Planeta Fome, o novo de Elza Soares

O álbum que o Brasil tem que ouvir pra voltar a ser Brasil

Patrício
Blog do Patrício

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"Planeta Fome", o novo álbum de Elza Soares chega cheio de simbolismos. O título é uma referência à estreia de Elza no programa de calouros de Ary Barroso, em 1953. E esse episódio clássico é essencial pra compreender o trabalho.

Ainda muito pobre, Elza usou no programa uma roupa da mãe, salpicada de alfinetes para se ajustar ao seu corpo mirrado. O apresentador tentou ridicularizá-la: “De qual planeta você vem, minha filha?” Elza respondeu na lata: “Do mesmo que o senhor. O planeta fome”.

A estreia foi retumbante.

Nesse vídeo abaixo, ela conta o episódio:

É com esse sentimento de afronta, mas também amor, que “Planeta Fome” chega para falar diretamente sobre os tempos obscuros que atravessamos. Não por acaso, a capa do álbum é obra da Laerte: um planeta caótico, distorcido, superpopuloso, sustentado nas costas de uma mulher.

Faixa a faixa, Elza nos entrega um álbum de revolta, de afronta, e o que é mais surpreendente: cheio de esperança. Um álbum que tenta reconstruir o que entendemos por Brasil, denunciando as distorções e louvando as qualidades.

"Planeta Fome" é, pra mim, o primeiro álbum verdadeiramente sobre o Brasil do Golpe. Aquele tipo de trabalho que vai fazer muita gente parar pra pensar: “Poxa, é mesmo, estamos assim”.

E mais: o álbum que ouviremos daqui a algumas décadas para lembrar, sem saudade, como o Brasil estava em 2019.

Planeta Fome, faixa a faixa

São 12 músicas, num crescente emocional coeso, maduro e com boas experimentações. Coisa fina que poucos cantores brasileiros estão conseguindo fazer. Devore o "Planeta Fome".

Faixa 1: "Libertação"

feat. Baiana System e Virgínia Rodrigues

Elza começa o álbum dizendo: “Eu não vou sucumbir”. E é isso. A sonoridade do sistema baiano faz a gente querer berrar a letra toda.

Foi o primeiro single e eu já estava habituado ao seu impacto. Fez parecer que o que viria no novo trabalho seria mais parecido com "A mulher do fim do mundo" e "Deus é mulher". Ledo engano.

"Libertação" abre muito bem o álbum, e vai ser ótima ao vivo, mas não nos prepara para as porradas que vêm a seguir.

Faixa 2: "Menino"

Quase toda à capela, é uma música curta, de apenas 45 segundos. Mas são 45 segundos impactantes. Com tom emocionado, Elza fala diretamente às crianças mais pobres com a empatia e o amor que geralmente elas não encontram.

"Venha cá, menino. Não faça isso não. Sei que é muito triste não ter casa, não ter pão. Não te leva a nada destruir o seu irmão. Você representa o futuro dessa nação”

Não é uma bronca. É um lembrete. Com empatia, com emoção.

Faixa 3: "Brasis"

A desigualdade social brasileira, exposta de um jeito tão didaticamente óbvio que vira um tapa na cara. “Tem um Brasil que é próspero. Outro não muda. Um Brasil que investe. Outro que suga”. Assim, bem na nossa cara, pra nos lembrar dos Brasis onde vivemos.

Faixa 4: Blá blá blá

feat. BNegão e Pedro Loureiro

Rock + hip hop, e surpreende não só pela sonoridade. A música fala desses tempos de terra plana e patriotismo como forma de repressão, enq ela diz: "É muito blá blá blá blá blá blá!". Hipnótica, mas ferina.

Essa tem um trecho de “Me dê motivo” de Tim Maia, mas o trecho adquire um sentido totalmente diferente. Só ouvindo.

Faixa 5: Comportamento Geral

Essa vem logo após “Blá blá blá” e tem uma forte razão. É um cover de Gonzaguinha, que foi originalmente lançada em plena ditadura militar. Um duro recado pra quem não reage ao autoritarismo porque ainda não foi atingido.

Você merece, você merece / Tudo legal, tudo vai mal / Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé / Se acabarem com o teu Carnaval?

A rouquidão de Elza repetindo "você merece, você merece, você merece, você merece" é de arrrepiar. Importante notar que Elza mudou um pouquinho o refrão original, que era:

Você merece, você merece / Tudo vai bem, tudo legal

Sinal dos tempos.

Faixa 6: Tradição

Depois desse tiro no conformismo, Elza chama pra guerra. “Descontinue a tradição, desaproprie esse galpão. E por que não?” O choro de um violino torna tudo dramático, quase psicodélico. Os verbos imperativos em todos os versos da letra deixam evidente: é um chamado.

“Desorganize esse cordão

E desagrave a ilusão

(E por que não?)

No colorido da avenida

Se jogue nesse turbilhão”

É como se ela quisesse dizer: nossa guerra é a alegria, nossa carne é de carnaval.

Faixa 7: Lírio rosa

Quase romântica. Suave, leve. Violões, violinos. O que será que essa música está fazendo no meio de tanta porrada? No meu entendimento, Elza quer nos lembrar do amor nesses tempos de ódio.

“Deu pra mim um som

Fez o que eu sou

Sol de primavera

Nasceu”

Lindo.

Faixa 8: "Não tá mais de graça"

feat. Rafael Mike

Elza atualizou seu sucesso “A carne mais barata do mercado” com uma nova canção cheia de gingado. É daquelas pra gente se esgoelar de cantar indo até o chão, enq Elza diz “A carne mais barata do mercado não tá mais de graça”.

A letra nos lembra da violência sobre os corpos negros com impacto:

"A carne mais barata do mercado

Não tá mais de graça

O que não valia nada

Agora vale uma tonelada

A carne mais barata do mercado

Não tá mais de graça

Não tem bala perdida, tem seu nome

É bala autografada"

Vale ressaltar que Elza já havia modificado o refrão da música original em seus shows. Passou a cantar: “A carne mais barata do mercado ERA a carne negra.” E enfatizava: “Era! Era! Era!”

Impactante tb a participação do jovem rapper Rafael Mike.

"Essa aqui Neymar não dança

Na hora de meter gol

Mas os pretos avançam

Wakanda forever! Yo!"

Com direito a bem-vindas citações a pretas que realmente fizeram algo pela negritude, como Rosa Parks e Marielle Franco.

Faixa 9: "País do Sonho"

Elza nos lembra de todas as mazelas do Brasil em versos como “Eu preciso encontrar um país onde a saúde não esteja doente”. E vai falando de corrupção, dos que enriquecem com a exploração da fé, da justiça que só condena negros e pobres…

Mas o que poderia ser uma mensagem pessimista, se enche de esperança quando ela diz:

“Eu prometo que vou encontrar

E esse país vai chamar-se Brasil”

É um samba-eletrônico que joga o álbum lá pra cima. Uma mensagem de esperança após um árduo percurso emocional.

Faixa 10: "Pequena memória de um tempo sem memória"

Aqui Elza fala sobre essa sensação ruim que a gente tem de lembrar da Ditadura. Sabe essa coisa de “nossa, parece ditadura”? Louvando as vidas que se perderam pela luta da liberdade, Elza faz arrepiar. E ainda nos lembra dos danos que a falta de memória podem causar a um país:

“Memória de um tempo

Onde lutar por seu direito

É um defeito

Que mata”

É obviamente uma ode aos militantes. Os militantes de todos os tempos. Aqueles que deram suas vidas pela luta de uma solução para a sociedade. Belíssima, emocionante, de chorar. E o mais bonito: começa lúgubre, termina solar.

Detalhe: Elza termina a música perguntando: “Que país é esse?”

Faixa 11: "Virei o jogo"

A resposta a esse tempo de ódio. Ela nos diz:

“Não descarregue a sua arma em mim

A sua raiva não vai me abater

Você é não, sou um milhão de sins

Tem o meu povo pra me proteger”

É um jeito de dizer que ela não está sozinha. A luta dela é de muitos. E é verdade.

É muito bom nos lembrar, após tantos tiros, que não estamos sozinhos. A gente vira o jogo sim.

Faixa 12: "Não recomendado"

Depois de tudo, não consegui segurar as lágrimas com esse cover. Por razões óbvias. A música fala diretamente da homofobia, mas com um detalhe: colocando na letra todas as coisas que nós, gays, ouvimos a vida inteira.

“A placa de censura no meu rosto diz

Não recomendado à sociedade”

Terminar esse álbum assim e como uma dedicatória. A gente sabe pra quem Elza está cantando. Ela tb sabe. Assim como Elza, não vamos nos calar.

E aí, a música termina com Elza sussurrando: “Maldita Geni, maldita Geni, maldita Geni”.

O recado foi dado.

O Brasil tem que voltar a ser Brasil

O que você mais vai sentir ao ouvir "Planeta Fome" é a sensação de que um pouco da essência do Brasil se perdeu com o Golpe, mas há ainda um exército de pessoas dispostas a recuperar esse país que amamos. Mas recuperar no sentido de curar: com amor, com arte, com empatia.

Elza protesta, enfia o dedo na ferida, aponta os culpados, mas não perde a encantadora capacidade de avivar a esperança. É rainha sim. E cravou. com esse álbum, mais um clássico para esse país que tenta se reencontrar.

Conseguiremos. Tenho certeza que conseguiremos.

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Patrício
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Escritor, jornalista, publicitário, roteirista. Autor dos romances “Lítio” e “Absoluta Urgência do Agora” e da coletânea de contos “A Cega Natureza do Amor”.