A memória da memória

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4 min readSep 6, 2018

Texto de Toinho Castro

Museu Nacional em chamas — Foto: Felipe Milanez (Wikipédia)

Tristeza e impotência traduzem boa parte dos sentimentos em relação ao incêndio do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista. Descaso, falta de verba e abandono são algumas das muitas causas que findaram por consumir, por meio das chamas, o patrimônio valioso de uma nação. Na verdade, podemos falar, sem medo de errar, que tratava-se de um patrimônio da humanidade.

Muita gente tende a enxergar um museu como um depósito de coisas do passado, que não possuem mais função na sociedade atual. Algo como “Olha só como as pessoas se vestiam” ou “Nossa, incrível que esses aviões pudessem voar”. Como se fosse uma aposentadoria do mundo, um lar para idosos que você pode visitar de vez em quando.

Acontece que um museu é algo dinâmico, um ativo produtor de conhecimento. Museus desenvolvem pesquisas, fazem intercâmbio com outras instituições e promovem diálogos com a sociedade no âmbito da educação.

Pensemos num museu como a memória, algo a que recorremos para afirmar e fortalecer nossa identidade, para nos lembrar do que compartilhamos com o outro, com a história do outro. Os museus nos posicionam na linha do tempo e nos permitem uma visão crítica do passado e do futuro, e principalmente da nossa própria contemporaneidade.

Por isso e outros tantos inumeráveis motivos, a perda de um museu é um dano irreparável, uma quebra na cadeia cronológica que organiza nossa sociedade. Quando uma criança observa um documento num museu, sob a devida orientação, facilmente ela enxerga a cena daquele documento sendo assinado, os caminhos que levaram até ali e suas consequências. Um documento histórico perdido é uma vazio difícil de se preencher.

Estive visitando sábado desses a feira da Praça XV, aqui no Rio de Janeiro. A feira é um museu das memórias abandonadas. Enquanto caminhamos por entre as barracas vamos esbarrando com o legado miúdo de famílias, pessoas como eu e você, que foram parar ali por obra dos mecanismos da vida e do acaso. Ou da morte. Certa vez, lá mesmo na feira da Praça XV, vi numa banca que vendia selos postais uma senhora perguntando se os selos de uma outra senhora, amiga sua, já haviam ido a leilão. A história? Anos atrás elas haviam comprados juntas um par de selos e cada uma ficou com um deles. Agora, que a amiga havia morrido, ela queria arrematar o outro selo e ficar com o par completo e uma lembrança da amiga que partiu.

Você um dia morre e suas coisa vão à leilão, ou acabam nas Praças XV da vida. Ou então nas gavetas de filhos ou outros parentes, para emergir uma vez ou outra, em dias de limpeza para findar entre os itens dispensados porque, afinal, “estamos juntando coisa demais”.

Nessa ida à feira eu comprei um pacote de fotos antigas; fotos familiares, passeios, paisagens, sorrisos, abraços, grupos de amigos, festas. Isso me faz perguntar o que fazemos da nossa própria memória, esse volume enorme de dados, artefatos, narrativas que deixamos para trás, nas bancas da feira de antiguidades da praça. O quanto nos dedicamos a preservar e organizar nossa memória, o legado histórico da nossa vida e o quanto isso diz sobre como agimos em relação aos museus e seus acervos? Penso nas milhares (Milhões?) de fotos digitais que se perderam em HDs que foram para o ralo da obsolescência programada. E de tudo que podemos guardar, o que realmente cuidar? o que manter para o futuro e suas gerações? Como podemos ser curadores da nossa própria memória? Ou não podemos e e teremos que contar com os que vasculham as feira de antiguidades, os sebos, em busca do passado alheio para preservá-lo de alguma forma, ainda que deslocado de sua narrativa original?

Se quem vive de passado é museu somos, pois, museus ambulantes. E como disse antes, recorremos às memórias constantemente para formar aquilo que somos. Essas memórias estão numa gaveta, na nossa mente complexa ou no Museu Nacional que se foi, com suas coleções das línguas indígenas que desapareceram, com seus fósseis, com seu meteorito que atravessou o espaço e acabou caindo na Bahia, nas vestes dos diversos povos ali representados e muito mais.

Não precisamos viver do passado, mas devemos ocupar um delicado equilíbrio entre gerações, daquilo que nos é legado e que, moldado por nós, se tornará promessa do que virá. E virá.

Termino com uma frase que o músico Nick Cave fala em seu filme 20.000 dias sobre a terra:

— Memória é o que somos.

PS. Talvez não sejamos, afinal, impotentes.

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