Um e sessenta por um e oitenta

Patrício
Blog do Patrício
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3 min readJun 3, 2011

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A primeira coisa que haviam comprado juntos tinha um metro e sessenta por um metro e oitenta. Não eram dados que ficassem martelando todos os dias em suas cabeças, mas estavam escritos muito legivelmente com caneta esferográfica azul na nota fiscal novinha em folha, fadada a amarelar-se com o acúmulo de dias na pasta colorida que usavam como arquivo. Uma cama de casal. Obrigava que seus corpos grandes ficassem colados nas noites longas e geladas do inverno, quando dormiam de meias, calças de moletom e camisetas de malha. Metiam-se sob as colchas grossas, grudavam-se no calor das peles congeladas e esquentavam-se naquele amor que era como uma lareira. Os pés às vezes sobravam para fora da cama, dançando no ar gelado do quarto hermeticamente lacrado pelo silêncio do prazer saciado. Sonhavam com camas maiores, aquecedores, geladeiras que vertessem água por um dispositivo acoplado à porta. Com TVs que tomassem toda a parede com suas mais de trinta mil cores. E dormiam felizes na cama de um e sessenta por um e oitenta.

O verão invadiu todos os cômodos do apartamento, obrigando a abrir janelas, esconder agasalhos, reaver o hábito de andar de bermudas. As colchas foram substituídas por lençóis diáfanos, que deixavam transparecer através dos seus fios leves as peles queimando muito mais de amor que de calor. O costume de estarem colados sobre aquele colchão permaneceu à guisa de qualquer temperatura alta. Deixavam que seus suores se misturassem em seus peitos, alternando simpatias que aplacassem o fervor da noite. Sopravam-se as nucas, ondulavam os lençóis para produzir brisa, se abanavam com os lábios colados como peças de plástico que derretidas acabassem por se mesclar em uma só. E dormiam felizes na cama de um e sessenta por um e oitenta.

Resistiram a mais um inverno no espaço diminuto daquele colchão, mas logo o décimo-terceiro, o aumento, o um terço de férias, a rescisão, a bonificação, a promoção. Passaram a cama para o quarto de hóspedes e em seu lugar veio aquele tatame gigantesco, em tecido ecológico e hipoalergênico, com espuma indeformável devido sua tecnologia espacial e lençóis com mais fios que seus cabelos. Tinha dois e dez por dois e quarenta.

Naquela primavera, quando foram obrigados a abrir o apartamento para que a luz se derramasse pelos cômodos retirando numa lenta evaporação toda a umidade herdada do inverno, nem perceberam que o pólen das lindas flores que se abriam por todos os jardins da cidade se espalhava pela casa. Nem perceberam que o novo colchão se enchia de ácaros porque mantinham o quarto fechado o dia inteiro tentando impedir a entrada das partículas primaveris. Nem perceberam que na noite do solstício de verão, displicentes e sem assunto, foram dormir sem se dar um beijo de boa-noite, cada um virando-se em silêncio para uma extremidade do imenso colchão tão logo o telão se apagou na parede. Dormiram na cama de dois e dez por dois e quarenta.

Mais uma vez o verão e seu calor sufocante, os dois ligando ventiladores por todo o apartamento e rezando por rajadas de vento e muito mais concentrados em ficar imóveis para baixar a temperatura do que em trocar quaisquer calores. Resolveram comprar um ar-condicionado. Não importava que lá fora da bolha de proteção a 18 graus as pessoas asfixiassem enquanto diziam que nunca tinham sentido tanto calor. Dentro do quarto, escuro como placenta, gelado como túmulo, os dois deitavam-se palidamente felizes, cada um do seu lado da cama; cobriam-se com lençóis, colchas, edredons; davam-se o mais simpático dos boas-noites; dormiam. Sempre naquele dois e dez por dois e quarenta.

Não estranharam quando veio o outono e as malas prontas na sala, as despedidas desajeitadas, as partilhas de bens amigáveis e a morte de todos os planos despencaram sobre suas cabeças como folhas secas que anunciassem não o início de uma nova estação, mas sim o fim da anterior. Agora um alugava apartamento pequeno perto do centro enquanto o outro se mudava para uma casinha longe confusão da metrópole. E dormiam felizes em suas camas de solteiro, muito embora persistisse a eterna pequena saudade daquele um e sessenta por um e oitenta.

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Patrício
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Escritor, jornalista, publicitário, roteirista. Autor dos romances “Lítio” e “Absoluta Urgência do Agora” e da coletânea de contos “A Cega Natureza do Amor”.