Coisas

Lá pros idos de 2008 mudei de cidade pela primeira vez. Foi quando escrevi "Coisas". Hoje, descarregando um caminhão de mudança que tinha mais caixas do que a prudência devia permitir, esse texto voltou a minha memória.

Patrício
Blog do Patrício

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“So now we’ve got our independence

What are we gonna do with it?”

Simply Red, “Never Never Love”

E então, ao fazer a mala, percebi. Minha vida não cabe. Que nada comprimi-la, espremê-la, reduzi-la. Que nada. Minha vida não cabe numa mala. É que fui tirando coisa por coisa do armário e de repente não eram mais coisas. Eram pedaços. Como se eu repartido em muitos tantos. Recortes do que sou: tudo espalhado pelo chão do quarto. Não caibo num quarto. Quiçá nem mesmo em mim.

Há pedaços da quinta série, folhas de caderno que falam de antônimos e binômios, fotossíntese e sintaxe, mesóclise e meiose. Falam tanto de quando eu nem tinha barbas para pôr de molho. E agora olho, agora ouço: eu era e ainda sou aquele que sentava na primeira carteira, que levantava a mão pra perguntar besteira, que queria ser mais inteligente que todos. Às vezes fui. Às vezes tolo.

Não dá pra me carregar sem excesso de bagagem. Não posso deixar pra trás os gibis do X-Men, os poemas que não rimam, a evolução da minha rubrica até chegar ao que hoje reconheci firma. O batom seco na carta que seria completamente grifada pelo programa de computador — houvesse sido escrita no computador. Manuscritos, Jesus Cristo, manuscritos diante de mim! Tocando as teclas do PC, meus dedos revivem a liberdade de não precisar inicializar, acessar, deletar — de apenas ser preciso papel e caneta para ter voz. Ai de nós, lhes digo.

O que cabe dentro da mala é, pois, parte apenas do que sou. E como me levar até onde quero? Espero, é o que faço, espero. Um, dois, três minutos, horas, dias. O tempo que for para acostumar à ausência dessas coisas pequeninas. E entender que não sou elas. Elas é que, por minha causa, foram. Me pergunto se em minha ausência já não serão.

Os dados de RPG, a caneca da Bienal do Livro, o CD de Simply Red. Que contarão eles quando eu não mais aqui? Dirão os dados que fui durante um carnaval, da sexta à quarta, enterrado num sítio com alguns amigos, não um folião, não um arlequim: podem atestar esses dados, sim: um mago que se transmutava em animais. E abri uma porta e lancei os dados e tive azar demais. Na quarta de cinzas, estava fora do jogo. Seu mestre mandou.

E quando caminhei pelo pavilhão lotando, fervilhante, inefável Bandeirantes? Foi lá que encontrei a caneca vermelha que não cabe na mala. Foi lá que meus pés doeram e minha cabeça girou: diante de estandes gigantescos que jamais pensei ver. Este sou eu. Este sou eu. Este sou eu. E essa caneca sabe com que olhos cheguei até ela, segurando em sua asa todo pronto pra voar, definindo ali mais uma vez com uma coisa quem eu era. Quem quer que seja. Eu era o garoto da caneca vermelha.

Não cabe o Simply Red, não cabe o Linkin Park. Portishead, Ray Charles, Fiona Apple, Björk: não cabem. A mala e sua boca se abrem e permanecem prestes a engolir o mundo. Prestes. Mas não: engolem apenas o limite de peso que a companhia aceita. Todas essas coisinhas que ficam são exatamente o que me delimitam. As músicas não. As músicas carrego comigo: no coração, no HD, no DVD. Mas os CDs, dá pra entender? Eles ficam aqui com seus encartes coloridos e suas letras impressas e lidas sem pressa, tantas vezes sem pressa, o importante era decorar. CDs ficam, livros ficam, lembranças quicam. Garrafinhas do Bregareia, foto na Mor Gouvêia, calendário da Caixa, Patolino de borracha, guarda-roupa de portas rotas, essas meias, essas tocas. Ficam.

O que carrego para o check-in é só uma parte. Talvez tantos outros eus venham comigo. No coração, na memória, na saudade. Talvez eu encontre outras minhas partes. Talvez eu seja apenas uma coisa. Que precisou atribuir sentido a outras coisas para adquirir algum sentido. Paro então. Parto então. Incompreendido.

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Patrício
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Escritor, jornalista, publicitário, roteirista. Autor dos romances “Lítio” e “Absoluta Urgência do Agora” e da coletânea de contos “A Cega Natureza do Amor”.