rio Yabebiry. As ruínas são localizadas hoje na porção sudoeste da província de Misiones.
Era uma tarde de outono, passado das 4h. O céu azul com poucas nuvens quando cheguei nas ruínas de San Ignacio. Bike acorrentada na bilheteria, ingresso comprado, uma rápida conversa com a equipe que me convidou a entrar em um antigo prédio em frente da entrada por um extra de ARS 30 pesos. Pulei essa etapa, já era tarde e a melhor luz banhava o lugar. Não podia perder isso.
“No princípio”, os pontos cardeais: leste, oeste, direita, esquerda
É importante ter em mente que todas as reduções jesuítas foram construídas da mesma forma: o padre reza a missa olhando para os fiéis e voltado para o norte, assim a luz do sol na manhã atinge as janelas do lado direito da igreja vindo do leste e fecha o dia banhando as paredes a oeste, do lado esquerdo.
Assim que você entra no parque em direção à fachada da igreja, você está caminhando sentido sul. Então irei me referir a locais citando os pontos cardeais: esquerda significa oeste, direita significa leste.
Isso posto, adelante.
Entrando no parque…
…um caminho cruza um setor de selva, terminando numa clareira onde pode-se ver as ruínas da igreja principal, a uns 200 metros da entrada. Um casal idoso passa por mim e me cumprimenta em castellano. Ir direto à igreja é tentador mas a luz na selva está fascinante.
As viviendas
Qualquer coisa mais velha que 100 anos me faz cair de amores instantaneamente. E esse pedaço de selva tinha isso.
Em ambos os lados do caminho estavam as casas dos nativos, as viviendas, construídas em pedra e coberta por vegetação e musgo.
As casas dentro da selva eram dos índios comuns, uma casa por família. As casas na beirada da clareira e próximas à igreja eram destinadas aos caciques.
Plaza de armas ou plaza central
Conforme perambulei pela selva, ela se abriu para um campo aberto, a plaza de armas ou plaza central.
A plaza central é cercada pelas viviendas dos dois lados, as mais ao centro, dos caciques. No lado oposto da igreja havia duas construções longas, os cabildos, uma espécie de conselho onde decisões entre índios e jesuítas eram tomadas. Havia também duas capelas, uma para os homens e outra para as mulheres, onde se rezava de manhã e à noite.
A igreja principal estava na minha frente. As paredes do colégio, citada aqui posteriormente como patio de los padres, está do lado direito da igreja, às paredes a leste. E ao lado esquerdo, o cemitério a oeste.
Não sei se era a intenção mas é uma boa analogia pensar que educação e trabalho eram feitos onde o sol nasce e o cemitério representando o fim está localizado onde o sol se põe. Até mesmo o batistério está a leste e a sala de funeral a oeste (vale notar que as duas ruínas que visitei no Paraguai são ao contrário, não sei por que).
Apesar de ser um destino bem popular turisticamente, o lugar estava praticamente vazio, com exceção de uma criança e seus pais que logo sumiram de vista. Me senti sortudo por isso.
Fachada
A igreja
Conforme dito antes, o padre reza a missa olhando para o norte, então as janelas a leste e oeste recebem o máximo possível de luz solar para iluminar a igreja, até mesmo dando uma atmosfera sagrada ao interior do lugar.
O colégio
Do lado direito da igreja, a leste, está o claustro, o patio de los padres ou jardim dos padres.
O local também é conhecido como colégio, consistindo numa praça certada por uma fileira de cômodos ao sul: as classes, a cozinha, o refeitório e as despensas. Dividido por um corredor próximo mais à leste, outra praça com uma construção e mais cômodos, as oficinas.
O local está ricamente decorado em suas escadas, paredes e colunas, a começar pela porta, como se lê na placa:
PORTA AO CLAUSTRO
(Jardim dos padres)
Esta que em sua parte superior mostra uma lápide com motivos simbólicos. Uma água com uma coroa imperial, mais abaixo uma serpente em atitude agressiva e uma sereia. Ao centro, a insígnia jesuíta.
As salas de aula
Na parte dos fundos do patio de los padres e à direita da igreja estão as salas de aula.
Este era o local para as crianças aprenderem latim e espanhol, ler e escrever e catolicismo.
Um corredor dividia outra praça mais a leste. É onde as oficinas estavam localizadas. Seguindo o corredor e ao lado das classes estava a cozinha e o refeitório.
A horta e o pomar
Na parte sul do parque e atrás do prédio com as salas de aula, cozinhas e despensas, havia uma rica horta, a huerta.
Nessa área das reduções jesuítas, eles costumavam cultivar uma grande variedade de comida trazida da Europa ou introduzida pelos nativos: legumes como batata, mandioca, milho, batata doce, cana-de-açúcar, cenoura, feijão, repolho, frutas como pêssegos, laranjas, maçãs, limões, plantas medicionais e a yerba-mate guarani, um chá que podai ser consumido como bebida quente chamada mate (o equivalente do chimarrão no Rio Grande do Sul) pela manhã e uma bebida gelada à tarde chamada terere (o tereré do Mato Grosso do Sul), misturado com ervas refrescantes como a hortelã.
Eles também criavam animais para carne e derivados de leite, transporte e couro para roupas, artigos de uso diário e religiosos.
Como em outros aspectos, essa mistura cultural provia uma troca para os jesuítas e os nativos, onde alguns hábitos alimentares ainda se mantém atualmente nas Américas e também foram levados além-mar.
As oficinas
Próximo ao colégio e o patio de los padres, dividido por um corredor que leva à cozinha e ao refeitório, estão as oficinas.
Lá, um edifício com cômodos e outro pátio foram usados para a produção de peças de madeira, ferro, prata, tecidos, cerâmica, esculturas, rosários e também uma padaria.
A trincheira na foto da direita abaixo era um canal que coletava água da chuva dos telhados e direcionava a um tanque.
O cemitério
À esquerda da igreja, a oeste, estava o cemitério, consistindo num jardim rico em árvores e medindo o mesmo comprimento da igreja.
Os guaranis acreditam que as pessoas se transformam em terra após a morte, então terras é algo importante porque eles ficam felizes de estarem próximos de seus familiares que já se foram.
Na área do cemitério e ao lado da entrada principal da igreja estava a sala de funeral. Quando uma morte ocorria, o funeral costumava durar 48h para ter certeza que a pessoa estava realmente morta e não em coma. Mas devido às altas temperaturas na região, o funeral durava apenas 24h para evitar a alta decomposição do corpo.
Fechando a conta
Terminei o tour pelas ruínas jesuítas de San Ignacio Miní fotografando mais um pouco das viviendas durante o pôr-do-sol, cujas fotos estão no começo do post. Também persegui alguns quero-queros ariscos e fiz as fotos finais ao cair da noite.
Eu tinha que cair fora logo, já que o show sonido y luces (leia abaixo) começaria às 7h da noite, show que não quis pagar à parte. Eu estava cansado. Mantive o GPS no bolso o tempo todo e depois descobri que havia caminhado quase 4km distribuído em 2h30 de exploração. Mas estava feliz, encantado com as descobertas que fiz e os fatos que havia aprendido antes: os restos de uma história peculiar na colonização da América do Sul onde europeus viveram em paz com índios por quase dois séculos, até mesmo defendendo-os de outros europeus.
Un muchas gracias especial ao estúdio 3D de Buenos Aires Trexel Animation por gentilmente emprestar as concepções gráficas que ajudaram a ilustrar este texto. Estas imagens são parte do projeto multimídia executado pela empresa Proyecto Experience nas ruínas e podem ser apreciadas nos totens espalhados pela plaza central. Veja o Behance deles para saber mais sobre este trabalho.
Fotos antigas
Algumas fotos antigas que encontrei principalmente em sites argentinos antes dos trabalhos de restauração. É curioso ver como a selva tomou o lugar de volta.
Créditos: Tarjetas Postales Argentinas, todocoleccion, Visitemos Misiones, Región Litoral, Argentina Patrimonial
Informações turísticas: como cheguei lá
Cheguei à cidade de San Ignacio vindo de São Paulo. Peguei um voo para Foz do Iguaçu, a famosa cidade brasileira das Cataratas do Iguaçu que faz fronteira com Argentina e Paraguai. Pedalei de Foz a Puerto Iguazú, a primeira cidade na Argentina e então para San Ignacio de ônibus.
Foz do Iguaçu > Puerto Iguazú
A partir de Foz do Iguaçu eu podia chegar a Puerto Iguazú de bike. São 13km de distância do centro de Foz e fiz um rápido bate-e-volta para checar os horários de ônibus para San Ignacio e também comprar um chip da Claro (ter internet durante a viagem veio a ser uma mão-na-roda posteriormente). Depois, parei na Feirinha para uma garrafa de Quilmes e algumas empanadas. O local é uma espécie de feira de rua com cerveja, vinho, queijo, azeitonas, jamón, empanadas, alfajores e outros quitutes. Logo returnei ao Brazil pedalando minha amada magrela.
Você pode visitar Puerto Iguazú de ônibus saindo do centro de Foz. Se você não é brasileiro ou argentino, precisa desembarcar duas vezes para ambas as aduanas para registrar sua saída e entrada respectivamente e repetir o processo no caminho de volta para o Brasil. O ônibus te dá um tíquete onde você pode subir nos próximos ônibus para continuar o itinerário.
Também usei o dia anterior à partida para comprar alguns pesos argentinos (ARS) e guaranis paraguaios (PYG) em Foz do Iguaçu. Existem algumas casas de câmbio na Avenida Brasil, no centro.
DICA: Você pode saber se está pagando bem por algo durante a viagem ao pesquisar no Google: 10 BRL in PYG e ele retornará o valor de R$ 10 reais em guaranis.
Puerto Iguazú > San Ignacio
Manhã seguinte, Puerto Iguazú saindo de Foz de bike outra vez. A rodoviária (la terminal) também está no centro como a feirinha.
Lá você pode comprar uma passagem para San Ignacio com algumas companhias de ônibus. Comprei a minha com a Rio Uruguay, que me custou AR$ 285 pesos (US$ 18, R$ 60). Você também pode embarcar no ônibus e pagar pela passagem ao cobrador durante a viagem.
O ônibus é super confortável e tem uma porção de partidas em um dia, incluindo viagens noturnas. Dura aproximadamente 5h e você ainda ganha uns lanchinhos durante a viagem de graça.
Minha bike foi deitada no bagageiro sem precisar ter as rodas removidas e sem custo extra. Lembre-se: o lado direito da bicicleta e os câmbios precisam estar voltados pra cima.
San Ignacio: infos básicas e opções de hospedagem
Chegando à rodoviária de San Ignacio Reaching San Ignacio, você tem que cruzar a rodovia para a cidade. Próximo ao portal da cidade você encontra um posto policial e uma cabana de informações lado a lado. Eles podem te dar um mapa da cidade e recomendar algumas opções de hospedagem.
Primeiro tentei o San Ignacio Adventure Hostel que custa AR$ 185 pesos (US$ 12, R$ 38) para um quarto compartilhado mas acabei ficando num quarto single noHospedaje El Descanso por AR$ 250 (US$ 16, R$ 51).
Uma rápida ducha e fui às ruínas de bike, 1,6km do El Descanso.
As Ruínas da Missão Jesuíta de San Ignacio Miní
O ingresso é válido para as quatro ruínas da região sem custo extra, é só você chegar com o ingresso em mãos e apresentar.
Residentes de Misiones: AR$ 40 (US$ 3, R$ 9)
Ex-patriados argentinos: AR$ 50 (US$ 4, R$ 11)
Argentinos: AR$ 110 (US$ 7, R$ 23)
Latino-americanos: AR$ 150 (US$ 10, R$ 31)
Estrangeiros: AR$ 180 (US$ 12, R$ 37)
(Preços em maio de 2017)
Lembre-se de informar sua nacionalidade para ser cobrado devidamente. Acabei pagando AR$ 30 pesos a mais porque não informei que era brasileiro e eles também não pediram pelo meu passaporte ou qualquer outro documento. Descobri isso na segunda ruína que visitei, Santa Ana.
E visite o museu! Ele trará informações adicionais ao lugar. Pulei essa parte e me arrependo.
Não vandalize, mantenha seu lixo consigo ou descarte-o apropriadamente
Desnecessário dizer. O local existe há séculos, é um mardito Patrimônio Mundial da UNESCO. Não escreva seu nome lá. Se não encontrar um cesto de lixo próximo, mantenha o lixo em seu bolso até que você vá embora. Incluso bitucas de cigarro, que você pode armazenar em uma sacola ou no plástico do maço.
Nota: tenho uma teoria que a segunda foto abaixo podem ser assinaturas dos restauradores. Que eu não concordo de qualquer maneira, mas quem sabe… tem um texto bacana sobre os esforços de restauração, vale a pena ler.
Coma adequadamente e carregue uma garrafa d’água!
A visita pode durar alguns quilômetros e você vai andar pra caramba, eu andei quase 4km. Antes de entrar, comi uma empanada e tomei uma Budweiser atravessando a rua. Lembre-se que os preços são um pouco salgados comparados a outros lugares na cidade, é na frente do mardito lugar! Também peguei uma garrafa d’água, que eu recomendo bastante, a maioria das ruínas não tem cobertura. Você também pode ir ao mercadinho na esquina para um pacote de bolachas, turrón y mani (torrone) e água, cerveja, refrigerante…
Show Luz y Sonido
Outra atração das ruínas que pulei foi o show luz y sonido (luz e som), uma experiência multimídia que acontece à noite e vai te custar outro tíquete (este válido somente em San Ignacio somente).
De volta à base
Saindo das ruínas no começo da noite, fui ao mercadinho da esquina para algumas porcarias e bananas. No caminho para El Descanso, parei em outro mercadinho e tive uma conversa bacana com a dona. Ela é de origem alemã — aquela região e o sul do Paraguai são bastante populados por alemães. Dona Delia Schimmelpfennig. Disse a ela que existe uma importante avenida em Foz do Iguaçu chamada Jorge Schimmelpfeng e ela prontamenre respondeu “era meu tio”. Depois descobri que foi o primeiro prefeito de Foz, a 240km dali.
Um banho quente no El Descanso, o desayuno na próxima manhã assistindo à fofoca argentina e preparei a bike e malas para partir pra Santa Ana, 13km descendo a RN12, que percorri no pedal.
A série
Os outros posts sobre esta viagem serão atualizados aqui nos próximos dias. Fique ligado: siga-me aqui no Medium, Facebook, Instagram, Behance, Tumblr…
- Ruínas Jesuíta-Guaranis, parte 1: Aspectos históricos e planos de viagem
- Ruínas Jesuíta-Guaranis, parte 2: San Ignacio Miní, Argentina (você está aqui)
- Ruínas Jesuíta-Guaranis, parte 03: Nuestra Señora de Santa Ana, Argentina
- Ruínas Jesuíta-Guaranis, parte 4: Jesús de Tavarangüé, Paraguay
- Ruínas Jesuíta-Guaranis, parte 5: La Santíssima Trinidad del Paraná, Paraguay