A dura lição que aprendi quando decidi postar algo contra Marco Feliciano

Ou: O silêncio da imprensa sobre a acusação de estupro que o parlamentar enfrenta é perturbador

Patrício
Blog do Patrício

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Esta semana resolvi fazer um post no Twitter falando sobre o deputado Marco Feliciano (PSC-SP) e a acusação que ele sofre de tentativa de estupro por parte de uma integrante do PSC Jovem. A ideia era pegar prints de notícias antigas em que o parlamentar defende a castração química de estupradores e comparar com a atual manchete “Feliciano é acusado de estupro por militante do seu partido”. A isso eu incluiria a seguinte pergunta: vale pra você também, Feliciano?

Seria legal. Faria as pessoas pensarem sobre a hipocrisia da extrema direita. Eu ganharia alguns likes. Mas eis que a pesquisa de notícias sobre Feliciano me levou para um caminho totalmente inesperado. E perturbador.

Quase ninguém está falando sobre a acusação que Marco Feliciano sofre. E isso é bem bizarro.

A notícia de que uma correligionária do partido de Marco Feliciano o acusa de tentativa de estupro até o presente momento foi publicada por poucos grandes órgãos de imprensa. Estou escrevendo este texto no sábado, dia 06 de agosto, às 10h da manhã, então pode ser que a coisa toda tenha se alterado após o chefe de gabinete do deputado ter sido detido sob acusação de cárcere privado e coação da vítima — você sabe, chega uma hora que não dá mais pra se fazer de doido.

Mas o fato é que até agora quase nada foi publicado. Só encontrei menção ao fato no Estadão, e ainda assim na parte fechada do site (em que é preciso senha para ler a matéria completa). O absurdo é sem precedentes, porque o fato veio a público na terça, 02. São pelo menos quatro dias de silêncio total, um gap que não costuma acontecer com denúncias que envolvem parlamentares, digamos, menos conservadores.

Shhhhhhhhhhhhhh!

O que torna tudo mais estranho é que Feliciano é figura tarimbada em todos os portais de notícia. Há material vasto sobre as bravatas que ele diz o tempo todo, principalmente se ele fala alguma coisa contra mulheres, homossexuais ou negros. E tome manchete de capa.

Quando a equação se inverte, entretanto, o material some. Folha, Estadão, O Globo, UOL, G1 e muitos outros representantes da mídia tradicional quase não têm textos desabonadores ao parlamentar. Muito menos textos de opinião, em que esses veículos teriam a oportunidade de se posicionar contra as falácias sem sentido do pregador de intolerâncias.

Minha breve pesquisa para um simples post do Twitter acabou revelando uma coisa muito mais profunda do que eu esperava. Quando Feliciano vai contra as minorias (por mais ilógicos ou inconsistentes que sejam seus argumentos), ele tem atenção total da mídia. Quando alguém se insurge contra ele, porém, o silêncio é constrangedor.

Uma breve pesquisa sobre Marco Feliciano que acabou sendo reveladora

Até o presente momento (lembre-se: estou escrevendo este texto no sábado, 06, às 10h), apenas veículos alternativos produziram materiais realmente à altura da notícia — como, por exemplo, o site independente The Intercept do ganhador do Prêmio Pulitzer Glenn Greenwald, que publicou esta matéria incrível sobre o assunto (muito acertadamente assinada por uma mulher, a jornalista Cecília Olliveira).

O silêncio da imprensa tradicional faz parecer que a denúncia não é notícia. Mas é sim. Afinal, um dos mais polêmicos parlamentares dos últimos anos, que construiu sua fama com opiniões radicais calcadas na defesa da tradicional família brasileira, está sendo acusado de tentar estuprar uma correligionária. Isso é nitroglicerina pura.

“O episódio da agressão ocorreu, segundo a jovem, no apartamento funcional de Feliciano, em Brasília, na manhã de 15 de junho. Na denúncia, a estudante relatou que foi agredida e gritou por socorro — e se salvou de sexo à força. O agressor era, segundo ela, o deputado federal Marco Feliciano, pastor evangélico propagandeado como um dos bastiões da moralidade familiar. ‘Você está gritando muito!, vai embora!’, teria dito Feliciano.” — Do artigo Marco Feliciano é acusado de estupro e mídia faz silêncio do site The Intercept

Ainda que as Olimpíadas abafem o peso de todas as outras notícias, não há desculpa plausível para sequer tocar no assunto. É impensável que os jornais e tevês não estejam no encalço de Feliciano neste momento — levantando evidências, apurando os fatos e chocando as versões para reportar precisamente o que está acontecendo. Pois é, não estão.

“Então existe um complô pró-Feliciano por parte da mídia tradicional, Patrício? É isso?”

Calma lá, não tô dizendo isso. E até gostaria que fosse, porque um complô a gente investiga, desmascara, aniquila. Enfim, um complô é palpável e, portanto, combatível. O que acontece é muito pior que um complô.

A mídia tradicional silencia diante da chocante acusação que Marco Feliciano sofre porque é conivente com seus atos. Só isso. Este texto poderia terminar aqui e já seria contundente o suficiente para você pensar a respeito do assunto ao longo da semana, mas vou me prolongar no raciocínio.

A mídia é conivente com o macho branco hétero cis — o tal macho opressor. É conivente com os parlamentares de direita também. E é ainda mais conivente com ricos que esbravejam contra os direitos humanos. Porque, de certa forma, é esse o extrato da sociedade que representa os interesses da imprensa tradicional. Marco Feliciano, veja só, é a síntese perfeita disso tudo.

Em outras linhas, a imprensa tradicional encara Felicianos, Bolsonaros e Malafaias como um mal necessário. Um tumor com o qual é preciso conviver para que a direita continue avançando sobre a esquerda. E aí as aberrações proliferam sem calos nos pés.

Marco Feliciano (PSC-SP): nenhuma declaração até o presente momento, e parece que ninguém tá cobrando

Imagine se um figurão da esquerda fosse acusado de estupro por uma correligionária do seu partido.

Nem vou pedir pra você supor tudo isso acontecendo com o Lula, não, nem peço que vá tão longe — apesar de ter certeza que o circo que armariam seria grande o suficiente para deixar a extensa cobertura do tal sítio em Atibaia no chinelo.

Vamos pegar então uma figura da esquerda com menos peso simbólico que Lula. Que tal Jean Wyllys (PSOL-RJ)? Vamos lá, imagine. Já pensou se um rapaz da Juventude do PSOL acusasse o deputado de assédio sexual e tentativa de estupro? Já pensou se o chefe de gabinete de Jean Wyllys fosse detido sob a acusação de cárcere privado e coação da vítima? Já pensou se tivessem áudios comprovando tudo (você sabe muito bem como a grande mídia adora vazar um áudio)? Você já imaginou o escândalo que a mídia tradicional produziria em cima desse fato?

O exercício de imaginação que proponho serve para você perceber em que terreno pantanoso estamos. Se Jean Wyllys fosse acusado de tentativa de estupro, eu gostaria que a imprensa me informasse cada passo dele. As festas que foi, as pessoas com quem conversou, os rapazes que já visitaram seu apartamento funcional em Brasília. Eu gostaria de estar plenamente a par sobre tudo que dissesse respeito a Jean Wyllys. Afinal ele é um parlamentar. Ele é meu funcionário. Ele tem contas a acertar comigo.

Quem foi acusado de tentativa de estupro foi Marco Feliciano. E não vejo razão alguma para por panos quentes sobre o assunto. Quero jornalistas no encalço do parlamentar pra me contar tudo: quem visita seu apartamento funcional?; qual sua rotina em Brasília?; há outras mulheres que passaram pela mesma coisa?; o que a vizinha que socorreu a vítima tem a dizer?; quais medidas serão tomadas para que não haja interferência nas investigações?; a segurança da garota que acusa Feliciano está garantida?

Nenhuma grande cobertura está sendo feita sobre o caso e isso é bem preocupante. Porque quando a imprensa passa a mão na cabeça dos políticos, o povo perde a voz. Já é terrível assistir à camaradagem da grande mídia com casos de corrupção que envolvem figurões com os quais simpatiza (alguém aí lembrou do Aécio?). Quando esse salvo-conduto da imprensa serve também para parlamentares acusados de crimes como assédio sexual, estupro e cárcere privado, bem, você sabe, a coisa toda toma proporções de Holocausto.

É uma pena, mas a tradicional mídia brasileira é um produto direto da tradicional família brasileira: conivente com os seus, intolerante com os demais.

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Patrício
Blog do Patrício

Escritor, jornalista, publicitário, roteirista. Autor dos romances “Lítio” e “Absoluta Urgência do Agora” e da coletânea de contos “A Cega Natureza do Amor”.