Noites foram feitas para dizer coisas que não podemos dizer no dia seguinte

Patrício
Blog do Patrício
Published in
3 min readJan 17, 2017

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É noite e na minha memória você diz que vai chegar às quinze horas. Eu fumo o último cigarro às dez pras três e escovo os dentes pra esconder os traços do tabaco. Quinze horas a campainha toca e eu percebo que minhas mãos estão suadas.

É noite e na minha memória o cheiro é de perfume e sabonete com um toque de suor porque o calor está demais. A gente conversa pouco, na minha memória. Algo sobre como o apartamento está bem arrumado. Eu falo com orgulho, Mantenho sempre assim. Mas você nota que é mentira. Você nota as coisas. Alguma coisa em mim está bem bagunçada.

É noite e na minha memória eu busco água pra você na cozinha pedindo desculpas por não ter mais nada a servir. Eu digo que não tive tempo de ir ao mercado, mas na mesma hora lembro que tive tempo de sobra e me faltou disposição. Não quero que você perceba a minha falta de disposição.

A gente se beija no umbral da porta da cozinha. Essa parte é bem bonita, na minha memória. Bem bonita.

É noite e na minha memória as roupas caem pela sala numa chuva de disfarces para que sejamos finalmente sinceros. Perfume e sabonete e um pouco de suor agora recendem mais fortes numa só fragrância que não resisto em transformar em sabor. Você sorri quando me enterro no seu pescoço com a fome de mil homens. Você gosta de sorrir.

É noite e na minha memória, por mais improvável que pareça, carrego você para o quarto. Não de um modo figurativo, não, estou sendo denotativo aqui: eu pego você nos meus braços e vamos, atados, comprimidos, únicos, vamos para o quarto. Você assanha meus cabelos, eu arranho tuas costas. Tudo parece ensaiado por milênios de solidão.

É noite e na minha memória toca uma música bonita. “Do I Wanna Know” do Arctic Monkeys, eu acho. Toca repetidamente, insistentemente, compulsivamente. O ar está no vinte e dois e se encarrega de aplacar calores; os lençóis são uma terceira pele naquele encontro de tantas peles. A gente brinca de ser um sem nenhum esforço. É bem natural como nos tornamos um.

É noite e na minha memória dá uma certa tristeza no fim, que escondemos habilidosamente contando histórias engraçadas de um passado que nem sabemos se realmente existiu. Você diz que quer morar na Europa. Eu digo que bebi muito na sexta. Você pergunta se eu fumo e eu conto que tentei esconder os traços do vício com pasta de dente e Listerine. A gente sorri dessa bobagem. Mas tem uma tristeza nisso tudo.

É noite e na minha memória eu já sabia que tudo ficaria na minha memória. Deve ser isso.

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Patrício
Blog do Patrício

Escritor, jornalista, publicitário, roteirista. Autor dos romances “Lítio” e “Absoluta Urgência do Agora” e da coletânea de contos “A Cega Natureza do Amor”.