O MAR E O VELHO

Patrício
Blog do Patrício
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4 min readNov 18, 2008

“Pode ser que eu não esteja tão forte
como penso — admitiu o velho –,
mas conheço todos os truques.”

Ernest Hemingway em O velho e o mar

Às quinze para a meia-noite, quando todos já estavam com seus champanhes em punho, descalços e excitados, devidamente vestidos em branco num alvor que dava ainda mais esperanças no futuro, o velho disse: eu também vou à praia. A frase, ao se estender pela casa, quase sufocou a euforia reinante. Quase mesmo. E só não o fez por completo porque o respeito e alguma noção politicamente correta impediram filhos, netos, genros e noras de tentarem demover o patriarca da idéia.

Estavam a cerca de cem metros da beira-mar e o velho não agüentaria a caminhada. E mesmo que alguns cultivassem a esperança de que ele agüentaria, dificilmente chegariam à praia antes da meia-noite, visto que os passos curtos apoiados na bengala não eram os melhores amigos da pontualidade. Antes que a sensação de impotência recaísse sobre todos os presentes, entretanto, um deles teve a idéia. Vamos de carro. Obviamente, não alcançariam a beira-mar sem que atolassem o veículo, mas encurtariam o máximo de distância possível. Vamos até onde o carro conseguir.

A horda de mais de vinte pessoas, alguns com bebês nos braços, outros carregando frutas, mais alguns de mãos abanando e com o peito recheado de desejos, seguiu caminhando pela avenida. Os passos eram apressados mas contidos, ninguém queria chegar à orla suado ou com os cabelos desfeitos. No caminho, contavam suas uvas, repassavam os pedidos, alguém perguntava pelas romãs. O carro passou por eles próximo ao acesso à praia. Entrou numa viela e seguiu rumo ao mar. O mais próximo que conseguisse. Alguns sorriram ao ver o velho abanando as mãos na janela. Faltavam cinco minutos para a meia-noite.

No estacionamento improvisado, no ponto exato em que o pneu afundou na areia mais que o recomendável e o motorista — tomado de prudência — resolveu não insistir, o velho tentou descer sozinho do carro. Como se mostrasse impossível, contou com a ajuda do filho mais novo e do genro mais velho. Sempre dizendo, é claro, que não precisava, que pode deixar, que eu vou sozinho. Era sabido que não iria. A areia da praia estava fofa, solta, voando com o vento forte daquela noite. Pra completar, a maré estava baixa, aumentando a distância entre o carro e o mar. Faltavam dois minutos para a grande hora quando o patriarca deixou bem claro que fazia questão de molhar os pés.

Fogos iluminaram o céu. Gritos, abraços, aleluias das mais diversas formas. Pois pode prestar atenção: nessa hora, quando todos estouram champanhes e brindam aos próximos 365 dias, fica tudo muito parecido com um louvor de igrejas. Assim, como anjos, abraçados e felizes, a família festejou. Não faltaram beijos na face do velho, todos felizes pela presença dele mas sem saber exatamente por quê — seria o desafio vencido?, ou por não ter causado atrasos?, seria simplesmente porque estava ali?

Com a bengala se enterrando na areia fina e branca, o velho saiu caminhando rumo ao mar. Quase não notavam sua ousadia. Mas o genro correu para apoiá-lo, disfarçando sua preocupação com comentários sobre a beleza dos fogos. Lentamente, como é a fisiologia dos que já viveram muito, o velho tirou as sandálias, deixou a bengala cair para o lado, livrou-se do apoio do genro e avançou três passos para dentro da água. A primeira onda do ano novo tocou, então, seus pés.

O filho veio logo em seguida, preocupado, aturdido, incrédulo. Estancou um pouco atrás, deixou o cigarro cair dos lábios e buscou com sofreguidão a máquina fotográfica nos bolsos. Era inacreditável. Ainda com as luzes estourando sobre suas cabeças, todos puderam ver o patriarca mergulhando sozinho no mar.

O sal, os sargaços, o gelado do mar. O velho sentiu cada um desses elementos em seu corpo. E de alguma forma que não sabia precisar, sentia outras coisas que não deveriam fazer parte do oceano. Sua mãe jogando a água da banheira em sua cabeça, o primeiro beijo em meio à chuva, a farda das forças armadas mergulhada em medalhas, o cheiro do cabelo molhado daquela menina do interior, o suor nas mãos até que o médico anunciasse que era menina, o olhar do primeiro neto quando pediu um copo d’água dizendo vovô. Como uma criança de volta ao ventre, rolou na delícia de uma pequena onda, sorriu do seu desequilíbrio, brincou dentro de sua placenta.

Ao ver tanta vida emanando do velho, do seu sorriso de poucos dentes e muitos sentimentos, do seu olhar cinzento mas incrivelmente brilhante, dos seus cabelos que eram brancos mas de repente estavam prateados, todos os outros esqueceram seus pedidos. Com romãs e uvas sem utilidade, só pensavam numa coisa ao voltar pra casa: se jogariam no mar o quanto antes.

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Patrício
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Escritor, jornalista, publicitário, roteirista. Autor dos romances “Lítio” e “Absoluta Urgência do Agora” e da coletânea de contos “A Cega Natureza do Amor”.