PORCAS, PARAFUSOS & REJUNTES

Patrício
Blog do Patrício
Published in
3 min readNov 26, 2008
azulejo1

Estava encostado na pia da cozinha olhando fixamente a parede de azulejos brancos — um pouco encardidos — e pensava justamente qual tipo de produto mágico teria o poder de limpar aquelas manchas amareladas dos cantos dos azulejos que eram iguais às pequenas machas amareladas que o tabaco lhe presenteara no canto dos dentes. A chuva podia ser ouvida através dos basculantes da porta da cozinha e também ouvia nitidamente o ranger dos parafusos da cama de metal que vazava por baixo da porta do quarto, sinais de que a vida habitando ali dentro ainda fritava no colchão em busca de sono enquanto ele seguia olhando fixamente os azulejos branco-amarelados como seus dentes que, como os parafusos frouxos da cama do quarto, rangiam sem que ele pudesse dar-se conta, frouxos que estavam seus parafusos, os da cama e também o de alguém muito louco que teve a genial idéia de colocar azulejos brancos numa cozinha — posto que as frituras, os cozidos e os assados dotavam estes gradativamente de uma coloração amarelada de gordura (ou de tabaco, no caso dos dentes, pensava, ao mesmo tempo percebendo que também havia um parafuso frouxo na mente que concebeu dentes brancos, posto que as frituras, os cozidos, os assados, e também o tabaco, lhes dotavam deste aspecto branco-amarelado semelhante a uma carta velha que se perde no desvão da memória). Uma carta velha. Jamais havia parado pra pensar como se assemelhavam a cartas velhas aqueles azulejos que já não cintilavam à luz fluorescente da cozinha, como pareciam contar notícias de frituras, assados, cozidos e tabacos do passado, o amarelo entranhado entre os rejuntes relembrando a todos as coronárias entupidas, os dentes amarelados, a perda de vida. De repente a chuva estava mais grossa, mas não conseguia abafar o ranger irritante dos parafusos frouxos — e também das porcas, pois costumamos culpar somente os parafusos, quando é sabido que nunca se afrouxam sozinhos. De fato, algo estava frouxo. Entre os rejuntes daquilo que soçobrava no ar entre a vida encostada à pia da cozinha e a vida fritando na cama de porcas frouxas: algo estava solto. Como uma carta que fala de coisas lindas e antigas, sim, uma carta velha e amarelada que adquire outro sentido depois de alguns anos. Havia algo solto entre as frases belicosas que tropeçavam dentes amarelos afora, caíam como azulejos no chão e saíam cortando tudo. Havia algo solto quando se deitavam na cama de ranger ininterrupto e se diziam boa noite. Havia algo solto, um parafuso, uma porca, estavam ambos desenroscados um do outro. Ou desenroscando-se. Pois o bolor que persistia na parede branca de alguma maneira fazia que os azulejos soassem como um só: o mesmo bolor dessas cartas antigas que muda seu significado mas, sem que percebamos, mantém nelas algum significado. Qualquer que seja. Afinal, que significam esses momentos em que penetramos no mais íntimo do todo e notamos que cada ínfima parte produz um equilíbrio sutil para soar, então, como um todo? O que significa, afinal, o significado das coisas? Era o que se perguntava ainda com os olhos nos azulejos, ainda com os ouvidos no ranger da cama, ainda com algumas palavras cravadas no peito como… cacos de azulejo?… pedaços de dentes?… gorduras amarelas? Estava entalado. Por dentro, por fora, estava entalado das palavras que ouviu, das palavras que não disse, das palavras que não conseguia entender o significado. Que significa pessimicerteza? Pois era o que sentia. A pessimicerteza de que os azulejos estavam pontiagudos, os dentes estavam tortos, a cartas estavam tão amareladas — mas tão amareladas — que já não se podia ler seus códigos. Um a um, frituras, assados, cozidos, todos foram perdendo o sabor de domingo. Eram uma segunda chuvosa. Mas enfim: era uma segunda chuvosa. Pois já passava da meia-noite, pois a chuva caía implacável, pois seus sentimentos estavam todos focados em uma única coisa: conseguir um produto de limpeza mágico que conseguisse tirar a sujeira entranhada entre os azulejos. Sabia que o rejunte não iria agüentar tanta merda.

--

--

Patrício
Blog do Patrício

Escritor, jornalista, publicitário, roteirista. Autor dos romances “Lítio” e “Absoluta Urgência do Agora” e da coletânea de contos “A Cega Natureza do Amor”.