O longo ano de 2016

Laura Waisbich
Bode na Sala
Published in
3 min readAug 21, 2017

São Paulo, agosto de 2017

Entre outras amarguras, o ano de 2016 brindou o planeta com o chancela popular à saída do Reino Unido da União Europeia (o chamado Brexit), a eleição de Donald Trump ao cargo de presidente dos Estados Unidos e o impeachment de Dilma Rousseff no Brasil. Ainda que sejam eventos desconexos, os três eventos combinam elementos simultaneamente locais e internacionais, conjunturais e estruturais que os aproximam. Fazendo uso poético de um artifício bastante usado por historiadores, de alargar ou encurtar o tempo histórico para que o arbitrário passar dos anos e séculos não obscureça dinâmicas sociais mais duradouras, arrisco dizer que o “longo ano de 2016” ainda não acabou.

Pela ótica das causas, há paralelos entre as graves crises de representação política (entre cidadãos e representantes eleitos) e no esgotamento dos paradigmas de conciliação (entre atores políticos estabelecidos) nos três países. Rompem-se as comportas. Na política formal, cai por terra o modelo do condomínio peemedebista no Brasil (para usar o conceito do filósofo Marcos Nobre), se esgarça as frágeis pontes criadas pelo “Yes we Can” de Obama, se desfaz o tênue equilíbrio “equal but different” entre Londres e a Europa continental. No quesito representação, cada vez mais o eleitorado brada já não mais se sentir representado pelos líderes eleitos. #Quese vayamtodos.

Pela ótica dos meios, os três processos politizadores e politizantes foram permeados por intensas correntes de (des) informação. Em um mundo híper-conectado, não é preciso muito para que narrativas se tornem verdades (ou mentiras) absolutas. Líderes políticos lançam mão de estratégias nada republicanas de manipulação de legítimos sentimentos de exclusão e frustração. A concentração dos meios de comunicação em poucas mãos gera distorções nas disputas de narrativas. Distorções e manipulações estas que as bolhas dos algoritmos nas mídias sociais apenas ampliam. Em 2016, não foi fácil manter-se informado.

Pela ótica dos resultados, fica a polarização e o trauma que acompanham os desfechos dos três eventos. A polarização é ao mesmo tempo causa e consequência do retorno do discurso identitário na política. Trata-se de uma onda global, ainda que com contornos locais em cada uma de suas manifestações. Radicalizam-se as diferenças de ideologia ou matiz política. Faz-se política apelando-se para as bases confessionais-religiosas, étnicas ou nacionais. Cai o manto da coexistência, radicalizam as relações sociais. Uma verdadeira Fla-Fluização da vida cotidiana. No entanto, não há como negar que a polarização tem produzido efeitos distintos. Se por um lado, no Brasil, se fala da generalizada apatia ou imobilismo pós-impeachment, nos Estados Unidos, a eleição de Trump tem canalizados fervorosas manifestações tanto de seus apoiadores, quanto de seus críticos (vide a Marcha das Mulheres contra Trump em janeiro de 2017 ou a recente marcha racista em Charlottesville).

Crédito: Laerte, 2010

Por fim, pela ótica da política, ficam as ironias e distorções de nossas democracias procedimentais. Num golpe de falta de democracia direta, característico do sistema eleitoral americano, Trump é coroado presidente no colégio eleitoral tendo perdido no voto popular e com um discurso abertamente fascista, para dentro e para fora. Num golpe de excesso de democracia direta, a saída do Reino Unido da União Europeia é posta ao crivo popular por meio de um acirrado referendum, no qual a enganosa propaganda política teve um papel fundamental. Num golpe (parlamentar) de mestre, a presidente eleita Dilma Rousseff é impedida formalmente por um crime inconcluso de responsabilidade fiscal, ainda que informalmente tenha sido julgada por escândalos de corrupção por parlamentares-juízes eles mesmos objeto de incontáveis denúncias e processos por corrupção e peculato. Não é de se espantar que nos três países, os resultados do tabuleiro sociopolítico montado em 2016 ainda reverberam.

Em “A Confissão da Leoa”, o escritor moçambicano Mia Couto sugere que “o silêncio é um ovo as avessas: a casca é dos outros, mas quem se quebra somos nós”. Tal como na frase de Mia Couto, se 2016 é o ano as avessas e os fatos problemáticos são dos outros (e os outros), a verdade é que nos quebramos todos. E seguimos tentando juntar nossos cacos. Vão se os ovos e as cascam, ficam-se os silêncios.

Ps. Autora em trânsito. Próximo post será feito diretamente do Reino Desunido.

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