Quando Ana C.

Toinho Castro
Blooks
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4 min readJun 7, 2018

Domingo nublado. Ontem foi um sábado de sol no Rio de Janeiro, mas li que o tempo ia virar. Ondas fortes, queda de temperaturas. E virou mesmo. Os gatos na janela observam a vizinhança e a agenda do Google me avisa: Aniversário de Ana Cristina Cesar. Tendo nascido em 52, Ana C. teria hoje 66 anos. Nada vi nas notícias online. Acho que 66 anos não rende notícia; talvez uma nota pequena, uma lembrança. Um ou outro amigo fez a ela referêncianas redes sociais. Isso, no entanto, não é esquecimento. É o mundo sendo o mundo, o tempo de cada coisa, das tantas coisas que se acumulam sobre nós. Lembrar é cada vez mais um ato fragmentado, incompleto.

Tenho na minha agenda várias efemérides de poesia, e literatura em geral, marcadas. Não fosse isso também teria passado batido do nascimento de Ana Cristina Cesar.

Ana não anda esquecida. Há dois anos foi homenageada da FLIP — Festa Literária de Paraty. Sua obra poética ganhou as livrarias numa bela edição da Companhia das Letras. Livros desaparecidos voltaram à tona. Recordo que dei com Ana ainda nos tempos de colégio, com uma edição de A teus pés, da coleção Cantadas Literárias (uma verdadeira escola para mim), da Brasiliense. Era a poesia marginal, como a chamavam. Nós éramos, ou nos sentíamos, marginais; jovens tão distantes do Rio de Janeiro onde tudo parecia acontecer. Aquela poesia, naquele livro pequeno, era um alento.

E ela havia escrito poesia antes de nós, jovem como nós. Estávamos atrasados. Quando começamos a ler seus poemas ela já estava aqui, mas deixou essa rua de fim de tarde em que podíamos nos reunir. Ela havia escrito, sem o saber, por nós. Não é assim, tudo encadeado? Os poetas, vivos e mortos, não formam uma família?

Lemos e relemos aquele livrinho, A teus pés, porque era o que nos chegava. Do Rio de Janeiro tínhamos notícias mitológicas. Ana Cristina Cesar, a Nuvem Cigana, Chacal, os 26 poetas de ontem, hoje e sempre de Heloísa Buarque de Hollanda. Tudo havia acontecido. Às vezes ouso querer voltar no tempo, aquele tempo em que não havíamos lido tanta teoria sobre as coisas, tantos artigos, comentários, teses e livros inteiros sobre como se faz poesia, sobre quem faz e toda a maquinaria engenhosa por trás dos versos, na cabeça dos poetas.

Voltar ao tempo em que só líamos poesia e era tudo meio vago e éramos meio ignorantes. Na época do lançamento vi uma vitrine cheia dos livros de Ana Cristina Cesar e uma garota dentro da livraria folheando um exemplar. Senti inveja, orgulho e um tanto de ciúmes. Ter lido aqueles poemas era como saber um código secreto; alguém falava a palavra-chave e você sabia. Agora revelaram a palavra-chave. Deixaram aberta a cristaleira e há seminários, clubes de leitura sobre Luvas de pelica e debates acadêmicos.

Que coisa boa, na verdade, essa abundância de uma poesia que há não muito tempo era restrita, esgotada. Ainda assim leio em suas obras completas:

onde está a raridade, o precioso dos raros, a aura dos que vêem pouco, o halo dos desaparecidos?

Sigo e deixo a livraria, todos aqueles livros, a garota com o livro nas mãos e fico com Ana Cristina Cesar. Pound, olha a teoria, dizia que os artistas são as antenas da raça. Ela parou de emitir seus sinais em 1983. Mas como ondas de rádio eles me alcançaram em 1984 ou 85; alcançaram a garota da livraria em 2016. Essas ondas continuarão a se propagar, ganhando energia a cada nova leitura, a cada livro aberto, a cada um que para para pensar que no século passado em garota carioca falou de si em certos versos que ninguém esperava.

A nostalgia da juventude e da raridade dos escritos de Ana C. passam, tenho eu mesmo o meu exemplar de Poética, suas obras completas. Que seja o cânone, seja lá o que isso possa significar. Meu diálogo com esses versos é íntimo, próprio da minha idade, do meu tempo do que vivi. Minha inveja da garota da livraria é não poder ler pela primeira vez outra vez.

Poética, volume com a obra poética de Ana Cristina Cesar, foi lançado pela Companhia das Letras em 2013.

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