Absoluta Urgência do Agora: "Adriano"

Trecho do novo romance de Patrício Jr (Jovens Escribas, 2016)

Patrício
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Sabe como acabei aquela sexta, B*****? Em cima do balcão do bar, às cinco da manhã, com todas as luzes acesas, aos beijos com um barman. Hoje compreendo a minha urgência em provar que eu estava bem. Sufoquei todo o sofrimento, todas as preocupações, toda a angústia que dá em reconhecer-se vilão e fui pra noite. Há anos não me sentia tão leve. Luciana tinha uma turma de amigos ótima e todos pareciam estar dispostos a me deixar feliz o maior número de horas possível. Já conhecia a maioria deles, mas nossos contatos se resumiam, até então, a cumprimentos educados e poucas palavras cordiais. Álvaro, Pietra, Roberta, Diego. Durval, Carla, Edson. Júlia, Marcelo, Leonor, Bianca. Eram nomes que me diziam tão pouco quando eu tinha você e de repente, a partir daquela noite que excursionamos por três bares e infinitas doses, passaram a ser os nomes ao redor dos quais minha vida girava. Lá pro terceiro bar, suados e sorridentes, sagazes em cada uma das piadas que dizíamos, vorazes pela noite eterna, reencontrei um amigo do meu irmão que tinha ido morar em Lisboa há anos. Adriano me disse, manipulando garrafas e coqueteleiras por trás do balcão, que havia trabalhado como barman na Europa, muito embora a palavra barman, quando emoldurada por seus lábios grossos e rosados, e sua pele bronzeada de pelos parafinados, e seus cachos queimados de sol formando nuances acobreadas e douradas que sacudiam com os movimentos da cabeça, e seus músculos tatuados saltando das cavas da regata branca, soasse realmente como michê. Espantei os julgamentos, já que algo me dizia que aquela nova vida, de noitadas e bebedeiras e paqueras, não combinava com julgamentos, e continuei ouvindo a história dele. Jogando seus líquidos mágicos pra lá e pra cá, educado com os clientes e atencioso demais comigo, Adriano contou que viveu mais de cinco anos do outro lado do oceano, dividindo-se entre as atividades de barman, modelo e vocalista de uma banda de reggae, mas voltou depois que a crise econômica corroeu todas as oportunidades que o Velho Continente costumava entregar aos terceiro-mundistas. Agora ele estava ali, do outro lado do balcão, bronzeado, sorridente e solícito para o irmão mais novo do amigo de adolescência. Ele perguntou, Por onde anda teu irmão? Eu respondi, Morando no Rio. Mas essa resposta saiu sem vida, abafada que estava pelos meus pensamentos. Percebendo a forma como Adriano me olhava, como minha barba conduzia seu olhar, como meus sorrisos lhe abriam outros, concluí que o tesão nunca envelhece. Se alguém tem interesse genuíno em você, esse tesão vai ficar guardado num lugar bem protegido, encoberto pelo véu do silêncio, aguardando o momento certo para vir à tona. Adriano disse, Manda um abraço pra ele. Eu ouvi, Quero passar a noite contigo. Todos os gestos dele, todas as atitudes, todos os pequenos sorrisos e piscadelas que me lançava, diziam a mesma coisa. Diziam, Quero passar a noite contigo. Fingi que não havia percebido o flerte e me afastei para voltar a Luciana e seus amigos. Mas mesmo à distância, mesmo com o bar lotado e os pedidos de cerveja, doses de uísque, caipiroskas e caipifrutas chovendo sobre sua cabeça dourada, Adriano continuou flertando comigo. Lá de longe, me enxergando em meio aos jovens que se acotovelavam no espaço pequeno do pub, ele lançava garrafas ao ar em acrobacias arriscadas e buscava minha aprovação; sorria para algum cliente e olhava em minha direção preocupado em deixar claro que não passava de uma obrigatoriedade profissional; me servia uísques duplos quando eu pagava por doses simples, piscando o olho e mostrando seus dentes alvos, meu cúmplice de um crime que ainda estava por vir.

“Todos os gestos dele, todas as atitudes, todos os pequenos sorrisos e piscadelas que me lançava, diziam a mesma coisa. Diziam, Quero passar a noite contigo.”

Claro que a música boa, o álcool e meu desespero em ser feliz fizeram com que eu esquecesse Adriano por um tempo e me concentrasse apenas em ficar offline. Totalmente offline. Estava com Luciana, Bianca, Álvaro e todos aqueles novos nomes ocupavam a noite com risadas e abraços, com fotos e postagens, com a mais genuína falsa alegria de viver (histérica, desconcertante, quase violenta). Era a minha primeira noitada como solteiro e concluí que não havia motivo para ter pressa. A noite seguiu o fluxo que eu queria, exatamente como eu queria, com boas músicas, ótimas bebidas e companhias interessantes. Só na hora de ir embora, cansado e meio rouco, consciente da minha inconsciência etílica, dei uma geral rápida pelo bar pra ver se o encontrava. Ele não estava mais lá. Fui caminhando para o caixa, reprimindo a vontade de berrar o nome dele e selar a noite com uns amassos, e resolvi ser engraçadinho com a menina do caixa. Eu disse, Vou pagar no cartão pra você anotar o telefone de Adriano no comprovante. Ela respondeu, Por que você não pede a ele? Juro que queria morrer. Só falei aquilo porque tinha certeza que ele já havia ido embora — com o telefone, no dia seguinte, poderia decidir se era loucura ou não. Mas ele ainda estava no bar. Lá dentro, ela informou, Limpando o balcão. Não quero que você me veja como uma inocente vítima das circunstâncias, B*****. Eu poderia ter sorrido para a garota do caixa, dito que era brincadeira e seguido em frente, mas não fiz. O que meu corpo enviou como mensagem ao cérebro foi prontamente atendido: peguei o comprovante do cartão, enfiei no bolso, dei meia volta e entrei no bar mais uma vez. Encontrei Adriano sem camisa, as tatuagens rasgando na pele uma história que eu desconhecia. Ele estava passando um pano úmido no balcão, concentrado demais pra notar que eu dava a volta e entrava na área permitida apenas para funcionários.

Sem pormenores, não tenho a intenção de transformar isso aqui numa tortura. Mais importante que saber que eu e Adriano nos beijamos em cima do balcão, e ele tentou fazer sexo ali mesmo, e eu disse pra ir com calma, e ele não aceitou protelar mais, e finalizamos a coisa toda entre garrafas de Absolut e Jack Daniel’s, mais importante que saber tudo isso, B*****, é saber que Luciana me aguardou lá fora com toda a paciência, e aparou meus passos claudicantes quando cheguei na calçada com o rosto amassado e os cabelos desgrenhados, e foi me deixar em casa rindo muito de todos os detalhes que contei sobre a transa com Adriano, o gelado da madeira do balcão, a busca desesperada por uma camisinha, a tentativa de não fazer muito barulho, a garrafa de Jack Daniel’s que derrubamos na pia, o vazio que ficou depois que o corpo foi saciado. Quando paramos em frente aqui do prédio, aquele silêncio da madrugada, aquele frio das cinco da manhã, aquela coisa desoladora, eu implorei que ela dormisse comigo. Eu não tinha geladeira, nem sofá, nem mesa, nem lençóis, e seria demais não ter companhia. Luciana resistiu, mas entendeu. Ficou comigo aquela primeira noite e no dia seguinte me levou pra tomar café numa padaria. Ela tentava a todo custo me mostrar que a vida seguiria em frente e eu tentava a todo custo demonstrar que já compreendera esse clichê.

Sim, a vida segue em frente. A gente sai do café da manhã na padaria para um churrasco cheio de pessoas legais; a gente descobre afinidades profundas com pessoas que só conhecíamos de vista e acaba tendo a certeza de que fez novos amigos; a gente bebe com moderação pra não perder a linha; a gente faz piadas com o fato de não ter mais uma geladeira, e protela com sorrisos vagos os problemas reais que temos que enfrentar, e afoga num copo grande de cerveja gelada, ou vodca com suco de laranja, ou uísque com gelo, a angústia de não reconhecer-se mais feliz. A gente solapa o sofrimento com doses escandalosas de festividade e faz com que não parar em casa seja uma forma de sinalizar a si mesmo que estamos bem, topando qualquer programa, a qualquer hora, com qualquer companhia; e a gente descobre que é só o tempo que vai curar todas essas feridas que pululam no coração, e sente pena de si mesmo, e se maldiz, e chega à conclusão que o tempo não passa pra quem espera que passe. A gente faz muitas coisas e sem perceber a vida vai andando. Seguindo em frente. Introduzindo novos amigos, novos anseios, novas metas. Foram assim minhas duas primeiras semanas sem você. Enormes. Morosas. Eternas. Foram duas semanas em que sofri para colocar a casa em ordem, organizar os pagamentos, ter uma rotina de compras, manter tudo arrumado, todas essas coisas que você, por si ou por mim, fazia tão bem; foram duas semanas em que percebi que ter deixado o carro contigo foi um dos maiores erros que já cometi, as sacolas de supermercado rasgando a poucos passos de chegar aqui no prédio, mexericas dançando no asfalto, açúcares tingindo o meio-fio de branco, iogurtes explodindo aos meus pés; foram duas semanas em que conseguir uma geladeira usada com a minha irmã, ou descobrir uma marmitaria baratinha bem perto de casa, tinha o mesmo efeito de encontrar petróleo no quintal, ao passo que, para contrabalancear, perceber que não existe mais você para trazer-me a toalha que sempre esqueço de levar ao banho preenchia todas as cavidades do meu coração com o recrudescimento do que conhecia por dor. Eu me esforcei para não afundar, sorrindo ao fracasso, suspirando diante da dor, sobrevivendo, apenas sobrevivendo, na torcida que a vida me levasse ao próximo estágio já que a transição me exauria além do que eu suportava. Refazer-me sem você, B*****, foi descobrir quem eu sou de verdade. Você pode até não gostar do que renasceu das cinzas que sobraram depois que o fogo que você ateou, sem mais combustíveis, sem mais combustores, arrefeceu. Mas renasci. Mesmo que às vezes eu sentisse vontade de retroceder até o ponto em que coabitávamos o mesmo corpo, a minha vida seguiu em frente.

Como tua vida seguiu em frente, B*****?

"Absoluta Urgência do Agora", Patrício Jr

Editora Jovens Escribas, 2016, 292 págs

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Escritor, jornalista, publicitário, roteirista. Autor dos romances “Lítio” e “Absoluta Urgência do Agora” e da coletânea de contos “A Cega Natureza do Amor”.