Quem conhece Auta de Souza?

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4 min readJul 23, 2018

Hoje estou gozando a vida na Redinha… Chega um choro, clarineta, violões, ganzá, numa série deliciosa de sambas, maxixes, valsas de origem pura, eu na rede, tempo passando sem dizer nada. Modinhas de Ferreira Itajubá e Auta de Sousa… A boca da noite se abriu sem a gente sentir.

Nesse trecho de O turista aprendiz, livro em que Mário de Andrade registra suas viagens pelo Brasil, o poeta evoca um fim de tarde na praia da Redinha, em Natal e cita o nome de Auta de Souza, cujos poemas haviam sido musicados e compunham o cancioneiro Norte Rio Grandense. É bem fácil você não conhecer Auta de Souza. Eis aí um nome que se perdeu no tempo, que hoje pouca gente fora de sua terra, o Rio Grande do Norte, conhece. Auta de Souza foi poeta, negra e mulher. Nasceu em 1876, na cidade de Macaíba, e morreu de tuberculose no alvorecer do século XX, em 1901. Sua vida curta foi marcada por perdas e pelo sofrimento da doença, mas também pela escrita, pela veia poética.

Auta ficou orfã muito cedo. Aos 3 anos de idade perdeu a mãe e em seguida o pai. Perdeu também, aos 12 anos de idade, um irmão e aos 14 foi diagnosticada com tuberculose. Se afastou dos estudos regulares para se tratar e tornou-se autodidata, para então mergulhar na poesia. Começou a publicar aos 18 anos e, mesmo sendo mulher numa época patriarcal e mesmo machista, ela abriu espaço e viu seus poemas estampando periódicos de Natal, Recife e Rio de Janeiro. Desafiou, ao seu modo, os preconceitos do seu tempo (que ainda hoje nos assombram) para ocupar uma posição exclusivamente masculina, tendo sua obra reconhecida nos meios literários pelo Brasil afora.

Seu único livro, intitulado Horto, foi publicado em 1900. Olavo Bilac escreveu o prefácio e em dois meses a tiragem de dois mil exemplares esgotou. Seus poesia versa sobre religiosidade, o amor romântico, a morte, a contemplação da natureza, a família, as amizades. Tendo tido uma excelente recepção crítica na sua época, Horto foi aos poucos evanescendo. Talvez por conta do estilo poético, demasiado romântico, que encontrou eco entre leitores com o avanço do Modernismo (O mesmo Modernismo de Mário de Andrade que reconheceu sua voz peculiar nas cantigas potiguares que registrou); talvez pela crescente centralização cultural no Sudeste do país. A quinta e última edição de Horto é de 2000, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Creio que o livro, hoje, siga esgotado.

Mas é preciso dizer que Auta de Souza viveu o suficiente para escrever e publicar esse livro. Para traduzir suas dores e amores, o avanço da doença e a presença da morte sempre no horizonte próximo. De Macaíba, do Nordeste, emanou sua poesia e encantou os de sua época.

Este texto é para levantar a curiosidade e apontar o olhar para o trabalho de Auta de Souza, mais uma incrível mulher, dentre as tantas que escreveram a história cultural do Brasil. Leia mulheres. Leia Auta de Souza.

Capa da 2ª edição de Horto, publicada em Paris, em 1910, pela Tipografia Aillaud, Alves e Cia. Continha ilustrações de D. O. Widhopff.

MINH’ALMA E O VERSO

Não me olhes mais assim… Eu fico triste
Quando a fitar-me o teu olhar persiste
Choroso e suplicante…
Já não possuo a crença que conforta.
Vai bater, meu amigo, a uma outra porta.
Em terra mais distante.

Cuidavas que era amor o que eu sentia
Quando meus olhos, loucos de alegria,
Sem nuvem de desgosto,
Cheios de luz e cheios de esperança,
N’uma carícia ingenuamente mansa,
Pousavam no teu rosto?

Cuidavas que era amor? Ah! se assim fosse!
Se eu conhecesse esta palavra doce,
Este queixume amado!
Talvez minh’alma mesmo a ti voasse
E n’um berço de flor ela embalasse
Um riso abençoado.

Mas, não, escuta bem: eu não te amava.
Minha alma era, como agora, escrava…
Meu sonho é tão diverso!
Tenho alguém a quem amo mais que a vida,
Deus abençoa esta paixão querida:
Eu sou noiva do Verso.

E foi assim. Num dia muito frio.
Achei meu seio de ilusões vazio
E o coração chorando…
Era o meu ideal que se ia embora,
E eu soluçava, enquanto alguém lá fora
Baixinho ia cantando:

Eu sou o orvalho sagrado
Que dá vida e alento às flores;
Eu sou o bálsamo amado
Que sara todas as dores.

Eu sou o pequeno cofre
Que guarda os risos da Aurora;
Perto de mim ninguém sofre,
Perto de mim ninguém chora.

Todos os dias bem cedo
Eu saio a procurar lírios,
Para enfeitar em segredo
A negra cruz dos martírios.

Vem para mim, alma triste
Que soluças de agonia;
No meu seio o Amor existe,
Eu sou filho da Poesia.”

Meu coração despiu toda a amargura,
Embalado na mística doçura
Da voz que ressoava…
Presa do Amor na delirante calma,
Eu fui abrir as portas de minh’alma
Ao verso que passava…

Desde esse dia, nunca mais deixei-o;
Ele vive cantando no meu seio,
N’uma algazarra louca!
Que seria de mim se ele fugisse,
Que seria de mim se não ouvisse
A voz de sua boca!

Não posso dar-te amor, bem vês. Meus sonhos
São da Poesia os ideais risonhos,
Em lago de ouro imersos…
Não sabias dourar os meus abrolhos,
E eu procurava apenas nos teus olhos
Assunto para versos.

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