Vale qualquer coisa para ganhar um leão de Cannes?

A tal campanha sexista da AlmapBBDO efetivamente foi premiada em Cannes. E isso é assustador.

Patrício
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Se você é publicitário e não estava em coma, já deve saber da polêmica em torno de uma campanha da agência brasileira AlmapBBDO que ganhou Cannes este ano.

Se você não é publicitário, parabéns. Vou explicar rapidinho o que aconteceu.

A AlmapBBDO ganhou dois Leões de Bonze no maior festival de publicidade do mundo. Mas as peças premiadas foram acusadas de sexismo, o que obrigou o cliente da agência, a gigante farmacêutica Bayer, a vir a público esclarecer que a veiculação da campanha tinha sido paga pela própria agência com o único intuito de concorrer a Cannes.

Ou seja: treta.

Segundo nota do cliente, “a agência apresentou o conceito para a empresa no Brasil, assim como de outras campanhas que pretendia exibir no festival Cannes Lions deste ano. A veiculação foi de responsabilidade da agência a fim de atender os requisitos para submissão em Cannes”.

Ou seja: maracutaia.

O resultado desse imbróglio foi que a AlmapBBDO se viu obrigada a devolver os dois Leões de bronze que já tinha levado com a tal campanha, além de retirar toda e qualquer inscrição de peças da Bayer do festival.

Ou seja: vexame.

Essa foi a campanha da discórdia.

O que mais me assusta nessa história toda, porém, é algo que a maioria dos veículos de comunicação ignorou em suas análises: a campanha, claramente sexista, ganhou Cannes.

Antes de ser um mérito aos criativos envolvidos e à agência, esta informação é um demérito ao festival. Aos jurados. Aos participantes. Quiçá a todo o mercado publicitário.

A saber: Cannes é muito mais que um prêmio publicitário. É o maior de todos os prêmios publicitários. O mais almejado. O grande divisor de águas na carreira de um criativo.

Funciona também como uma chancela ao que é feito: se ganhou Cannes, ninguém tem coragem de colocar a qualidade em dúvida.

Por causa disso, as peças premiadas ditam tendência: criativos do mundo inteiro se agarram a elas nos meses subsequentes ao festival, estudando os conceitos, as sacadas criativas, as técnicas aplicadas — tudo para emular, de alguma maneira, o sucesso.

Em outras palavras, as peças que ganham Cannes têm o poder de influenciar toda a produção publicitária do ano seguinte, e algumas até extrapolam esses limites e servem de parâmetro de qualidade por décadas.

E a campanha sexista da AlmapBBDO ganhou Cannes.

É bom que fique bem claro: a devolução do prêmio só ocorreu depois que o cliente revelou que as peças eram fantasmas.

Como as regras do festival proíbem essa prática comum, corriqueira até, de inscrever peças-fantasma para abocanhar leões, a agência se viu obrigada a devolver os prêmios que levou.

Não foi a única: A Grey for Good de Cingapura também devolveu um Leão depois que seu app I Sea mostrou-se um grande engodo: ao invés de rastear refugiados perdidos no mar em busca de socorro, o app simplesmente mostrava uma imagem do mar. Só funcionava mesmo no videocase.

A atitude da AlmapBBDO, porém, foi muito mais uma medida preventiva (para não prejudicar as outras campanhas que inscreveu no festival) do que um mea-culpa pela falta de sensibilidade ao usar o controverso porn-revenge como ironia.

O que é mais assustador é que a campanha passou por todos os crivos possíveis e imagináveis — e só se tocaram do seu mau gosto quando foi publicada nas redes sociais.

Participar de Cannes é bem caro. Bem caro mesmo. Por causa disso, a peneira já começa nas próprias agências. Não é qualquer peça que é inscrita.

“No ano passado, o Brasil conquistou 108 Leões em Cannes, mas antes de chegar a esse resultado investiu € 1,7 milhão – o que, pelo câmbio da época, dava pouco mais de R$ 6 milhões.”

Dados do estudo Quanto vale 1 Leão realizado pela agência curitibana CCZ WOW

As multinacionais, por exemplo, recebem trabalhos de filiais do mundo inteiro — e esses trabalhos são analisados e filtrados por centenas de profissionais até que se chega numa lista de campanhas que terão a honra de serem inscritas. Passar por essa peneira já é, para muitos, uma grandessíssima vitória.

Depois que as campanhas chegam em Cannes, mais e mais pessoas analisam as peças concorrentes até que se chegue aos famosos shortlists — algo como a lista de indicados ao Oscar.

Na etapa final, um grupo mínimo de jurados que representam a nata mais nobre do mercado publicitário global julga os inscritos, reservando-se ao direito de não premiar ninguém caso os shortlists não apresentem peças dignas de um Leão de Cannes.

Cannes: o sonho de dez entre dez publicitátios

A tal campanha sexista da AlmapBBDO passou por todos esses filtros. E ninguém, em nenhuma das etapas, percebeu que a peça era agressiva às vítimas do porn-revenge. Ninguém.

A campanha da Bayer passou pelo crivo da filial brasileira, foi aprovada pela rede BBDO global, escapou do filtro dos jurados que produzem o shortlist, entrou em Cannes com boas chances e foi premiada.

Só depois que os Leões foram anunciados e a peça ganhou atenção do público em geral, o óbvio veio à tona: era imoral usar aquele assunto como piada.

Essa história ilustra muito bem como funciona o mercado publicitário.

Somos um grupinhos de compadres dando tapinhas nas costas uns dos outros, sem críticas ou ressalvas a oferecer. E imersos nesse mundo de faz-de-conta, a gente acaba ignorando que trabalha com o único intuito de convencer pessoas normais dos nossos argumentos.

Os troféus, as medalhas, as bonificações, os méritos, os elogios — tudo isso ocupa muito mais espaço na cabeça dos publicitários do que a simples missão da profissão, que é agradar ao público para vender produtos.

A esperança é que o vexame da AlmapBBDO sirva de lição para uma bem-vinda autocrítica. Já faz tempo que precisamos.

Luiz Sanches, sócio e chief creative officer da AlmapBBDO, até ensaiou alguns passos interessantes nesse sentido. Em entrevista ao portal Meio & Mensagem, afirmou que o erro da agência foi ter criado uma campanha que gerava interpretações que causam desconforto. “Essa discussão toda é interessante para nos fazer refletir a respeito de nosso próprio trabalho”, disse.

Cannes, entretanto, também enviou alguns recados positivos.

Madonna Badger: luta contra objetificação da mulher na publicidade

O primeiro foi o painel de Madonna Badger, fundadora da Badger & Winters, que falou sobre a ação Women Not Objetcs e foi aplaudida de pé. O projeto, encabeçado por sua agência, pretende acabar com a objetificação da mulher na publicidade. Está, inclusive, com uma petição on-line sugerindo que o Festival de Cannes recuse campanhas que trabalham as mulheres como objetos. Se quiser assinar a petição, clique aqui.

A segunda boa notícia foi a premiação com um Grand Prix da campanha 6 Pack Band, da Mindshare de Mumbai para a marca de chás Red Label Tea da Unilever. O grande diferencial da campanha foi ser estrelada por diversas mulheres trans — isso num dos países mais atrasados em relação à igualdade de gêneros do mundo. Apesar da alegria e das cores berrantes, os vídeos da campanha arrepiam. E fazem pensar.

Mas ainda é pouco.

Agências, multinacionais ou não, amargam a dura verdade de ver as verbas publicitárias diminuindo a passos largos ano após ano, e a chegada da internet só acelerou ainda mais esse processo de mumificação.

Investem em reengenharia, em integração, em tecnologia — mas poucas se prestam a tentar entender um público que agora tem voz.

A gente tenta se adaptar, a gente acumula alguns acertos, a gente até comemora, mas a verdade é que estamos ficando obsoletos: a internet transformou cada pessoa do mundo em um veículo de comunicação e nós, publicitários, ainda lutamos para permanecer protegidos dentro do mundinho em que a honra de participar de um festival na Riviera Francesa justifica qualquer coisa.

Como muito bem alertou Raphael Pavan no texto A incrível geração que percebeu que Cannes não vale nada:

“Se uma premiação tem tanta influência sobre uma indústria, não é hora de repensar só a premiação. É hora de repensar a indústria.”

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Patrício
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Escritor, jornalista, publicitário, roteirista. Autor dos romances “Lítio” e “Absoluta Urgência do Agora” e da coletânea de contos “A Cega Natureza do Amor”.