Caro amigo coxinha,

Patrício
Blog do Patrício
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6 min readSep 8, 2016

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Senta aqui, vamos conversar. Sim, sim, eu sei, os últimos meses foram tensos entre nós. Foi pra todo mundo. Mas depois que toda essa coisa de impeachment passou e finalmente concordamos que primeiramente fora Temer, precisamos rever alguns pontos da nossa relação. A propósito, parabéns, você conseguiu, a Dilma está fora do jogo e o Lula está quase. Tá sendo difícil digerir isso tudo, mas me alegra saber que você está feliz. Alguém ao menos está. Então vamos logo deixar de conflitos e nos entender. Não faz sentido ficar com essa coisa de foi-golpe-não-foi-golpe quando o golpe, enfim, já foi. Temos tanto a conversar.

Entendo que sua vida foi, é e provavelmente continuará sendo bem diferente da minha (entendo até que você enxergue como mérito o que chamo de privilégio), e que todas essas diferenças acabaram levando sua visão de mundo para uma ótica que é tão oposta, por vezes conflitante até, da forma como vejo a sociedade. Entendo perfeitamente. Não, calma, segura esse esquerdopata lulopetista bolivariano que você está prestes a dizer. Sim, por favor. Vamos tentar dialogar sem esse tipo de lugar-comum. Prometo que não vou te chamar de elitista fascista opressor. Prometo.

Nosso mundo tá uma bagunça, caro amigo coxinha, e parece que nem eu nem você temos ajudado a consertar as coisas. Viu a última do Trump? Sim, eu sei, você meio que concorda com alguns pequenos aspectos do raciocínio dele, eu sei, normal, cada um com as suas opiniões, mas essa última? Não, sério? Ok, ok, não julgo. Normal que você acredite que os privilégios do homem branco hétero cis devam ser mantidos mesmo que isso signifique oprimir — e até humilhar, quiçá aniquilar — nações inteiras. Opa, privilégios não. Méritos. Então, normal. Você se acostumou a ver o mundo assim. Sempre foi desse jeito, afinal. Desde antes das colonizações, aliás. Muito antes. O homem branco sempre soube defender seus méritos — o que é intrigante, convenhamos: méritos em geral não precisam ser defendidos; é mais comum agir assim quando se tratam de privilégios.

Vamos falar de outra coisa, ok? Deixa o Trump pra lá. Você viu a pesquisa que mostra que um homossexual é morto no Brasil a cada 26 horas? Ah, não viu? Puxa, é um número bem chocante que mostra a escalada dos crimes homofóbicos no… Oi? Você não acredita que esses crimes acontecem por causa da homofobia? Como assim? Ah, tá, você acha que é coincidência que essas vítimas sejam homossexuais. Hummm. Entendo. Quer dizer, não entendo. Mas entendo que você pense assim. Não faz parte da sua vida cheia de casais heterossexuais no barzinho tomando cerveja artesanal ao som de um sertanejo industrializado enquanto riem do gay da novela. Entendo perfeitamente. Mas já aconteceu comigo, sabe? Uma vez fui expulso de um museu porque estava beijando meu namorado e… Você tá bocejando?

Poxa, caro amigo coxinha, pensei que a gente finalmente ia falar sobre tudo, sabe? Por exemplo, aquelas suas postagens sobre o Bolsonaro. Sim, eu sei, você apenas repostou — e sim, também sei, você não concorda com tudo que ele diz. Unrum. Mas estava lá na sua linha do tempo pra todo mundo ver — como se você tivesse escrito aquelas coisas sobre não existir cultura do estupro. Imaginei o que sua mãe acharia disso. Ah, ela apoia? Sei. Deve ser complicado pra ela ter que concordar com esse tipo de coisa. Fico pensando se não seria mais fácil você pensar no bem comum em vez de defender apenas a sua parcela de lucro.

É, é complicado pra mim entender você. Por favor, perdoe minhas limitações. Passei a vida inteira ouvindo meu pai reclamar do Governo FHC enquanto eu cultivava uma séria resignação em ser pobre na vida adulta — não pobre do tipo miserável, não, não vou me fazer de vítima muito embora saiba que seria um deleite pra você a possibilidade de me acusar de vitimismo; mas eu pensava que seria pobre do tipo três salários-mínimos que não cobrem todos os carnês a pagar. Aí veio um governo de esquerda me dando a possibilidade de sonhar com carro zero, casa própria, poupança para as férias no exterior (não mais como um sonho inalcançável, mas sim como um plano factível) e meus olhos se voltaram para o outro lado. Eu parei de invejar a sua casa com piscina e três carros (e a forma entediada com a qual você se relacionava com esses itens, mostrando para mim que eram artefatos corriqueiros em sua vida zona sul) e comecei a pensar uns absurdos aí.

Que tipo de absurdos? Bom, e se todos tivessem a possibilidade de ter uma piscina em casa? E se todos pudessem jantar fora nos fins de semana? E se essas coisas que eu encarava como luxos exclusivos da sua vida fossem escolhas que todos pudessem fazer? E se a cesta básica fosse apenas o início da ida ao supermercado? (Eu lembro que você comia iogurte no café da manhã com o mesmo desprezo que se come pão com manteiga no almoço e isso me fez pensar: por que iogurte para mim era uma sobremesa a qual só tinha direito uma vez por semana enquanto fazia parte da sua dieta regular?). É, parece com socialismo o que estou dizendo, mas não é. É apenas uma forma mais justa, mais humana de ver o mundo. Você vai dizer que isso quebraria todo o sistema capitalista e é, portanto, inviável. Mas por que precisa ser impossível? Por que o iogurte diário no café da manhã deve pertencer apenas a você? Não, cala a boca, agora você vai me ouvir. Sim, vai sim!

Não quero usar um tom acusatório aqui, mas isso que aconteceu com meu pensamento tem muito da sua participação: foi observando seu desprezo pela necessidade dos que não são você que percebi que eu tinha que fazer alguma coisa; eu tinha que lutar por essa ruptura. Não estou dizendo que pra você foi fácil (sei das suas lutas e das tantas batalhas que perdeu), mas você ao menos não tinha que voltar pra casa às onze da noite num ônibus superlotado após oito horas de expediente e mais quatro de aula; você nunca teve que baixar a cabeça ao entrar na padaria chique para não ser encarado como uma ameaça pelos brancos que só vêem negros na televisão; você nunca teve que mentir sobre sua orientação sexual para ser autorizado a doar sangue pro seu irmão; você nunca passou por um monte de coisas e no entanto fica aí cheio de certezas sobre o mundo.

Não culpa a Dilma, tá? Nossa bronca é bem anterior a isso tudo. Dilma só acentuou o que nos diferencia. Ahn? Você não sabe? Vou te dizer. A diferença entre nós dois é que minha luta me tornou sensível à luta dos outros. Eu quero que todos vençam e tenham seu naco de benefícios, porque não me sinto bem tendo tantos privilégios enquanto outros morrem de fome. E sim, isso tudo pode acontecer dentro do capitalismo, eu sei que é possível, pelo amor de Deus, esquece essa viagem de me acusar de comunista. Em qual bolha você vive onde comunista é um insulto, hein? Esquece isso e presta atenção. Estou lutando dentro das regras desse livre mercado que você ama do amor táctil que votamos aos maços de cigarro (eu tinha que citar Caetano pra ver essa tua cara de não-entendi-nada), mas nem por isso posso fechar os olhos aos defeitos que esse sistema tem. Por favor, caro amigo coxinha, a gente está aqui pra evoluir. E meu naco de contribuição para a evolução da história de todos nós é repensar o mundo colocando as pessoas, e não as regras, acima de tudo. Foi assim que lutei e conquistei um monte de coisas (a casa com piscina ainda está pendente, mas segue plausível) e nem por isso virei um elitista fascista opressor. Oi? Se eu tô chamando você de elitista fascista opressor? Sim.

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Patrício
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Escritor, jornalista, publicitário, roteirista. Autor dos romances “Lítio” e “Absoluta Urgência do Agora” e da coletânea de contos “A Cega Natureza do Amor”.