A História do vaqueiro que deu a luz, por Aderaldo Luciano

Trazemos aqui no site da Blooks uma colaboração de Aderaldo Luciano*, que é um dos grandes conhecedores do cordel e sua história. Mais que isso, conhecedor de sua atual dinâmica e de como o cordel vem, com força e criatividade, se desenvolvendo e conquistando novos espaços.

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4 min readJul 3, 2018

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O cordel talvez seja a única forma poética genuinamente brasileira. Apareceu em Pernambuco, trazido pelo gênio de um paraibano radicado na cidade do Recife. Não, não foi Ariano Suassuna. Foi Leandro Gomes de Barros, um sertanejo que veio ao mundo na pequena cidade de Pombal. O mesmo Suassuna baseou-se em obras de Leandro para escrever o seu Auto da Compadecida. O Brasil Oficial conhece Ariano e desconhece Leandro. O Brasil Real conhece os dois.

Os cursos de jornalismo no país têm apresentado o cordel para seus calouros. Chamaram-no até de “jornal do sertão”. E o foi certamente. Por suas rimas, pelos seus versos, no ritmo da respiração, falando à alma do povo, o cordel narrou os fatos circunstanciais, assumindo-se matéria jornalística. O próprio Leandro tem setenta por cento de sua obra cobertos pela notícia, pela matéria jornalística. Aliás, muitos autores de cordel foram denominados de poetas-repórteres. Não foi o caso de Manoel D’Almeida Filho. Foi ele quem nos trouxe a notícia do vaqueiro que deu a luz, como diremos a seguir.

O dia 21 de agosto de 1966 ficou marcado para sempre no povoado de Lajes, em Alagoas, perto de Palmeira dos Índios. Um fato inusitado foi o estopim da rumorosa reviravolta na vida dos viventes do lugar: José João, um vaqueiro de 19 anos, trabalhador na vida dura rural, farreador, dançador nos forrós, adepto de jogar o carteado, dera a luz sozinho, no meio do mato. Encontrado por parentes, quase desfalecido, foi levado para casa com o filho inesperado, pois nem ele sabia que estava grávido:

Tinha visto neste mundo
Muita coisa acontecer,
Aqui mesmo no Brasil
Já se fez até chover,
Mas um homem dar a luz
Jamais eu pensei de ver.

O episódio logo tomou as páginas dos jornais e em São Paulo o velho e bom Notícias Populares dedicou uma série de matérias sobre o assunto. Revelou-se que José João era na verdade Joana da Conceição, uma menina que, obrigada pela mãe, passou a vestir-se e a comportar-se como homem. Mesmo quando vieram os sinais da feminilidade, seios e menstruação, o vaqueiro não se revelou. Usava duas camisas apertadas para esconder os seios e não se resguardava dos trabalhos pesados.

Também nunca respeitava
Nenhum trabalho pesado,
Era homem na enxada,
Foice, extrovenga e machado,
E no lombo de um cavalo
No campo dava o recado.

E assim correu a vida até aparecer-lhe no coração a paixão pelo colega Neuto Jiló, de 17 anos. Nem assim, abriu a guarda. Confessou que havia conquistado autonomia de vida como homem e não queria perder a sua liberdade. O caso ficou conhecido nas páginas do Notícias Populares como a História do Homem-Mãe. Ao tomar conhecimento do ocorrido, o poeta Manoel D’Almeida Filho o passou para as sextilhas do cordel e ofereceu-lhe o título de O Vaqueiro Que Virou Mulher E Deu A Luz.

José João abriu os olhos,
Foi avistando um menino,
Compreendeu que mudava
Nessa hora o seu destino
De homem para mulher.
Teve o maior desatino…

Alguns pensaram que o poema fora inspirado na pena de João Guimarães Rosa, em Diadorim, ou mesmo que fora uma transcriação da lenda de Joana D’Arc ou da heroína brasileira Maria Quitéria. O poeta, porém, apenas narrava o fato verídico, cumprindo sua missão de arauto do povo na escrita de mais um cordel circunstancial. Manoel D’Almeida não temia a história real, aproveitava-a para, lançando-lhe alguma alegoria, transformá-la em sucesso cordelístico.

Estou muito satisfeita
Por descobrir a verdade
Do meu estado de vida
Na sexualidade,
Cumprindo o dever de mãe
Na lei da maternidade.

Lançado pela Prelúdio, no mesmo ano do fato acontecido, trazia capa em quatro cores, produzida por Sérgio Lima, o mesmo que quadrinizaria O Pavão Misterioso. Curiosamente o folheto trazia apenas 16 páginas, diferente das 32 usuais na produção da editora.O poema cobre apenas 10 página, com 39 estrofes, a última em acróstico ALMEIDA. Outra curiosidade é o editorial que aparece na última página, com o título Você Deve Ler?!, incentivado a leitura: “…Mas a pedra básica da educação ainda repousa sobre os livros.”

A vida tem muita coisa,
Lendo tudo é que se sabe,
Mentira nunca valeu,
Em canto nenhum não cabe,
Isso é uma realidade,
Deus mostra a luz da verdade,
Até que a mentira acabe.

*Aderaldo Luciano, nascido em Areia, na Paraíba, é poeta pautado pela estética da poesia do povo. Estudioso da poesia e da música do Brasil profundo, é mestre e doutor em Ciência da Literatura, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Vive o projeto Roda de Cordel — leituras e estudos, intervenções de leitura de cordéis em escolas e comunidades rurais brasileiras. Autor dos livros O auto de Zé Limeira (Confraria do Vento, 2008), Apontamentos para uma história crítica do Cordel Brasileiro (Luzeiro/Adaga, 2012), Romance do Touro Contracordel (Adaga, 2017). Até junho de 2017 manteve uma coluna semanal no programa Sabadabadoo — A Gente Gosta de Sábado na Rádio Globo (Rio e São Paulo): o Cordel de Notícias. Agraciado com o Falcão de Ouro por sua contribuição à cultura no estado de Sergipe.

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