Liga da Justiça: um filme de super-heróis que não é apenas um filme de super-heróis

Após os tropeços iniciais, a DC acertou o tom com uma aventura cheia de subtextos

Patrício
Blog do Patrício

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ATENÇÃO: TEM SPOILER PRA CACETE.

É impossível não comparar, então já começo na polêmica. Pegue os roteiros dos dois Vingadores (o de 2012 e o de 2015), carro-chefe do Universo Cinematográfico Marvel, e esprema até retirar todos os efeitos especiais e piadinhas.

O que sobra?

Arrisco a responder: vilões sem propósito, heróis sem conflito, roteiros cheios de furos. Até hoje não consigo acreditar que a primeira ideia de Ultron, uma inteligência artficial baseada em tecnologia alienígena, foi se enfiar num corpo físico sem wi-fi!

A Marvel conseguiu muitas vitórias e grandes acertos, e é inegável sua importância para o cinema mundial. Mas sejamos sinceros: se não fosse pela bilheteria estrondosa, os filmes dos Vingadores seriam vergonhosos.

Esse tipo de coisa é justamente o que a DC não queria pros seus filmes. Errou no tom, amargou fracassos, acertou o rumo com "Mulher Maravilha" e agora conseguiu consolidar seu universo em "Liga da Justiça". Acertou na hora certa. No principal produto.

Time discrepante: não tá fácil salvar o mundo.

Tudo funciona no filme. E sem a necessidade de recorrer ao complexo de sitcom da Marvel.

A trama do filme é a continuação do que vimos em "Batman vs Superman". Após a morte do Homem de Aço, Batman passa a recrutar meta-humanos para formar um exército que enfrentará a ameaça intergalática prevista nos eventos de BvS. Através dos documentos da LexCorp, Bruce Wayne chega a quatro grandes nomes: Mulher Maravilha, Flash, Aquaman e Ciborgue. Mas talvez a ameaça que está por chegar seja mais poderosa que todos eles juntos.

O Lobo da Estepe é o vilão da vez. E sua missão é reunir as três caixas maternas (artefatos alienígenas deixados há centenas de anos na Terra) para modificar a estrutura do planeta e deixá-lo mais parecido ao seu habitat natural. O problema é que isso vai matar todo mundo. E é isso que nossos heróis têm que impedir.

Mesmo consertando o tom e abandonando o drama pesado que marcou seus filmes anteriores (notadamente "Superman" e "Batman vs Superman"), a DC não caiu no erro da Marvel de fazer paródia de si mesma. O complexo de sitcom da Casa das Ideias é responsável por momentos vexaminosos em seu universo cinematográfico — aquela mania de ter um alívio cômico a cada menção de momento tenso, como se tivessem que meter uma piada a cada página de roteiro. A DC não faz isso e que bom!

O tom é mais leve, temos boas piadas, a aventura é até meio boba, mas tudo é tocado com uma coesão perfeita. Aí tudo soa natural. Das piadas de Flash aos foras que Aquaman dá no Batman, tudo é verossímil. Nada parece uma paródia.

Vem roubar meu coração, Diana!

Uma aventura cheia de significados implícitos. Mesmo que você não tenha percebido.

Talvez você não tenha notado, mas "Liga da Justiça" denuncia o extremismo e a intolerância. A primeira aparição da Mulher Maravilha no filme é a chave para compreender do que realmente a DC está falando em "Liga da Justiça".

Diana Prince surge no filme resgatando civis de um sequestro a um banco. Mas os bandidos não querem dinheiro: eles são fundamentalistas cristãos que querem explodir tudo para livrar o mundo da iniquidade.

Não por acaso, o discurso do Lobo da Estepe é muito semelhante ao dos extremistas do início do filme: ele quer livrar a Terra do que considera inferior para fazer um planeta onde a unidade é reinante (ou seja, o Lobo da Estepe quer um planeta em que todos são iguais a ele; e quem não for igual deve morrer).

Esse subtexto torna a aventura mais deliciosa. Afinal, os maiores heróis do mundo não estão lutando apenas contra um vilão com planos megalomaníacos — mas sim contra uma ideologia supremacista que vai tirar a liberdade e a vida de milhares de pessoas.

É maravilhoso ver esses ícones do heroísmo mostrando que combater a intolerância é uma missão de todo mundo — e que todos, sem exceções, têm poderes contra esse mal.

Vai, Marvel, faz algo assim, por favor.

Flash: de alivio cômico a papel imprescindível

Cada um na sua, mas com algo incomum

O time que Batman monta é heterogêneo, discrepante e aparentemente fadado ao fracasso, mas é o que tem pra hoje.

Enquanto a Mulher Maravilha diz coisas como "Devemos nos sacrificar para salvar a Humanidade", o Flash confessa que não é e nem pretende ser um herói, que apenas "empurra pessoas e foge".

Essa discrepância entre os heróis vai tornando a missão cada vez mais complicada, até que o Superman retorna. E finalmente temos um Superman de verdade!

Superman, o verdadeiro: altivo, invencível e inspirador

Kal-El sempre foi, dentro do universo DC, o exemplo de liderança, altruísmo e heroísmo. E é isso que ele inspira em todos os membros da Liga da Justiça. É como se dissesse: não estamos aqui para resolver nossos problemas, estamos aqui para fazer o que é certo. É o tipo de inspiração que Batman e Mulher Maravilha não conseguem transmitir. Mas Kal-El consegue. E faz.

Mais uma vez, Mulher Maravilha e as amazonas roubam a cena, mas o páreo aqui é duro. Apesar do deslumbre visual que é a batalha de Themyscira, mais uma vez embasbacando a todos com sequências de ação de tirar o fôlego, o ataque a Atlântida também impressiona. Já dá aquele gostinho de "vai ser foda o filme do Aquaman".

Aquaman: beberrão, grosseiro e maravilhoso.

Por falar nele, Aquaman surpreende. Beberrão, grosseiro, quase mal educado, o Rei dos Mares é um contraponto perfeito para o soturno Batman — que aqui deixa de ser soturno para se tornar rabugento.

Aquaman ri do traje do Batman, provoca Bruce Wayne, duvida do seu poder de liderança. E isso tudo não só é incrível como também é muito crível! Claro que o príncipe rebelde de Atlântida não se curvaria facilmente à liderança de um humano fantasiado de morcego.

Batman: menos soturno, mas nunca bom moço

O Batman desse filme, como disse antes, é menos soturno e mais rabugento. Faz sentido também: esse Batman já perdeu seu Robin, já desistiu de Gotham, já cometeu o erro crasso que levou à morte do Superman. Agora Bruce Wayne quer se redimir com a Humanidade por achar que a desunião dos humanos vem justamente do fim abrupto da esperança que o Superman inspirava.

Flash, por sua vez, entrou no filme como alívio cômico, mas acaba funcionando como olhar do público. Explico: ele é o único ali que tem uma vida mais ou menos normal, e de repente se vê jogado no meio de uma trama que envolve tecnologia alienígena, assassinato em massa e fundamentalismo. Normal que queira apenas empurrar pessoas e fugir. Eu também iria querer o mesmo.

Ciborgue: quanto menos humano, mais heróico

Já Ciborgue levanta dúvidas no início, mas segura a onda. O forte do personagem não é o carisma, mas justamente a falta dele: Ciborgue é um jovem transformado em máquina à revelia, e a involução de suas emoções vai se tornando clara a cada aparição — a raiva vai se tornando frieza, e Ciborgue vai se transformando num herói mais complexo que seus pares. Conforme vai perdendo sua humanidade, seu poderes vão aumentando, e o conflito é inevitável: como ser herói sem empatia?

No final das contas, todas essas peças se encaixam perfeitamente. Cada um ali tem o seu papel na trama, a sua utilidade, a sua motivação pessoal para ir adiante. E o mais importante: cada um tem um poder, que não é apenas o mostrado pelos efeitos especiais, mas sim o poder de descobrir a humanidade dentro de si mesmo para ir além.

É tudo muito cristalino: Flash quer mostrar que não é um bandido como seu pai, Ciborgue quer encontrar seu lugar no mundo após se transformar numa máquina, Batman quer se redimir por seus erros já mencionados, Mulher Maravilha quer remediar os danos que seu exílio causaram ao mundo. E Superman…

Que time!

Bem, Superman parece ter percebido que é mortal como todos os outros, e agora se mostra mais humano, menos deificado. Quando abandona uma luta para salvar civis que estão na área, isso fica bem claro: é esse o Superman que a gente quer, o cara que pode explodir um planeta com um olhar mas está mesmo preocupado é em salvar a garotinha que ficou presa num incêndio.

A gente quer heróis que não deixam de ser humanos. Mesmo que não sejam.

O que "Liga da Justiça" nos entrega é um excelente filme de ação com um bem-vindo subtexto: não importa quais são os seus poderes, você pode se unir com outros para impedir o pior. Ou ainda: não existe poder maior do que o de perceber-se humano.

É justamente a mensagem que a gente precisa nesses tempos de intolerância, desunião e desesperança. É justamente isso que os heróis da DC sempre fizeram pela Humanidade: mostrar que todos nós, a sua maneira, somos heróis.

Aprende, Marvel.

DE ZERO A DEZ: ★★★★★★★★★✩

Liga da Justiça (Justice League) — EUA, 2017
Direção:
Zack Snyder
Roteiro: Chris Terrio
Elenco: Ben Affleck, Ezra Miller, Gal Gadot, Henry Cavill, Jason Momoa, Ray Fisher.
Duração: 121 min.

EM TEMPO: Liga da Justiça é a maior estreia de filme de super-heróis de todos os tempos

Apesar de não fazer a linha músculos-sem-cérebro, “Liga da Justiça” teve uma estreia arrasadora nos cinemas — batendo todos os recordes do setor e se consolidando como a maior estreia de filmes de super-heróis de todos os tempos.

Segundo o Omelete, "Liga da Justiça" se tornou a maior abertura da indústria de todos os tempos, na frente de A Saga Crepúsculo — Amanhecer Parte 2, que arrecadou R$ 11 milhões também em um 15 de novembro. Também é a maior abertura de todos os tempos da Warner, na frente de Batman vs Superman — A Origem da Justiça (R$ 9,2 milhões). O valor também coloca o longa como a maior abertura de um filme de super-heróis de todos os tempos, na frente de Capitão América: Guerra Civil (R$ 10,1 milhões), e como o maior dia de abertura de 2017, na frente de Velozes e Furiosos 8 (R$ 7,8 milhões). Para finalizar, "Liga da Justiça" é a maior dia de abertura da Warner no ano, na frente de It — A Coisa (R$ 5,5 milhões) e a maior abertura de um filme de super-herói do ano, passando Homem-Aranha: De Volta ao Lar, que arrecadou R$ 6,9 milhões em seu dia de estreia.

ps.: Acabei assistindo “Thor: Ragnarok” uns dias antes de “Liga da Justiça” e é impossível não se fixar na quantidade de bobagens que a Marvel meteu em seu mais recente blockbuster. Por exemplo: Hela, a deusa da Morte, retorna para Asgard, um lugar de onde só é possível entrar e sair através da ponte de teletransporte conhecida como Bifrost. Essa ponte só é acionada pela espada de Heimdal, que agora está em posse de um capanga trapalhão de Hela (que, diga-se de passagem, ela conheceu assim que chegou em Asgard). Quando decide ir embora para seguir sua conquista de territórios, Hela esbarra num obstáculo: a espada que aciona o Bifrost desapareceu. Agora pense comigo: você é uma deusa milenar que quer conquistar o universo; aí você inicia sua conquista por Asgard, lugar de onde só se sai ou se entra pelo Bifrost. Por que cargas d’água Hela não guardou a espada consigo??? Por que ela confiou um elemento crucial do seu plano a um cara que acabou de conhecer??? Como é possível que uma vilã com milênios de existência tenha cometido um erro tão básico? Dá licença, Marvel!

pps.: Posso ter soado meio raivoso com a Marvel, mas realmente gosto do universo que eles construíram e acho que tem muito mais acertos que erros. “Spiderman: Homecoming” e “Doutor Estranho” são dois exemplos recentes de grandes filmes com a grife Marvel. Isso só aumenta minha revolta com as bobagens que eles gostam de fazer nos filmes dos Vingadores.

Gostou? Então bate palmas 👏 aí embaixo pra esse texto ser visto por mais pessoas.

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Patrício
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Escritor, jornalista, publicitário, roteirista. Autor dos romances “Lítio” e “Absoluta Urgência do Agora” e da coletânea de contos “A Cega Natureza do Amor”.