Entrevista com Maria Amália Cursino

Primeiro Ciclo Blooks Outras Histórias do Brasil: Resistências e Reparações

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7 min readNov 5, 2018

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Leia a entrevista que fizemos com Maria Amália Cursinho, cofundadora e membro da Comissão Executiva do Coletivo Pretaria, que se propõe a mover estruturas pensando e articulando novas epistemologias para a construção de novos paradigmas interseccionais na Comunicação brasileira. Maria Amália é convidada do Primeiro Ciclo Blooks Outras Histórias do Brasil: Resistências e Reparações, que acontece na Blooks de Botafogo, nesse mês de novembro. O ciclo inaugura uma homenagem ao mês da consciência negra e deseja ser espaço de diálogo e novos debates para uma reparação histórica com a população negra.

Clique aqui para detalhes sobre o evento e programação completa.

Poderia falar da sua formação e atuação dentro do movimento feminista negro?

Minha primeira formação foi — incrivelmente! — em Biomedicina, na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro — UNIRIO. Ingressei em uma faculdade pública federal pré sistema de cotas, em 1996/1997, então dá para imaginar qual era o cenário no que se refere à diversidade, de uma forma geral, na época. Se hoje ainda temos muito a avançar nos espaços acadêmicos, um ambiente ainda estruturalmente opressor, tanto na forma quanto no conteúdo eurocêntricos e violentamente racista — interface do racismo estrutural que o Brasil ostenta –, imagine na década de 90…

Foi um período incrível, de amigos de uma vida inteira e de muitos aprendizados, inclusive no que diz respeito ao que eu mesma queria da vida, uma vez que dentro da faculdade eu percebi que a área biomédica, muito embora eu gostasse bastante, não era a minha. Pensava mais nos próximos evento que faríamos na universidade do que nas aulas de Bioquímica ou Genética. Ansiava por uma experiência de criação que interferisse na cultura, nas pessoas, esperando contribuir de forma ativa nas subjetividades e nas mentalidades.

Hoje consigo elaborar dessa forma, mas na época era uma inquietude que eu ainda não nomeava. Foi quando decidi virar a chave para a Comunicação, mais especificamente para a Publicidade, na expectativa de que, aí sim, conseguiria alcançar aquele bem-estar existencial que eu buscava aliado a um interesse por tudo e por todos, por cultura, música, cinema e demais artes e a essa verve criativa, que me conduziu a trabalhar em criação dentro das agências de propaganda e escritórios de design, seara até hoje capitaneada por homens brancos. Imagina o tamanho e a frequência de todos os enfrentamentos que precisei travar… Muitos e cotidianos!

Quanto ao feminismo negro, digo, repito, afirmo com convicção: mulher preta já nasce feminista. É quase que atávico, é exemplo vivenciado dentro de casa e recebido ancestralmente. Não só nasce como é precursora do movimento, muito antes de receber o nome “feminismo” e do primeiro sutiã queimado…

Como surgiu o Coletivo Pretaria e quais as missões de um trabalho coletivo?

O Coletivo Pretaria foi concebido a partir do Curso de Extensão “Me Representa! — Marcas e Representatividade” oferecido pela ESPM-Rio, uma iniciativa inédita da instituição, antes tarde que nunca. A coordenadora de ensino Luciana Cruz, mulher, preta e sabedora dos desafios enfrentados por profissionais pretes nesse mercado elitista, classista e racista que é o publicitário, reuniu incríveis facilitadores para ministrar o curso, todas e todos negras e negros. Fui convidada a participar dessa primeira turma, composta por 90% de negres (pretes e pardes), profissionais da Comunicação, militantes e ativistas, profundamente apropriados dos nossos discursos e narrativas raciais. Essa multiplicidade de olhares nos deu motivos suficientes para pensarmos em instituir o Coletivo e estender nossa abordagem para todas as vertentes da Comunicação: Publicidade, Relações Públicas, Jornalismo, Rádio, TV e Internet e Cinema.

Enquanto área multi e transdisciplinar, a Comunicação é pessimamente produzida, conduzida e representada no Brasil. Fiscalizar e denunciar más práticas não são suficientes. Não somos tão somente “patrulha dos comerciais que não têm pretos”, por exemplo. Ao contrário: queremos ampliar e enriquecer o debate, as ações e burilar as mentalidades corporativas e sociais para uma Comunicação diversa não só nas representações imagéticas, mas nos conteúdos, narrativas, discursos, conceitos, execuções e aprovações, com as pretas e os pretos inseridos nas cadeias de valor, produção e realização.

Então, nossa obsessão é contribuir, através de metodologias próprias, para que a população negra esteja inserida e implicada na Comunicação brasileira, constituindo massa crítica para compor equipes e figurar nos altos cargos nas agências de propaganda, nas redações de revistas e jornais, nas equipes de produção de conteúdos institucionais, relações com o mercado, edição e direção das rádios e emissoras de TV, fomentando e divulgando oportunidades no mercado e nas instituições de formação acadêmica destinadas à formação de profissionais de Comunicação.

Ou seja, queremos ser a interface de representatividade preta e da interseccionalidade na Comunicação brasileira, pensando na presença, nas inovações discursivas, narrativas e conceituais na Comunicação a partir do recorte racial. Acreditamos que o racismo estrutural, institucional e cotidiano, marcadamente estruturantes no nosso país, deve ser combatido ampliando o diálogo e os debates em todas as frentes e áreas do conhecimento. E quem informa, propaga, promove a interlocução e burila as subjetividades é a Comunicação, partindo de referenciais culturais.

Como lidar com as diferenças dentro de um movimento?

Acredito que como deve ser na vida: um exercício democrático. Ouvir, construir pontes e identificar interseções, que potencializem o(s) movimento(s). Elevar a importância do ENCONTRO de ideias, não o que afasta e, portanto, enfraquece a todes.

Acadêmia e Militância, como vê isso nos dias de hoje?

Acredito que a academia deve estar inserida e implicada no contexto da militância, mas não necessariamente a militância está ou TEM QUE estar inserida no contexto da academia.

Muito embora estejamos cada vez mais instrumentalizados academicamente, questionando todas as epistemologias que não dão conta da experiência afrodiaspórica e de Áfricas, existem militâncias de extrema potência que resistem a despeito de qualquer academicismo.

O que precisamos é dar a devida importância e lugar de fala aos guardiões da memória: os saberes griôs dos quilombolas, por exemplo. Preservar essa oralidade é o grande desafio da academia e das militâncias. É o que nos restitui do semiocídio ontológico perpetrado pela branquidade, a que Muniz Sodré se refere em sua obra “Pensar Nagô”.

É esse retorno que nos recobrará o sentido de sermos.

Poderia dar um panorama de quanto a sociedade brasileira avança, resiste e restitui depois de 130 anos da abolição da escravatura?

Muito embora as políticas afirmativas tenham permitido o nosso acesso em alguns espaços, nós, população negra, na minha visão e análise, somos quem a duras penas avançamos e trouxemos alguns não-negros conosco.

O contato com os saberes acadêmicos nos permitiu questionar tudo e todos, embasados nas epistemologias que aí estão, que simplesmente não dão conta da experiência negra.

E quem nos acompanha são os que se permitem reconhecer como parte integrante de todo esse processo. Resistir sempre resistimos, faz parte de nossa constituição.

Somos, população negra, restituintes sem restituidores de fato. Nós precisamos nos autorrestituirmos, ampliando e reconhecendo nosso campo de existência, ou continuaremos perdidos.

O poder de regeneração das marcas indeléveis das violências seculares a que fomos e somos submetidos é diretamente proporcional ao oferecimento de um ambiente social no qual estejamos inscritos e no qual sejamos considerados como sujeitos, não como objetos.

A força jovem negra está provocando mudanças fortes. Há um futuro lindo pela frente, de luta e de resistência, concorda? Fale um pouco do seu trabalho com os jovens que fazem cinema e comunicação.

Concordo muito. Muito embora eu não seja propriamente jovem no sentido lato e cronológico (Rs!), eu me sinto inserida nesse contexto de surgimento do NOVO, de dar maior resolutividade e potencializar o poder de organização e ação a partir das fontes inesgotáveis dos nossos mais velhos, desembocando nos coletivos, nas formações, nas interferências políticas, nas novas epistemologias.

Estamos vivenciando um paradoxo ético no tempo-espaço diante de todos os retrocessos que apontam no horizonte político, consequência do avanço neoconservador na sociedade brasileira. Contudo, vejo o quanto as oportunidades de demonstrar nossas potências e protagonismo, ainda assim, se apresentam. Existem os que já perceberam o que falta ao Brasil. E o quanto nossas narrativas, discursos e subjetividades podem estar a serviço da mudança nas mentalidades des brasileires. Esse poder de emissão simbólica e referencial que a Comunicação e campo audiovisual, no qual o Cinema está inserido, nos oferece, e a abrangência decorrente disso, são caminhos para uma cultura antirracista que eu acredito muito.

Você participará da programação do Primeiro Ciclo Outras Histórias do Brasil: Resistências e Reparações, na Blooks Rio. Qual a importância dessas iniciativas dentro de um projeto de educação antirracista num país como o Brasil? Qual a sua missão na luta?

Essas iniciativas são essenciais, diria até mandatórias em um país com a demografia que o Brasil apresenta. Sobretudo em um espaço que abriga saberes, literatura, arte, como uma livraria com o perfil da Blooks. Somos 54% de pretes declarades. Isso deveria se estender às bibliotecas públicas e às escolas de forma permanente, enquanto política pública. Quem sabe daqui 4 anos… Ou quem sabe consigamos furar essa bolha?! Rs!

Vejo com muita humildade a minha luta, que considero bastante incipiente perto das pessoas incríveis que a Nélida (Capela, Gerente Geral Blooks Rio) conseguiu reunir em um mesmo evento. Uma curadoria primorosa, um feito histórico e estou radiante de estar fazendo parte disso!

Minha missão é, através do Coletivo Pretaria, é mover estruturas e construir novos paradigmas interseccionais na Comunicação brasileira, tendo como centralidade e eixo estruturante em raça.

Qual mensagem daria para o Brasil, um país negro, porém racista.

Meu muito querido Prof. Roberto Borges enviou por WhatsApp essa “nada fake” proposição de Fanon. Eu gostaria de fazer das palavras deles as minhas para as pretas e os pretos do Brasil, irmãs e irmãos de luta e resistência: “Um pouco de Fanon, para, a despeito da dor, reconstruirmos nossas forças e nossas negritudes e continuarmos vivendo: “Mas esqueceram a constância do meu amor. Eu me defino como tensão absoluta de abertura. Tomo esta negritude e, com lágrimas nos olhos, reconstituo seu mecanismo. Aquilo que foi despedaçado é, pelas minhas mãos, lianas intuitivas, reconstruído, edificado.” (FANON, Pele Negra, Máscaras Brancas, 2008, p.124)” Forte abraço em todos!

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Contemporânea e inovadora, a Blooks é uma livraria que aposta na diversidade e que encara o livro não como produto comercial mas como fonte de cultura.