SKY Castle: o castelo de areia do sistema educacional coreano

Luana Marino
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12 min readJul 4, 2019

Eu começo este texto dizendo que não sei o que dizer. Não sei, embora tenha muito para falar (e falei), mas não sei o que dizer.

Achou louca a frase, né? É um exemplo do meu estado após terminar o drama mais incrível que vi na vida — Healer ainda é meu favorito, mas é outra pegada, outra linha, não tem nem como comparar. O que a JTBC alcançou com SKY Castle é algo que vai ser muito, muito difícil de superar.

SKY Castle

SKY Castle (2018–2019)

Gênero: sátira, drama, humor negro
Emissora: JTBC
Transmissão: 23 de novembro de 2018 a 1 de fevereiro de 2019 (20 episódios)
Roteirista: Yoo Hyun Mi
Direção: Jo Hyun Tak
Elenco principal: Yum Jung-Ah, Kim Seo Hyung, Jung Joon Ho, Yoon Se Ah, Kim Byung Chul, Oh Na Ra, Jo Jae Yun, Lee Tae Ran, Choi Won Young

Isso porque a emissora colocou o dedo na ferida. E esfregou sem pena. Expôs em 20 episódios de pouco mais de 1h uma das faces mais loucas da Coreia do Sul, a do seu sistema educacional.

Do céu ao inferno

SKY Castle é uma sátira, e sim, tudo aquilo foi apresentado de uma forma exageradamente louca, mas sabe a velha máxima de que, no fim, tem um fundo de verdade? Pois é. A Coreia é, aos olhos do mundo, um modelo quando o assunto é educação — afinal, segundo dados do teste PISA, Programa Internacional de Avaliação de Alunos que é organizado pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, grupo do qual a Coreia faz parte), os alunos sul-coreanos estão entre os melhores do mundo quando o assunto é matemática, ciência e literaturas. E isso tudo é fruto de uma política que, no pós-guerra, investiu pesado na educação de base para recuperar a sua economia.

Para se ter uma ideia, os índices de desenvolvimento urbano, analfabetismo e renda da Coreia eram semelhantes aos do Brasil em 1960. Até o início da década de 1980, os sul-coreanos eram individualmente mais pobres que os brasileiros. Hoje, a diferença entre os PIBs per capita dos dois países é absurda: enquanto o nosso é US$ 9,8 mil, o coreano é quase três vezes maior — US$ 27,4 mil.

É muito lógico, até: se você investe na educação, a expectativa é de que haja profissionais mais qualificados para o mercado de trabalho, e, consequentemente, empresas melhores. E boas empresas vão gerar bons negócios, fazendo a economia crescer.

Estudantes na Coreia do Sul durante prova (Foto: Ahn Hyun-Joo/Newsis/Reuters)

De fato, os números são incontestáveis quanto a isso, tanto que a Coreia do Sul é, hoje, parâmetro em diversas áreas. Mas a busca incessante em ser a melhor da melhor da melhor tem seu lado obscuro. Para entrar no SKY — a sigla usada para se referir às três maiores universidades do país, Universidade Nacional de Seul, Universidade da Coreia e Universidade Yonsei — , adolescentes têm uma rotina de mais de 15 horas ininterruptas de estudo! É o estudo regular, mais as academias que complementam o preparo, e ainda há aqueles que possuem tutores particulares. Tudo para que a tão sonhada vaga no grupo de elite do ensino superior seja conquistada.

SKY. Céu em inglês. E céu remete a paraíso, não? Porque para a grande maioria dos coreanos, a ascensão profissional é o paraíso. O diploma é o atestado de que a pessoa não fracassou na vida. O status é mais importante que tudo, e é ele que traz a felicidade, a satisfação.

Entretanto, essa constatação é mais frágil que vidro de lâmpada. A verdade é que o caminho para o “céu” na vida dos alunos é um verdadeiro inferno! E ao mesmo tempo em que os números na educação são de encher de orgulho, a Coreia é obrigada a lidar com a liderança de outro ranking entre os países desenvolvidos, esta nada digna de ser ostentada: a do suicídio, sobretudo entre jovens.

Dados da OCDE mostram que o país é o maior em nível de estresse de jovens entre 11 e 15 anos. O relatório da Statistics Korea mostra ainda que o suicídio foi a principal causa de morte de jovens entre — pasmem — 9 e 24 anos em 2013. E o principal motivo para tal extremo entre adolescentes foi o ingresso na faculdade (39,2%).

SKY Castle não poupou na crítica às famílias ricas da Coreia

We all lie
tell you the truths…*

Com seu humor negro, SKY Castle mostrou tudo isso e mais um pouco! O drama parte de uma premissa que não é tão novidade assim na Dramaland, a competição escolar entre os alunos, mas coloca os pais no protagonismo da história — e as mães, no caso, são as figuras centrais nas quatro famílias. E é justamente esta mudança de foco a grande sacada do drama, já que a pressão absurda que os estudantes sofrem para serem sempre os melhores dos melhores começa em casa. Algumas cenas me deixavam com falta de ar de tão intensas, revoltantes e até surreais para a nossa sociedade.

Mas se você parar por um instante, vai perceber que os pais nada mais fazem do que reproduzir o que um dia sofreram, é tudo um ciclo desse modelo louco e opressor. É por isso que SKY Castle é um drama tão forte. Você começa a história odiando as mães, depois odeia os pais, depois a menina mimada, depois odeia a professora, mas o drama mostra que todos são, na verdade, vítimas do verdadeiro culpado por essa loucura toda: o sistema educacional coreano e sua competitividade que beira o sobre-humano.

Tudo é a pressão, tudo é pela competição, é pelo status, o topo da pirâmide, a supremacia, a maldita vaga na universidade. Comentei no Twitter que as crianças no drama mais pareciam meras mercadorias na mão de um empresário de jogador de futebol. Só que um dia, as mercadorias foram eles, os pais! O personagem que mais provocou em mim essa bipolaridade foi o Dr. Kang (Jung Joon Ho). Comecei um episódio dizendo “isso, sofre, leva pro túmulo essa dor, seu arrogante!”, e depois de uma cena dele com a mãe, que foi um soco no meu estômago, terminei o mesmo EP dizendo “meu Deus, ele não merece esse sofrimento, coitado! Que loucura tudo isso!”

Sim, que loucura tudo isso! SKY Castle disse isso com todas as letras e de diversas formas, ora nas expressões dos atores, ora na câmera na mão (imagem instável acompanhando os personagens em alguns planos-sequência), ora nos closes nas mãos inquietas durante as cenas de conflito, ora no texto mesmo, sem entrelinhas. Até a própria OST trouxe uma mensagem forte e sem rodeios: “Todos mentem” (We all lie, interpretada por Ha Jin).

Para os insanos pais, só interessa o topo da pirâmide!

Sobre a história, propriamente dita:

O drama usa do humor negro para acompanhar a vida de quatro famílias que vivem no luxuoso condomínio SKY Castle, destinado a médicos e professores de universidades (sim, ser professor na Coreia do Sul é outro nível). Han Seo-Jin (Yum Jung-Ah) é casada com o cirurgião ortopedista Kang Joon-Sang (Jung Joon-Ho), e o casal tem duas filhas; Seung-Hye (Yoon Se-Ah) é esposa do professor de direito Cha Min-Hyuk (Kim Byung-Chul), um egocêntrico que só pensa no topo da pirâmide e faz da vida dos três filhos um inferno; Jin Jin-Hee (Oh Na-Ra) também é casada com um cirurgião ortopedista, Woo Yang-Woo (Jo Jae-Yun), e o casal tem um filho adolescente; e a escritora Lee Soo Im (Lee Tae-Ran) e o neurocirurgião Hwang Chi-Young (Choi Won-Young) se mudarão para o SKY Castle junto com o filho, após um determinado acontecimento.

A primeira cena do drama já mostra o quão louca é a rotina daquelas famílias. Seo Jin prepara uma festa de gala para recepcionar a família de um jovem que foi aprovado para uma das escolas de medicina mais importantes do país, e onde a filha mais velha dela também quer estudar. Mas tudo aquilo é por uma única razão: descobrir quem é o tutor por trás do sucesso do garoto.

A pessoa em questão é Kim Joo Young, alguém capaz de tudo — tudo mesmo! — para levar os filhos das famílias ricas ao topo. Mas a grande questão de SKY Castle é: estariam os pais dispostos a tudo para verem seus filhos nas melhores universidades?

Essa atriz é brilhante!

Everybody say NO!**

Essa pergunta, na verdade, é muito insana, porque enquanto pais e tutores estão de um lado traçando as estratégias mais mirabolantes para tal objetivo, os principais interessados, que são os filhos, nada mais são do que peças de um jogo de tabuleiro, sem vontade própria. Não há espaços para sonhos, porque na sociedade coreana, o que se espera de alguém que almeja sucesso é que ele passe no Suneung, o temível Enem coreano.

O negócio é tão sério que, no dia da prova, a cidade para: lojas e bancos fecham, a bolsa de valores abre mais tarde, obras são interrompidas, aviões não decolam e treino militar cessa. E a maioria dos jovens que prestam essa prova tem apenas uma coisa em mente: entrar no SKY. Só que isso não é nada fácil. De acordo com uma reportagem da BBC Brasil, publicada em novembro do ano passado, na Coreia, quase 70% das pessoas que se formam na escola vão à universidade, mas menos de 2% chega ao seleto grupo das três de elite.

Daí já dá para imaginar o que é essa pressão na cabeça dos adolescentes. Uma cena em especial de SKY Castle faz uma dura crítica de como é isso. Na sala de aula, após condenar a postura de um aluno que resolveu matar aula, o professor se vira para toda a turma e fala: “O que vai acontecer se vocês não entrarem no SKY?”, e eles respondem “Nós não seremos tratados como humanos”.

Já não são, na verdade. SKY Castle se propõe a mostrar crianças condicionadas a serem robôs de estudo programados para uma missão. Qualquer coisa normal na rotina de um ser humano é um inimigo desta missão. Comer tira o tempo de estudo. Namorar tira o tempo de estudo. Dormir tira o tempo de estudo. E você não pode vacilar, senão fica fora da universidade. Você vai falhar na sua missão e será ELIMINADO!

E o drama mostra que isso, infelizmente, pode levar famílias a viverem tragédias. Mas em meio ao caos, trouxe uma resposta de esperança. Nada é mais importante do que uma mente saudável, e incentivá-los a descobrir o que, de fato, querem para a vida é essencial. Mesmo que não seja a vaga na universidade. Ainda que haja arrependimento depois. Mas que eles não sejam impedidos de viverem o que realmente querem.

Considerações finais

Essa cena, pra mim, já é antológica!

– SKY Castle vai caminhar por dois vieses para criticar sem pena o sistema educacional coreano: o do humor negro e o do thriller psicológico. E o roteiro é tão inteligente que consegue combinar esses dois estilos tão diferentes de forma perfeita — algumas vezes no mesmo personagem, na mesma cena!

– O drama da JTBC é primoroso na parte técnica, mas dessa vez não vou rasgar seda para a fotografia. A direção foi primordial para extrair de cada um dos atores o máximo em cada cena. Ao optar por muitos planos fechados, alguns mostrando partes específicas do corpo, como mãos, olhos, boca na maioria das cenas de conflito entre personagens, era possível sentir o mesmo que eles. Eu fiquei inquieta em várias cenas, e isso também é mérito da montagem do drama, que dá o ritmo.

– O drama foge de qualquer — repito, QUALQUER previsibilidade. Ele apresenta por meio da personagem Hye Na um plot típico de drama familiar (o bom e velho clichê, mas já disse que isso nunca será problema quando se tem um texto muito bem desenvolvido). Quando a trama revela ao espectador o segredo que envolve a jovem e a família de Seo Jin, você fica querendo saber quando e como tudo virá à tona. Espera-se, portanto, uma solução para aquele conflito.

Só que a história caminha por outro lado e opta por um desfecho chocante e inesperado, que vai acontecer ainda no EP 14. E tal fato nada mais é do que consequência de tudo que a série apresenta, a loucura do sistema educacional. Olhando por esse ângulo (que, aliás, é o único que deve ser usado aqui), não poderia se esperar nada mais leve.

A trama de Hye Na vai virar a história do avesso

– O elenco todo de SKY Castle é perfeitamente entrosado, mas Yum Jung Ah, que dá vida a Seo Jin, é espetacular! E a direção foca muito nas expressões dela nas cenas de embate, e ela dá um show, domina completamente. Atriz magnífica! Aliás, merecidamente, Jung Ah recebeu em 2019 o prêmio de Melhor Atriz por esse papel, no 55th Baeksang Arts Awards, importante premiação sul-coreana de TV e cinema.

Aliás, justiça seja feita a todas as atrizes desta obra-prima, que dominaram a história, mostrando também o verdadeiro significado de ser mãe (e como estamos tendo dramas coreanos focando nisso, não?). Nada vale mais que a vida de um filho, e quando a cria está em perigo, o instinto de todas aflora.

– O drama ainda trouxe um ótimo plot por meio do casal Seung Hye e Cha Min Hyuk. Foi lindo vê-la tomando as rédeas da educação dos filhos e da sua própria vida, colocando o marido machista em seu devido lugar. Foi a personagem que mais cresceu no drama, a mais inspiradora. E Yoon Se Ah é linda demais!

– Tudo apresentado em SKY Castle nada mais é do que um ciclo que se repete, o velho “está no sangue”. É cultural, e para mudar algo assim leva tempo, ô, se leva… Mas achei muito corajoso falar de forma tão clara sobre o tema, e também abordar o suicídio de maneira tão clara e sem mascarar o que levou determinada pessoa a tirar a própria vida. É louco, é forte, mas é NECESSÁRIO.

A trilha sonora é maravilhosa, a música “We All Lie” vai ficar na mente ainda por muito tempo.

Sempre falo que quando a música é boa…

O final, como disse, traz esperança, mas não é conto de fadas. Como dito em todo o texto, é uma questão cultural, de um sistema que funciona desta forma há décadas, mas SKY Castle já marcou o seu nome na história da dramaturgia coreana. E eu espero mesmo que todo esse frenesi na audiência tenha deixado a população refletindo em suas próprias atitudes e que passem a olhar seus filhos com mais humanidade.

É disso que as crianças precisam, serem tratadas como o que elas realmente são: gente.

Para encerrar este testamento, deixo um trecho da música N.O, do BTS, que é uma pancada necessária. E espero que tenham gostado. Até!

“Eu quero comer e me divertir, arrancar o meu uniforme
Ganhar dinheiro, dinheiro bom e já estão de olho torto
Minha obscura conta bancária
Minha tristeza está excedendo o limite
O fato dos suspiros enquanto estudamos, continua um ciclo
Os adultos dizem que temos tudo muito fácil
Dizem que somos muito felizes
Então como você explica minha infelicidade?
Não há nenhum assunto que não seja estudar
Lá fora, há tantos outros garotos como eu
Vivendo a vida como uma marionete
Quem vai ficar com a responsabilidade?
Adultos me dizem que os momentos difíceis são momentâneos
São para nos endurecer um pouco para mais tarde
Todo mundo diz não
Eu não posso ser apenas qualquer um mais tarde
Não seja preso ao sonho de outra pessoa”

Onde assistir: Start Fansub e Subarashiis Fansub, Viki.

* Todos nós mentimos/ dizendo verdades…
** Todo mundo diz NÃO

Fontes:

The Conversation
“The Dark Side of the Korean Education System and New Purposes for the Future”
“O temido ‘Enem’ que sela o futuro dos jovens e paralisa a Coreia do Sul por um dia”
Gazeta do Povo

Luana Marino é jornalista há dez anos e fã de dramas asiáticos, sobretudo coreanos. Mas também é apaixonada por esportes (principalmente Fórmula 1), Bon Jovi e Game of Thrones.

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Luana Marino
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Jornalista, revisora de textos, fã de dramas asiáticos, Bon Jovi, Game of Thrones e Fórmula 1!