Prospectiva 2019

O que será que nos aguarda?

Patrício
Blog do Patrício

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Em fevereiro de 2019, completo 40 anos.

Faço parte da última geração analógica do Brasil, aquela espremidinha entre a Geração X e os Millenials. Há quem chame minha turma de Xennials, porque tivemos uma infância analógica e uma juventude digital. O que significa que experimentei o melhor dos dois mundos. E o pior.

Minha turma cresceu assistindo às indizíveis peripécias da Xuxa em seu finado programa diário na Rede Globo, da inesquecível vergonha alheia de cantar "Vamos brincar de índio" para um constrangido grupo de indígenas ao momento realmente impactante em que Xuxa se negou a falar com seu pai que entrou no programa de surpresa pra uma espécie de "Arquivo Confidencial". Vai saber a treta que aconteceu entre aqueles dois. Não tinha internet pra pesquisar. Mas tá tudo no YouTube.

Na escola, mesmo a contragosto, a gente cantava o Hino Nacional todas as manhãs de agosto e setembro. E cantava alguma canção em homenagem à Virgem Maria todos os maios. Era chato pra cacete e eu sempre cantava a letra com alterações nada puritanas. Não tenho coragem de reproduzir aqui, mas garanto a vocês que eu já era bastante transgressor aos 8 anos.

A gente estudava "Educação Moral e Cívica" e "Organização Social e Política do Brasil". Mas mesmo com todas as informações preciosas acerca dos bons costumes que essas disciplinas obrigatórias me traziam, nada impediu que o colégio me mudasse de turma porque o pai de um coleguinha estava incomodado com nossa amizade. Ele tinha medo que o filho dele virasse gay. Na época, mesmo com trejeitos, eu não fazia ideia do que era ser gay. Mesmo assim, a diretora me disse com todas as palavras: "Ele não quer que o filho dele fique igual a você". Ao que parece, acolhimento não era um bom costume naquela época.

Meus professores chamavam o Golpe Militar de Revolução de 64, mesmo após alguns anos da redemocratização. Era de mau gosto falar sobre o Golpe de 64. Vocês precisavam ver as voltas que minha professora de História tinha que dar quando chegava nesse assunto. O medo dos agentes do DOPS ainda era bastante vivo na memória de todo mundo, mesmo para aqueles que não pegaram em armas no desespero de se livrar de um regime totalitarista que vitimava o povo diariamente. Todos tinham bastante cuidado com o que falavam. Era uma estranha lei silenciosa que todos seguiam.

Lembro vagamente das Diretas Já, da morte de Tancredo, da posse de José Sarney e da promulgação da Constituição de 1988. Eu era muito novinho. Mas as imagens desses fatos me assombraram por anos, como alfinetes me alertando que eram coisas importantes demais para eu não compreender. Anos depois, mais anos do que deveria, eu finalmente compreendi como essas coisas estavam tão intimamente ligadas.

Já nessa época, os mais astutos acusavam a Globo de ser golpista. E, convenhamos, a Globo dava motivos: não falou em nenhum momento sobre as Diretas Já em seus jornais, seguiu a linha de releases para tratar da misteriosa morte de Tancredo Neves, transmitiu a posse de Sarney como uma grande vitória do povo (tendo ele sido eleito como vice por voto indireto do Congresso) e ainda alardeou a Constituição de 1988 como um presente do PMDB (antigo MDB que se opunha à Ditadura Militar, atual MDB que apoia o governo bolsonarista). Esses astutos eram chamados de revoltados e tratados como malucos. Não era de bom tom dar ouvidos a eles.

A hiperinflação de Sarney renderia uma excelente sitcom. Ou um filme catástrofe. Não foram poucas as vezes em que fui à padaria para comprar dez pães e voltei com cinco. Os preços flutuavam de uma maneira absolutamente estapafúrdia. Era possível comprar uma penca de bananas de manhã e com o mesmo dinheiro conseguir apenas meia penca no fim da tarde. Havia até a profissão de remarcador de preço. Eram pessoinhas simpáticas de jaleco azul marinho que passeavam pelos supermercados com uma maquininha de etiquetas com o único intuito de atualizar os preços ao longo do dia. Quando um remarcador se aproximava de uma gôndola, os clientes se amontoavam na outra extremidade a fim de pegar os produtos antes que os preços fossem reajustados. Isso acontecia a todo momento, o dia todo, todos os dias. Ir ao supermercado com minha mãe era vivenciar uma espécie de decatlon da classe média.

Eu era classe média média, assim tão na média que meu pai nos classificava como pessoas que não eram nem ricas nem pobres. Ainda assim, eu só podia tomar Danoninho uma vez por semana, estudava em colégio público, só ganhava presente nas três datas clássicas (aniversário, Dia das Crianças, Natal) e pensava que viajar era coisa de gente rica. Veja bem, não falo de viajar de avião; falo de viajar. Não importava o meio de transporte, viajar era algo tão distante da minha realidade que até me provocava risos quando eu via acontecer nas novelas. Com um detalhe: eu era o riquinho do meu grupo de amigos.

Minha turma entrou nos anos 1990 sem acreditar no Brasil. Éramos um país enorme, riquíssimo, cheio de potencial (já se falava "Brasil é o país do futuro"), mas nenhuma das benesses de viver num dos maiores países do mundo chegava às pessoas comuns. Nós acreditávamos que só era possível ser feliz nos Estados Unidos, e acreditávamos que a prosperidade que existia nos Estados Unidos jamais seria uma realidade no Brasil. Era bem comum que a Globo, sempre a Globo, fizesse comparações entre a pátria tupi-niquim e a terra do Tio Sam a fim de ratificar seus pontos de vista conservadores. A gente assistia muita matéria sobre o sistema de saúde americano, por exemplo, até que passamos a detratar o SUS e acreditar apenas nos planos de saúde.

Quando o muro de Berlim caiu, a imprensa noticiou a vitória da liberdade sobre a opressão. A gente acreditou. Não houve discussões a respeito. Ao menos, não perto de mim.

Minha turma não votou em Collor. Mas só porque a gente não votava ainda. Mesmo que opinar sobre política fosse privilégio apenas dos adultos, a gente acompanhava as discussões na tevê. Lula era um monstro. Collor era o salvador da pátria. O episódio em que a Globo editou o debate presidencial para exibir os melhores momentos no sábado pré-eleição (os melhores momentos de Collor e os piores de Lula, vale salientar) foi apenas a cereja do bolo de uma campanha de manipulação da opinião pública sem precedentes. Collor ganhou. O resto você sabe.

Lá pra 1995, eu era um adolescente depressivo e niilista que não acreditava que um futuro bom pudesse acontecer a ninguém. Lembro de uma revolta tão contida e disfarçada com o mundo que sempre sentia uma ponta de prazer a cada desastre noticiado. Era como confirmar que o mundo era inviável. Era como constatar que eu estava certo.

Entrei na universidade já no Governo FHC. A melhor definição da universidade federal que encontrei nos meus primeiros dias de aula só pode ser "é o que tem pra hoje". A gente se virava como podia, comprando filme fotográfico com a mesada pra concluir a cadeira de fotografia; tirando cópia de livros dos professores porque a biblioteca não os tinha; aceitando trágica e passivamente as salas de aula sem computadores, sem ar-condicionado, sem iluminação adequada e não raro sem professor. Eles viviam em greve. Lembro de uma que bateu os três meses. E quase todo mundo acreditava que os professores eram os verdadeiros vilões.

A primeira vez que usei a internet foi no meu primeiro emprego. Estagiário de redação de uma pequena agência. Lembro que ganhava um salário-mínimo, mas estamos falando de míseros 130 reais. Com o meu primeiro salário, comprei um tênis da Redley. Custou 129 reais. Não faço ideia como atravessei aquele longo mês. Aliás, não faço ideia de onde tirava algum dinheiro para me divertir — a única hipótese minimamente plausível é que minha mãe me dava dinheiro mesmo que eu trabalhasse no mínimo 44 horas semanais. Sem carteira assinada. Sem décimo-terceiro. Sem férias. Sem ganhar pelas horas extras. Todas essas maravilhas da CLT eu só conheci quando deixei de ser estagiário e me tornei redator. Do dia pra noite, pulei de um salário-mínimo para o piso da categoria, que girava em torno de 700 reais. Eu achava que tinha ficado rico. A gente era educado a se contentar com pouco.

Quando Lula ressurgiu em 2002 com aquela história de "Sou brasileiro e não desisto nunca", minha turma quase não acreditou. Passamos a vida inteira acreditando que o Brasil era um país que não tinha dado certo, como mudaríamos essa convicção? A presença de Lula no poder questionava diversas coisas que tinham nos ensinado, desde o tato excessivo ao se falar sobre a Ditadura Militar até o valor que tem um trabalhador que ganha 130 reais por mês. A gente precisava se questionar essas coisas porque percebemos que o Brasil estava mudando. Pessoas que não existiam para a classe média de repente passaram a reivindicar suas existências; problemas que eram ignorados com chavões populares como "mulher gosta de apanhar" ou "não existe racismo no Brasil" ganharam voz para serem enfrentados; notícias que antes tinham apenas uma narrativa passaram a ser esmiuçadas em detalhes por milhares de perfis (confiáveis ou questionáveis) nas redes sociais. Minha turma achava que, apesar dos problemas, andaríamos pra frente.

E então, veio o baque.

O conservadorismo venceu as eleições. A igreja se aboletou no poder. O debate nacional é dominado por excrescências das mais diversas, desde a criminalização do pensamento de esquerda até a negação da Declaração dos Direitos Humanos. Homens tentam explicar o que é o feminismo e quais os limites aceitáveis para o movimento, heterossexuais classificam o que é ou não homofobia, ricos dizem como devem viver os pobres. Encerramos 2018 com um trago amargo, torcendo para que seja cíclica essa senhora impiedosa que chamamos de História.

Em fevereiro de 2019, completo 40 anos. Foram décadas conturbadas em que aprendi muitas lições, algumas realmente libertadoras, outras terrivelmente incômodas. Lá na década de 1980, quando imaginava meu futuro naqueles jogos de crianças que determinavam com quem casaríamos, eu pensava que estaria numa cadeira de balanço ninando meu neto aos 40 anos. Mas o mundo mudou. Ter 40 hoje em dia já não significa o início de um inevitável declínio. E ainda que eu o desejasse, que não o desejo, este inevitável declínio não poderia vir. Nasci em um país que saía de um período cheio de arbitrariedades e injustiças, e nunca realmente compreendi as hesitações da minha professora de História ao tratar da Ditadura Militar. Hoje, na borda dos 40, compreendo. Foram quatro décadas que me prepararam para a luta. E agora, entrando 2019 com os olhos ineditamente abertos às realidades mais diversas, eu só desejo que você lute ao meu lado. Vamos entregar aos que estão chegando um país melhor. Mesmo que a gente tenha que sofrer um bocadinho mais.

Feliz 2019.

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Patrício
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Escritor, jornalista, publicitário, roteirista. Autor dos romances “Lítio” e “Absoluta Urgência do Agora” e da coletânea de contos “A Cega Natureza do Amor”.