A PALAVRA

Patrício
Blog do Patrício
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3 min readJan 3, 2009
boneca

Aquela palavra. Pronunciada desde sempre em sua casa, tudo com uma falta de pudor, um desprendimento da vergonha, uma naturalidade. Várias mulheres, poucos homens, o resultado era que a palavra sempre pousava em algum lábio nas conversas casuais. Às vezes porque Ana Paula sentia dores muito fortes, outras vezes porque não tinha chegado a de Carmem. A prima sempre fazia esse tipo de drama com a palavra. Parece que sentia prazer em desesperar a tia Lúcia, que prendia o choro com as piadinhas da filha.

A palavra.

Ela não gostava de ouvir, não queria saber o que era, tinha nojo de pensar que aquilo aconteceria um dia. A mãe, entretanto, era compreensiva com a repulsa da filha. Dizia que era inevitável, que toda mulher passava por aquilo, que a hora dela chegaria. Eu não quero, mamãe, não quero, Bela dizia, agarrada à sua boneca de pano, batendo o pé no chão como se isso pudesse frear a vida.

Antes dela, porém, foi a vez de Julinha. Pouco mais de dez anos, a menina. Gastava a infância jogando futebol com os garotos, toda cheia de pereba nos joelhos, o cabelo desgrenhado como uma luta. As tias reclamavam que isso era coisa de menino, mas a mãe de Julinha era moderna, queria mais que a filha fosse feliz. Bela amava a prima com seu jeito moleque, seu não atentar à vida, tanta liberdade. Pois Julinha provou que não tinha nada de menino justamente num almoço de domingo. Sentada na varanda fazendo a Barbie bater pênalti pro Ken defender, e de repente aquilo. Vermelho, viscoso, vivo. A palavra.

A primeira que viu foi Carmem, berrando como locomotiva pela casa que Julinha estava machucada. Correu todo mundo. Aliás, quase todo mundo. Os homens ficaram de longe, como quem bisbilhota um acidente de trânsito, todos imersos num não entender tipicamente masculino. Foi a mãe de Bela quem primeiro se aproximou da prima, toda lacrimosa agarrada à Barbie, ao Ken, à bola. O que aconteceu comigo, tia?, ela perguntou chorosa. E a mãe de Bela, trocando olhares com a filha, abraçou a sobrinha como se um útero pronto a proteger por nove meses. A palavra, Julinha, a palavra.

Depois daquilo, Bela passou a odiar mais ainda o que era inevitável. Primeiro, porque percebeu Julinha cada vez mais distante da bola, dos meninos, do sentar no chão só de calcinha. Segundo, porque começou a enxergar seu futuro na prima. Sempre com o cabelo domado por cremes, os lábios mergulhados nos mais brilhantes batons, as unhas grandes que não brincavam mais na terra de antes. Julinha agora se chamava Júlia.

E Bela olhava em volta de seu mundo perfeito de bonecas cor de rosa e vestidos de babado para dizer não, não e não à palavra. Não àquilo que transformou Julinha numa versão mais nova da Carmem. As duas de quiquiqui pra lá e pra cá, fingindo timidez na frente dos meninos, sorrindo entre dentes. Falsas, dissimuladas, pesadas.

A mãe tentava em vão dissuadi-la da aversão. Explicava calmamente, veja bem, Bela, não é ruim, você fica mais bonita, vai ter mais liberdades. E era tão doce o tentar convencer da mãe que quase conseguia. Mas não. Bela se trancava no quarto, dizia que odiava todo mundo e rezava para que jamais passasse a se chamar Isabel.

Um dia acordou e viu a mancha no lençol. A palavra se espalhando pelo tecido branco, viva e pulsante na cor da guerra. Gritou, chorou, quis morrer. A mãe veio correndo, entendeu tudo, deu aquele abraço de útero. E foi tão bom estar nos braços da mãe, sentir-se protegida, ver que a mãe era como ela, feliz, verdadeira, leve, não parecia com a Carmem nem com a Júlia.

No aniversário de 60 anos, lembrava suavemente daquele dia de descobertas até ser interrompida pela neta. Com a bola na mão, a menina queria que Vó Bela ensinasse a Barbie a bater um pênalti.

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Patrício
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Escritor, jornalista, publicitário, roteirista. Autor dos romances “Lítio” e “Absoluta Urgência do Agora” e da coletânea de contos “A Cega Natureza do Amor”.