Por que me assusto quando gays, lésbicas, negros ou mulheres apoiam a Direita

Patrício
Blog do Patrício
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8 min readJun 1, 2016

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Qualquer posicionamento político hoje deve, por obrigação, levar em consideração a realidade, o contexto, e não apenas os conceitos implícitos em cada corrente de pensamento. Vou ser ainda mais incisivo: se você opinar sobre política sem pensar nas consequências que sua opinião pode gerar, você está errado.

Entendo que alguns se identifiquem com as ideias da Direita para a economia, por exemplo. Parecem válidas numa época em que buscamos soluções mágicas para a crise global.

Livre mercado, estado mínimo, privatização de estatais deficitárias — estas são realmente expressões bonitas que mexem com nossas convicções diante de uma crise que se arrasta sem soluções à vista. Mas não podemos esquecer o contexto.

Antes de se posicionar pense na Esquerda e na Direita que temos no Brasil, a Esquerda e a Direita na prática, a Esquerda e a Direita que diuturnamente se digladiam na Câmara, no Senado e no Executivo.

Por mais que os conceitos estejam interligados em teoria, e que alguns estudiosos afirmem que não existe mais essa separação ideológica, no Brasil as coisas estão bem delimitadas.

Nossa Esquerda defende as minorias, a representatividade, a inclusão de gays, lésbicas, trans, negros, mulheres, enfim, de uma imensa parcela de brasileiros que por algum motivo, quer seja a cor, quer seja o gênero, quer seja a orientação sexual, seguem à margem de importantes decisões que podem mudar suas vidas para melhor ou para pior.

A nossa Direita defende a igualdade como um conceito macro, abstrato, bonito mas impraticável, uma vez que não leva em consideração as diferenças profundas que marcam a história de cada minoria social.

Para a Direita, “todos somos iguais” é uma afirmação que serve exclusivamente para chancelar a ideia de que “todos devem ser tratados como se tivessem as mesmas condições, as mesmas oportunidades e as mesmas liberdades desde que nasceram”, negando assim a necessidade de ações pontuais para minimizar os efeitos da desigualdade, como a criminalização da homofobia, a legalização do aborto e o sistema de cotas raciais (só pra ficar nos temas mais polêmicos).

(Aqui vale um breve parêntese para lembrar que o tão citado “todos são iguais perante a lei” do texto constitucional vem diretamente de Aristóteles e sua famosa frase:

“Devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade.”

Juristas e magistrados concordam, inclusive com doutrina e jurisprudência, que o Princípio da Igualdade deve ser aplicado no sentido de assegurar às pessoas circunstâncias iguais no acesso aos seus Direitos — ou seja, equilibrar o jogo, dando a todos as mesmas oportunidades mesmo quando o sistema vigente teima em não fazê-lo.)

Na nossa realidade, a Esquerda tem falhas terríveis, como grandes escândalos de corrupção e um indigesto alinhamento com partidos parasitários como o PMDB. Mensalão, Petrolão, Lava Jato. Não podemos fechar os olhos para tudo isso — não é isso que estou propondo.

O que proponho é que você aceite que o PT não é o único partido de Esquerda do país. E muito embora suas últimas ações no Governo tenham sido de fato desastrosas para a economia, foi o PT que encabeçou uma mudança brusca de perspectiva no Planalto, incluindo na agenda do Governo pautas realmente importantes para gays, lésbicas, negros e mulheres.

Foi o PT que criou o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, por exemplo, numa movimentação estritamente alinhada com o pensamento de Esquerda (dar representatividade oficial às minorias sociais). Não por acaso, um dos primeiros atos de Michel Temer ao assumir interinamente o Governo foi extinguir este ministério. Michel Temer é de Direita.

Aí você pensa: mas eu vou ter que ser conivente com todos aqueles casos de corrupção?

Veja bem, o mundo infelizmente não tem a superficialidade reconfortante de um Fla-Flu. O buraco é sempre mais embaixo. Vamos voltar nossos olhos para o outro lado da moeda e você vai entender.

O que temos à nossa Direita?

Bem, a nossa Direita também coleciona todos os deslizes da nossa Esquerda em sua vasta biografia. A Lista de Furnas, o Mensalão Mineiro e o Trensalão Tucano são só alguns escândalos encabeçados pela Direita brasileira (isto porque me detive nos mais recentes).

A nossa Direita também protagonizou grandes erros de gestão — ou você esqueceu dos Apagões da Era FHC, quando o racionamento de energia elétrica se tornou mandatório?; e a crise hídrica em São Paulo, negada até o limite da razoabilidade pelo governo do PSDB?).

Ah, sim, e tem a Lava Jato. É, a onipresente Lava Jato. Apesar do que alguns veículos fizeram boa parte da população acreditar, o que a Lava Jato investiga não é um escândalo do PT: trata-se de um esquema de corrupção multibilionário que envolve quase todos os partidos do país. De Esquerda e de Direita. Renan Calheiros e Eduardo Cunha, por exemplo, são figurinhas tarimbadas nas delações. Ambos de Direita.

Só pra mostrar pra você que a corrupção é um problema endêmico da classe política brasileira, e não uma consequência da ideologia de Esquerda.

Mas a nossa Direita tem um porém que a separa abissalmente da nossa Esquerda: suas ideias e ações sempre se alinham historicamente a camadas privilegiadas da sociedade.

Ou seja, eles não fazem absolutamente nada em favor das minorias sociais — o que abre margem, por exemplo, para que alguns extremistas de Direita se sintam à vontade para agir contra essas minorias.

Quando gays, lésbicas, negros e mulheres (e também outros atingidos pela falta de diversidade e representatividade na política) se posicionam publicamente a favor da Direita estão, na verdade, fortalecendo uma ideologia que no Brasil se ergue justamente para calá-los.

A representatividade de minorias na política brasileira segue sendo um grave problema com consequências devastadoras. Pra você entender melhor o que acontece quando você apoia alguém que não te defende, veja esses números:

  • Os negros somam 54% da população segundo o IBGE, mas só 17% estão entre os mais ricos do país (como você pode ver nesta matéria de 2015). Só pra você ter ideia do que essa desigualdade pode gerar na prática, estatísticas do Mapa da Violência revelam que no Brasil cerca de 70% dos jovens entre 15 e 29 anos que morrem vítimas de homicídio são negros. Mas no Congresso Nacional essa equação se inverte drasticamente: a composição atual do nosso Parlamento é de apenas 20,5% de negros e pardos contra 79,5% de brancos, segundo esta matéria de 2014.
  • As mulheres somam 51,4% dos brasileiros, mas basta uma olhadela rápida no nosso Parlamento pra ver quem realmente detém o poder de decisão sobre temas como aborto, licença maternidade e esterilização feminina: pouco mais de 60 mulheres ocupam vagas nas 594 cadeiras do Congresso Nacional, o que equivale a míseros 10,6% (segundo esta matéria de 2015).
  • Não há dados confiáveis sobre a quantidade de gays, lésbicas e transgêneros no país, mas a gente sabe que são muitos. E ainda que se trate de uma das minorias sociais mais politicamente articuladas, com associações e grupos militando fortemente, gays ainda amargam números tristes. Estima-se que a cada 28h, um homossexual é assassinado no Brasil, segundo esta matéria de 2014; já nesta matéria de 2015, os dados são ainda mais assustadores: o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Ainda assim, temos apenas 01 parlamentar abertamente gay militando pelos direitos dessa minoria. É, o Jean Wyllys, não por acaso do partido de esquerda PSOL.

Agora, pare e pense: sua posição política está ajudando a dar representatividade à sua minoria? Ou será que você está apenas repetindo o que pessoas que não têm as mesmas necessidades que você andam falando por aí?

Nossa voz, por mais bem intencionada que seja, pode chancelar vozes radicalmente contrárias a nós. E isso ajuda no retrocesso.

Quem nunca viu um homofóbico validar suas asneiras dizendo que tem amigos gays que concordam que homens não podem ser efeminados? Quem nunca viu um homem justificar seu machismo dizendo que sua esposa concorda que mulheres devem ganhar menos? Quem nunca viu um racista vociferar que não é racista porque tem amigos negros que riem de suas piadas de mau gosto?

Se você faz parte de uma minoria, pense bem antes de sair por aí gritando insultos à Esquerda, porque as consequências do seu apoio podem ser desastrosas para você mesmo.

Talvez você nem faça por mal. Talvez você esteja apenas mimetizando um comportamento que o ajuda a ser mais aceito. Talvez você ache que não faz parte de uma minoria oprimida, ignorando os efeitos que o racismo, a homofobia ou o machismo estão causando na sua vida. Talvez você seja apenas mais uma vítima das padronizações que a sociedade impõe — e arrumou essa solução pra fazer parte do clube, para estar entre os que você julga que são seus iguais.

Mas lembre-se: foram pessoas imbuídas do lado bom da ideologia de Esquerda que lutaram por avanços como a Lei Maria da Penha, a união homoafetiva, a criminalização do racismo, o sistema de cotas nas universidades, o nome social para trans, e outras tantas vitórias que ajudaram a diminuir esse abismo social que ainda é tão imenso no Brasil.

São as pautas da Esquerda que tratam seus direitos com respeito e determinação, lutando para garanti-los quando muitos da Direita dizem que você quer apenas ter privilégios.

É justamente nas brechas dessa divergência (que alguns gays, lésbicas, negros e mulheres geram) que excrementos da política constroem seus discursos de ódio. E esses discursos, por mais absurdos que pareçam, se tornam cada vez mais factíveis diante do apoio impensado que os próprios oprimidos dão aos seus opressores.

Partidos de Direita, por exemplo, protocolaram pedido para cancelar o direito ao nome social de trans que foi garantido por lei em 2015, como você pode ver nesta matéria.

Já se discute no Congresso Nacional a Lei das Terceirizações, com amplo apoio da Direita, que na prática extingue direitos trabalhistas conquistados com muita luta.

Quando se falou pela primeira vez em punir professores que se posicionam politicamente em sala de aula, a proposta pareceu absurda — mas hoje já se discute a Lei do Assédio Ideológico proposta pelo parlamentar Rogério Marinho (PSDB-RN), com grandes chances de aprovação.

São apenas alguns exemplos de como o pensamento retrógrado ganha força em nossa política com o avanço sistemático de lideranças de extrema Direita.

Não vou mentir, tá? Nem tudo são flores aqui na Esquerda.

A História nos conta de ditaduras sangrentas sob bandeiras vermelhas, desastres econômicos terríveis e quase irreversíveis, erros irreparáveis contra os Direitos Humanos. Mas tudo isso também já aconteceu sob o comando da Direita em diversas partes do mundo — e não é exatamente a história de cada movimento que vai determinar se eles são bons pra você agora.

Preste atenção no contexto. Na nossa realidade. No momento atual.

No contexto em que vivemos, a nossa Esquerda tem apoiado os direitos negados a gays, lésbicas, negros, mulheres e tantas outras minorias sociais; enquanto a nossa Direita se cala ante o avanço de extremistas homofóbicos, racistas e machistas como Bolsonaro, Malafaia e Feliciano.

Espero que você pare para refletir sobre sua indignação e perceba que está em jogo algo muito maior que o vencedor das próximas eleições. Seus direitos estão gravemente ameaçados e é a nossa Esquerda que está lutando para mantê-los. Pense nisso.

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Patrício
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Escritor, jornalista, publicitário, roteirista. Autor dos romances “Lítio” e “Absoluta Urgência do Agora” e da coletânea de contos “A Cega Natureza do Amor”.