Entrevista com a escritora Eliana Alves Cruz

Primeiro Ciclo Blooks Outras Histórias do Brasil: Resistências e Reparações

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5 min readSep 17, 2018

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Leia a entrevista que fizemos com Eliana Alvez Cruz, autora do livro O Crime do Cais do Valongo (Disponível na IndieBlooks), lançado pela Editora Malê. Eliane é convidada do Primeiro Ciclo Blooks Outras Histórias do Brasil: Resistências e Reparações, que acontece na Blooks de Botafogo, nesse mês de novembro. O ciclo inaugura uma homenagem ao mês da consciência negra e deseja ser espaço de diálogo e novos debates para uma reparação histórica com a população negra.

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De onde surgiu a ideia de escrever o romance O Crime do Cais do Valongo?

A ideia surgiu quando vi objetos encontrados nas escavações. Junto com os restos do que foi o cais por onde entraram de 1811 a 1831 entre 500 mil a um milhão de escravizados vindos das mais diferentes partes do continente africano, também surgiram brincos, contas, cachimbos, peças de jogos, enfim, objetos muito pessoais. Imediatamente minha imaginação voou para o passado tentando saber detalhes dos que aqui chegaram. Uma destas peças, um brinco em formato de meia lua, me levou direto à Moçambique. Neste momento começou a criação do livro.

Não é o seu primeiro romance, fale um pouco do seu primeiro romance, premiado inclusive.

Meu primeiro romance — Água de barrela — foi uma viagem para a minha ancestralidade. É um livro que foi construído a vida inteira. Na prática foram pouco mais de cinco anos escrevendo, mas me dou conta que passei a vida colecionando histórias contadas pelos meus mais velhos, imagens e documentos. Remontei sete gerações antes de mim. Uma trajetória que começa na África, no século 19, atravessa todo o século 20 e chega ao século 21. É muita história! Uma saga enorme e que muito me orgulha de pessoas nobres e vitoriosas sob muitos aspectos. Ele ganhou o primeiro lugar no Prêmio Oliveira Silveira, da Fundação Cultural Palmares/Ministério da Cultura em 2015. Em novembro deste ano a Malê vai relançá-lo.

Como analisa o atual momento da literatura negra no Brasil e no mundo? E a candidatura de Conceição Evaristo à ABL e o intercâmbio de escritores de países Afro-Atlânticos? Inclusive esses impactos em eventos literários com a FLIP, a FLUP, o LER-Salão Carioca do Livro?

Estamos vendo muitas pessoas aparecerem para o grande público agora, mas que estão na estrada há décadas com produções densas e belíssimas. Estamos num movimento de resgate de uma série de coisas. Não apenas de lugares na sociedade. Não é uma busca por protagonismo que é um fim em si mesmo, mas que busca reatar laços brutalmente rompidos pelo sequestro da nossa história. Dentro disto está o intercâmbio com escritores de países Afro-Atlânticos. Temos muito o que trocar e os eventos literários, no meu entendimento, iniciaram a captar toda esta movimentação e necessidade.

A candidatura da Conceição Evaristo teve uma campanha que foi, na minha opinião, um marco histórico, pois além de mobilizar uma multidão via redes sociais, aglutinou em torno de uma escritora negra brasileira uma atenção que foi benéfica para todos os que produzimos literatura afro-brasileira. A campanha também teve o mérito de deixar mais explícito para o grande público como se dá o processo de escolha para aquela casa.

Como jornalista pós-graduada em comunicação empresarial, poderia dar um panorama de quanto a sociedade brasileira avança, resiste e restitui depois de 130 anos da abolição da escravatura?

Na linha do tempo histórica 130 anos são cinco minutos. Talvez menos! A escravidão foi há muito pouco tempo e somos ainda profundamente marcados por ela. Principalmente nós, que nascemos e vivemos no país que mais se utilizou da mão escravizada no ocidente e o último a acabar com o sistema de escravização. Você cita a minha pós graduação em comunicação empresarial, pois bem, vejo que por nossas relações de trabalho serem como disse acima, ainda marcadas pela escravidão, temos muita dificuldade em construir ambientes saudáveis, baseados na troca de experiências e cooperação. Não respeitamos os diversos saberes. Não conseguimos conferir valor aos conhecimentos não referendados pela academia ou por círculos elitizados. A comunicação, na maioria da vezes, é autoritária, bastante arrogante e com o DNA da relaçao casa grande x senzala. Na minha visão, a exploração da força de trabalho é algo forte em nossa sociedade. Sim, aconteceram avanços, mas não na celeridade necessária.

A força jovem negra está provocando mudanças, haja visto a realização do Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul — Brasil, África e Caribe. Há um futuro lindo pela frente, de luta e de resistência, concorda?

Concordo. O exemplo que você citou, o Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul — Brasil, África e Caribe completou 11 anos este ano. Ele tem a idade da minha filha e é fruto do sonho do Zózimo, de sua companheira de vida, Biza Viana, e de tantos profissionais negros e negras que lutam por ter a narrativa valorizada. Tive o privilégio de estar na equipe que o produziu este ano e vi uma juventude absolutamente fantástica. Será muito poderoso se conseguirmos unir toda a sabedoria de quem veio antes com a força de realização da turma mais nova.

Você participará da programação do Primeiro Ciclo Outras Histórias do Brasil: Resistências e Reparações na Blooks Rio. Qual a importância dessas iniciativas dentro de um projeto de educação antirracista num país como o Brasil?

A menos que eu tenha realmente algum empecilho grande, aceito todos os convites para participar de eventos como este e o motivo é bem simples. Vejo que é preciso conversar com um número cada vez maior de pessoas. O racismo não é “um problema da população negra”. Ele é uma chaga nacional e problema gravíssimo, que está na raiz da esmagadora maioria dos nossos problemas sociais. Todos — negros, brancos, indígenas, filhos de imigrantes, enfim… — todos precisamos conversar mais, saber da nossa verdadeira história, entender em que lugar estamos nisto tudo e que contribuição podemos dar para um dia não mais precisarmos desta luta.

Qual mensagem daria para o Brasil, um país negro mas racista?

Eu diria: Brasil, se olhe no espelho, enxergue quem você realmente é se ame. A história e o conhecimento do povo negro são tesouros riquíssimos que precisam ser descobertos e aproveitados por toda a nação.

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