Aquele silêncio

Patrício
Blog do Patrício
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3 min readOct 13, 2011

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Para ler ouvindo “De haberlo sabido” de Quique Gonzalez

Aquele silêncio ao se olharem de longe. Nenhuma música, nenhuma gargalhada, nenhuma piada regada a uísque. Somente aquele silêncio dos olhos se contundindo, explodindo à guisa de qualquer luz estroboscópica e passos de dança e gelos secos. Paralisados, olharam-se em silêncio: que não era a ausência do som, mas sim presença de todos os convites. Sorriram-se. Em silêncio.

Aquele silêncio ao cruzarem o umbral do pub e estancarem na calçada. Ficou na memória do ouvido algo do bate-estaca, mas com o vento e as buzinas e as instruções dos manobristas transformou-se em zumbido grave profundo, abafado como um tambor que retumbasse intermitentemente dentro de um copo. Aos poucos, mimetizou-se em silêncio. Disseram-se seus nomes, trocaram cumprimentos, deixaram que o amarelo resvalasse pelos sorrisos.

Aquele silêncio de não saber o que dizer apesar de todas as coisas a serem ditas. Que poderiam ir tomar um café e se conhecer melhor, que aquele DJ tinha perdido a mão ao tocar dance music dos anos 90, que aquele lugar já tinha sido muito bom na época em que não era frequentado por todo mundo da cidade. Apesar de todo o mais que havia de dizível, permaneceram apenas se olhando. E dos olhos saltavam como suicidas desesperadas as palavras-anseios: eu quero alguém com quem possa ultrapassar a barreira dos silêncios constrangedores. Compreenderam-se sem dizer palavra.

Aquele silêncio saciado que apenas a completude de um corpo no outro provoca. Entregaram-se a olhar o teto, suspirar, descer os dedos suavemente pelas costas. Sem nada a dizer porque tudo já falado em braile. A língua do toque.

Aquele silêncio diante do primeiro presente. Aquele silêncio diante da primeira briga. Aquele silêncio diante dos gostos em comum que foram descobrindo, das histórias de infância que foram se contando, das fotos de viagem que foram se acumulando. Aquele silêncio diante dos dias, dos meses, dos anos.

Aquele silêncio enquanto olhavam embasbacados para a caixa de veludo revelando, como vulvas, as alianças.

Aquele silêncio irrecuperável. Porque não falar nada era mais pelo tédio, pela rotina, pelos dia-a-dias que iam embolorando-se nos cantos da casa. Já não planejavam ir a uma boate e fingir que não se conheciam para então se trombarem acidentalmente no bar; já não se entusiasmavam quando viam um móvel moderno, estilo anos 60, esquecido no fundo de um antiquário; já não dividiam a vida porque ela completamente dividida. Assistiam a tudo em silêncio, dois virando um mais um.

Aquele silêncio da mala pronta, encostada à parede da sala, o táxi esperando no estacionamento, a vontade de gritar e gritar e gritar. Caminharam em silêncio até a porta entreaberta, o rasgo de luz do corredor vazando pelo hall de entrada. Cumprimentaram-se com um meneio de cabeça como maratonistas que desistissem no meio do revezamento. Mas havia ainda o aluguel a fracionar, a conta conjunta a encerrar, os carros a serem vendidos, o imposto de renda, o IPVA, a TV a cabo, as famílias, os amigos, as músicas, os filmes, as viagens, as descobertas, as alegrias, os sonhos. Choraram. Aos berros. Desesperados. Abraçados. Beijando-se. Desistindo. Despindo-se. Falando. Mas eu te amo tanto, mas eu te amo tanto, mas eu te amo tanto.

Naquela noite ninguém conseguiu dormir no condomínio. E eles nunca mais correram o risco de se calar.

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Patrício
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Escritor, jornalista, publicitário, roteirista. Autor dos romances “Lítio” e “Absoluta Urgência do Agora” e da coletânea de contos “A Cega Natureza do Amor”.