A poesia do cotidiano dos J-dramas

Luana Marino
blogADQSV
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9 min readAug 25, 2019

Eu comecei a minha vida de dorameira pelos J-dramas, em meados dos anos 2000. Gostava muito do ator Takeshi Kaneshiro, e depois de assistir ao filme “O Clã das Adagas Voadoras”, fui caçar outros trabalhos dele e me deparei com uma espécie de série de TV de apenas 12 EPs, mas que depois descobri não ser uma série, mas sim uma novela asiática — dorama, o nome.

A novela em questão era “Kamisama, mou sukoshi dake”, o primeiro dorama que vi na vida. Acompanhei a história de Masaki, jovem que descobre ser portadora do vírus HIV, e seu romance com Keigo (Kaneshiro), produtor musical em eterno luto após a perda da esposa. É uma história densa, que além de abordar a Aids ainda fala de prostituição e bullying sem entrelinhas (Masaki contrai Aids por se prostituir em troca de dinheiro para ir ao show de Keigo).

Kyoko Fukada e Takeshi Kaneshiro em Kamisama, mou sukoshi dake

Outro dia, revisitando algumas cenas, percebi o quão poéticos são os J-dramas em sua forma de contar a história — algumas vezes trágicas, como a descrita acima. Assim como os dramas coreanos, encontramos vários gêneros de doramas, de comédias românticas a suspenses. Mas o forte das histórias japonesas é o estilo chamado “slice of life”¹, que, de certa forma, acaba se destacando em qualquer que seja o gênero.

Digo isso porque tenho visto alguns J-dramas e notado essa “simplicidade complexa”, pois estamos diante de uma história comum, que envolve personagens comuns, com ocupações comuns, que retratam cenas muito comuns, mas que são carregadas de uma emoção singular.

Vem comigo entender um pouco esta forma tão única que eles têm para contar uma história.

A história na perspectiva de um personagem

Se os k-dramas de certa forma são construídos para mexer com as emoções, isso fica ainda mais evidente quando assistimos aos dramas japoneses. A diferença, no entanto, está na forma como tudo é construído, na narrativa de cada um. É muito comum em J-dramas, por exemplo, a presença da narração sob o ponto de vista de um dos personagens principais.

Kamisama, mou sukoshi dake começa com o personagem de Kaneshiro no alto de um prédio, à noite, e sua voz em narração ao fundo fazendo metáforas sobre a distância que separa vida e morte. A história é de Masaki, mas ela se desenvolve do ponto de vista deste homem ferido e desacreditado da vida.

Agora vamos para um exemplo mais recente, já que até agora só falei de um dorama de 1998 (!): Anone (2018). É daquelas histórias em que acompanhamos o crescimento dos personagens e amadurecimento de cada um por meio dos relacionamentos apresentados, sobretudo entre a jovem Harika e a senhora com quem ela vai morar, mas da mesma forma como acontece em “Kamisama”, em grande parte teremos a narrativa vista pelos olhos da menina.

Anone (2018)

E enquanto esses personagens vão vivendo, vamos conhecendo seus medos, frustrações, sonhos e impressões do que acontece ao redor. E é nesse “simples” cotidiano que o conflito nasce, que a história se desenvolve, que o clímax acontece.

Tudo na construção do J-drama, aliás, é muito simplista. Se fôssemos fazer uma analogia, muitos doramas têm cara de filme independente, daqueles feitos com baixíssimo orçamento. E tirando a imagem um pouco melhor (e as roupas mais modernas, diga-se), a sensação de ver um dorama é de viagem no tempo. Ver a abertura de Anone, por exemplo, te deixa com dúvidas de estar assistindo a uma produção do século XXI.

O som do silêncio

A ausência de músicas tocando o tempo inteiro nas cenas também é muito característico. O que temos geralmente em J-dramas é uma trilha instrumental, conhecida como BG (background, em inglês, ou fundo musical). Mas nem sempre ela está lá, é muito comum ter cenas inteiras sem músicas, às vezes até sem diálogos. E como são tais cenas? Ora, são nada mais do que imagens do cotidiano, inseridas para compor aquela narrativa.

Em Kamisama, logo após descobrir que Masaki contraiu o vírus HIV, Keigo caminha por uma praça, senta-se em um banco e começa a observar as pessoas ao seu redor. Ali há crianças brincando, artistas de rua, casais conversando, ir e vir de pessoas. E ele está reflexivo. No final, temos o flashback de uma frase dita pela menina a ele, uma frase, apenas. A cena não volta para aquele momento, não sobe uma música com letra. Apenas o BG o acompanha enquanto ele está ali, lembrando do que ela disse.

Agora pense: quantas vezes você não parou no meio do seu dia e viveu uma situação exatamente assim? Não que tenha ido para o meio de uma praça, mas essa pausa existiu para uma simples reflexão, ou mesmo para respirar?

Conversando com uma seguidora no Twitter que é muito fã de J-dramas, a querida Suca, ela falou sobre a impressão que tem dessa peculiaridade das histórias. “Há muito espaço para contemplação e silêncio nos roteiros, já que a vida real é assim, pausas para respirar no meio do caos, chorar no banho para ninguém ouvir, fechar os olhos e lutar contra a frustração no banheiro do trabalho, sorrir comendo um lámen com croquete sozinho em casa, depois de um dia puxado… Tudo tenta mostrar reações e situações muito cruas e simples, para que a gente como espectador se identifique mesmo, para mexer com tudo que levamos dentro de nós e não temos coragem de pensar ou trazer para fora, porque vai gerar muita dor e trabalho. Com j-dramas, isso não é possível, eles jogam as verdades na sua cara e muitas vezes nos poupam algumas sessões de terapia.”

Há um nome, na verdade, para esse silêncio na história, e ele é ainda melhor explicado quando se olha para o cinema, sobretudo para a obra do diretor Hayao Miyazaki. O canal no YouTube “EntrePlanos” explica que o nome dado em japonês para essa pausa é “Ma”, vazio.

Certa vez, ao entrevistar Miyazaki, o crítico de cinema americano Roger Ebert disse que adorava o que ele chamou de “movimento gratuito” nos filmes do cineasta japonês. “Em vez de todo momento ser ditado pela história, às vezes os personagens vão apenas sentar por um momento, ou vão suspirar, ou olhar um córrego, ou fazer algo extra. Não para avançar a história, mas apenas para dar uma sensação de tempo, de espaço e de quem eles são”, disse Ebert. O Ma nada mais é do que uma ausência que permite que algo se manifeste através dela.

A Viagem de Chihiro, de Miyazaki (2001)

O pós-guerra e a identidade japonesa

Agora, não é por acaso a inclusão de tantas cenas comuns, com as quais nos identificamos tanto. Para entender essa construção e sua importância na história, é preciso voltar um pouco para o período do pós-guerra, que corresponde aos anos 50. O Japão saiu derrotado da Segunda Guerra Mundial e precisou literalmente juntar os seus cacos para se reerguer. Uma das estratégias foi criar uma imagem ocidentalizada, mesclando sua cultura com a americana — que àquela altura, passou a exercer forte domínio sobre o país asiático. E graça à famosa estratégia do “se não se pode vencê-los, junte-se a eles”, o Japão foi o primeiro país não-ocidental a se recuperar da SGM e experimentar um rápido crescimento e desenvolvimento econômico.

No livro “Intercultural communication in Japan: Theorizing Homogenizing Discourse”, os editores: Satoshi Toyosaki e Shinsuke Egushi explicam que o hibridismo é sintetizar as culturas ocidentais com a distinção do Japão. “Na década de 1980, os agora famosos dramas japoneses da moda (ou os chamados dramas de ídolos, ‘idol dorama’ em japonês) começaram a atrair a atenção de um número crescente de mulheres trabalhadoras e mulheres jovens no Japão. Esses dramas da moda apresentavam histórias de amor trágicas e românticas como suas histórias centrais, acompanhadas por marcos famosos no Japão e música afetiva. Tokyo Love Story e Long Vacation foram dois dos muitos dramas japoneses bem recebidos na Ásia. Esses dramas tornaram-se, mais tarde, uma das principais razões para o aumento do turismo japonês no leste e no sudeste da Ásia nos anos 90.”

Long Vacation (meu xodó ❤)

“Iwabuchi (2001a; 2001b) afirma que as audiências taiwanesas, em particular, consumiram os J-dramas porque conscientemente associaram os temas centrais desses dramas aos seus estilos de vida e realidades”, segue o texto. No livro “Imagining Japan in Post-war East Asia: Identity, Politcs, Schooling and Popular Culture”, os editores Paul Morris, Naoko Shimazu e Edward Vickers analisam qual é a imagem que o Japão tem em seus países vizinhos, e um desses objetos de estudo que vão construir tal imagem são os doramas.

“Em Taiwan, o gênero mais popular de drama japonês provou ser o romance. O apelo deste tipo de série é, em parte, pelo fato de eles explorarem temas contemporâneos através das dificuldades e dilemas dos personagens. Tokyo Love Story (1991) — o drama que começou a ‘Japan Mania’ — retrata pessoas jovens em relacionamentos complexos e suas lutas frente aos desafios da vida. O mesmo tempo, o cenário cotidiano dá sensação de realismo à história. […] Dramas japoneses sempre focam no dia a dia, o que me leva a crer que os japoneses vivem daquele jeito”, diz um trecho do livro.

Esse apelo ao slice of life é mais que estratégico. Mesmo tendo saído da Segunda Guerra Mundial derrotado, aos olhos de seus vizinhos, o Japão sempre foi visto como um inimigo, uma nação, de certa forma, opressora (as feridas da Coreia do Sul são expostas vez ou outra em produções que retratam o trágico período da ocupação japonesa). Era preciso construir uma imagem “normal” para os que vivem ao seu redor, e a produção cultural funciona como força motriz para isso.

Comparado aos K-dramas, os J-dramas não possuem mais tanta força entre o público que consome novelas asiáticas. No Brasil, por exemplo, o auge dos “doramas” foi entre os anos 2005 e 2010, uma época em que fazer download de série poderia levar o dia, dependendo da qualidade da sua conexão. O catálogo de J-dramas, contudo, era vasto, mas muitos fansubs perderam seus arquivos com o fim do Megaupload em 2012.

Taiyou no Uta: dos doramas clássicos difíceis de encontrar

Essa perda de território, não só no Brasil como também no resto da Ásia, porém, se deveu muito pela onda coreana, a estratégia pesada do governo em transformar sua cultura em um produto tão atraente e rentável, uma verdadeira terra dos sonhos — basta ver o espaço cada vez maior conquistado na gigante de streaming Netflix, que tem pagado verdadeiras fortunas às emissoras coreanas para ter o direito de colocar o seu “Original Netflix” em alguns dramas.

Mas não parece ser do interesse do Japão fazer frente às produções coreanas com uma possível “onda japonesa”. Se a Coreia hoje possui produções que muito se assemelham a filmes, com fotografia digna de cinema, investimento milionário em produções e cast de pôr inveja em atores de Hollywood, o Japão segue a mesma fórmula do seu pós-guerra: contar a história através do simples cotidiano.

É uma beleza singular. E o que mais fascina é a complexidade que algo tão simples pode ter. Assistir a um J-drama é ter a certeza de estar diante de algo completamente diferente e que pode trazer ao espectador as mais diferentes sensações. Diálogos e monólogos transbordam sentimento, mas sem serem sentimentalistas. Não há emoções forçadas; tudo, porém, é construído para envolver os sentidos de quem assiste.

Quem está acostumado com dramas coreanos e seu cuidado estético pode até estranhar aquela produção tão simplista. Mas digo sem medo de ser exagerada: você nunca verá nada parecido com um dorama japonês na sua vida.

Texto escrito com colaboração de Suellen Fonseca (fake asian).

Glossário

  1. Slice of life: fatia de vida, termo usado para definir séries e demais produções que focam no cotidiano.

Fontes:

Academia.edu
Hayao Miyazaki: a importância do vazio

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Luana Marino
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Jornalista, revisora de textos, fã de dramas asiáticos, Bon Jovi, Game of Thrones e Fórmula 1!