Aquarius: um filme que fala de todos nós

O diretor Kleber Mendonça Filho consegue uma façanha com seu mais recente longa: retratar exatamente o hoje

Patrício
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"Aquarius" é um filme cercado de polêmica desde que equipe e elenco do longa exibiram cartazes denunciando o golpe do Governo Temer no tapete vermelho do Festival de Cannes 2016. A repercussão foi mundial e cercou o filme de uma áurea de contestação política que poucos produtos culturais brasileiros conseguiram.

A este protesto, seguiram-se fatos controversos que evidenciaram uma tentativa de retaliação por parte do Governo Temer. A classificação etária para 18 anos, por exemplo, deixou um gosto amargo de repressão e censura (para efeito de comparação, "Cidade de Deus" com toda a sua violência explícita envolvendo crianças e adolescentes chegou aos cinemas com classificação 16 anos).

Elenco denuncia o Golpe de 2016 em Cannes: era só o começo

Em apoio a “Aquarius”, duas produções nacionais retiraram seus nomes da seleção do Ministério da Cultura que escolhe o representante brasileiro no Oscar: o elogiado “Boi Neon” de Gabriel Mascaro, e “Mãe só há uma”, nova produção de Anna Muylaert (diretora de "Que horas elas volta?”).

Mais recentemente, "Aquarius" foi preterido para representar o Brasil no Oscar, mesmo com todas as críticas positivas e grande sucesso de público. Em seu lugar, o MinC indicou o longa “Pequeno segredo” de David Schurmann — que ainda não estreou no Brasil!

O material de divulgação, entretanto, não parecia chancelar essa áurea de resistência política que se formou em torno do filme. E isso me deixou apreensivo.

E se "Aquarius" fosse apenas uma boa história? E se toda a polêmica fosse apenas por motivos extra-tela? E se ele não fizesse jus à fama que conquistou? As expectativas eram altas. Agora eu queria que "Aquarius" fosse mais que uma boa história. "Aquarius" tinha que ser uma peça de resistência, um símbolo de quem foi contra o golpe, um manifesto por quem luta pela democracia.

Foi com todas essas expectativas que cheguei ao cinema para ver Sonia Braga e companhia. E posso garantir: o filme se superou. Assim que as luzes se apagaram e começaram a gritar Fora Temer, eu concluí: "Aquarius" tinha conseguido; o filme ja é um marco. Mas ainda tinha a história. E que história.

Clara (Sonia Braga): uma história delicada com forte background político

Sonia Braga dá vida a Clara, uma senhora por volta dos seus 60 anos que mora no Edifício Aquarius — um prédio antigo que fica estrategicamente localizado na Avenida Boa Viagem, o endereço mais cobiçado do Recife. A especulação imobiliária faz com que a Construtora Bonfim se interesse em comprar o prédio baixinho de três andares para erguer em seu lugar um suntuoso arranha-céu. Todos os moradores aceitam a proposta da construtora e desocupam o prédio. Menos Clara.

Ela não quer vender o apartamento que herdou da tia, onde criou seus filhos e foi feliz com seu marido. E é aí que o embate entre ela e Diego (Humberto Carrão) começa. Diego é um jovem executivo que está à frente do projeto e parece determinado a conseguir comprar o apartamento de Clara de qualquer jeito. Com todos os artifícios que as grandes construtoras têm para conseguir o que desejam.

Me segura que eu quero dar na cara desse menino!

As interpretações impressionam. Todo mundo soa natural e no tom, sem os exageros melodramáticos que estamos acostumados a ver na tevê. Sonia Braga está à vontade como Clara e chama atenção o carisma do personagem. Bonita, jovial, com personalidade forte, Clara é uma senhora economicamente independente, politicamente instruída e sexualmente ativa. Uma mulher empoderada e determinada, que está disposta a resistir por seus ideais custe o que custar.

Mas o que mais impressiona no filme é como o roteiro conseguiu capturar com perfeição o agora, o hoje, o momento exato que o Recife e muitas outras cidades do Brasil atravessam.

A especulação imobiliária na capital pernambucana ganha vieses de pornochanchada tamanho o poder das construtoras. Mangues aterrados para a construção de shoppings, arranha-céus de vidro espelhado na beira da praia, torres monstruosas e luxuosas erguidas ao lado de palafitas: todos esses exageros e contrastes fazem parte da paisagem urbana de Recife, mostrando que uma silenciosa guerra entre a especulação imobiliária e os moradores da cidade vem sendo travada.

O movimento Ocupe Estelita é a síntese dessa guerra: contrários à demolição dos armazéns do Cais Estelita para a construção de um complexo de empresariais por parte do consórcio de empreiteiras Novo Recife, manifestantes acamparam durante dias sem fim no terreno em 2012 — até trazerem à luz a terra sem leis na qual as construtoras e empreiteiras operam.

O terreno do cais José Estelita, que equivale a cerca de 14 campos como o do Maracanã, foi vendido pela extinta Rede Ferroviária Federal a preço de banana em 2008. O comprador, um consórcio formado pelas construtoras Moura Dubeux, Queiroz Galvão, G.L. Empreendimentos e Ara Empreendimentos, foi o único concorrente do leilão e pagou 55,4 milhões de reais, 554 reais o metro quadrado. Dez vezes menos que o valor atual na cidade, que ostenta o quinto metro-quadrado mais caro do Brasil. Ainda hoje todos os implicados lembram da oportunidade do negócio, cujo projeto foi entregue na prefeitura pouco antes que o atual Plano Diretor da cidade, que disciplina o ordenamento urbano, fosse aprovado. — Do artigo Por que o cais José Estelita? do jornal El País.

O Ocupe Estelita extrapolou os limites da luta contra o Novo Recife e hoje é um movimento social com grande relevância nas lutas da cidade (o consórcio Novo Recife, por sua vez, está sendo investigado por irregularidades na compra do terreno do Cais Estelita). Não é à toa que membros do Ocupe Estelita participem do filme. Kleber Mendonça Filho sabe o que está fazendo.

Ocupar e resistir

Infelizmente, essa luta desigual não é uma exclusividade de Recife. E talvez por isso o filme tenha obtido tanto eco nas mais diferentes plateias.

"Aquarius" cutuca os poderosos e mostra que olhos atentos estão sobre eles. Clara acaba representando o brasileiro médio que por um motivo ou outro se sente obrigado a resistir. E mais: Clara nos mostra que qualquer um pode se tornar o oprimido da noite para o dia.

Mulher independente, com bom patrimônio, instruída e viajada, Clara não é poupada dessa verdade. O dinheiro, no fim das contas, não respeita nada além de si mesmo. E em nome do dinheiro, o filme nos mostra, muitos estão dispostos a oprimir.

O próximo oprimido pode ser você.

"Aquarius" é sim uma obra de resistência. E veio a público no timing perfeito. O filme conversa exatamente com o momento atual e traz à tona questões que estamos discutindo hoje em mesas de bares e encontros com amigos. Será um daqueles filmes que professores exibirão nas faculdades para mostrar como era o Brasil na época do Golpe de 2016. E isso vale mais que qualquer Oscar.

Em tempo: o prédio que serviu de locação para o Aquarius existe de verdade. Chama-se Edifício Oceania e tem uma historia muito bacana. Atualmente, o Oceania se espreme entre arranha-céus envidraçados e imponentes na orla de Boa Viagem. Ocupando e resistindo.

DE ZERO A DEZ: ★★★★★★★★★✩

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Patrício
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Escritor, jornalista, publicitário, roteirista. Autor dos romances “Lítio” e “Absoluta Urgência do Agora” e da coletânea de contos “A Cega Natureza do Amor”.