Êxodo 21 e o Dilema Ético do Aborto

Caio Peres
Bodega de Bíblia
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16 min readJun 25, 2024

Um Convite à Reflexão

INTRODUÇÃO

“Se uma mulher, por vontade própria, fazer cair o que está dentro dela, eles devem processá-la, eles devem condená-la, eles devem pendurá-la num poste, e não devem sepultá-la. Se ela morrer ao fazer cair o que está dentro dela, eles devem pendurá-la num poste, eles não devem sepultá-la” (MAL A 22)

Essa é uma prescrição literária sobre aborto proveniente da Assíria, por volta do século 14 aEC. A mulher que aborta deve ser punida da forma mais severa possível, com seu cadáver exposto publicamente. A motivação para tamanha punição, provavelmente, é o valor do bebê em gestação como propriedade do pai,[1] daí a especificação tão importante: “por vontade própria”. O aborto, portanto, seria uma comprovação de culpa de infidelidade conjugal por parte da esposa.[2]

O aborto não é uma realidade atual, consequência de desenvolvimentos médicos e tecnológicos. Já no Egito, Assíria e Babilônia, por exemplo, existiam receitas médicas com plantas e outros ingredientes para provocar o aborto. Vou citar dois textos aqui pelo simples fato de usarem termos que serão relevantes para a interpretação de Êxodo 21:22.

Nos textos médicos da Babilônia e Assíria é dito: “Uma mulher grávida, a fim de que seu fruto [i.e., o bebê em gestação] seja expelido…” (BAM 246, 7.10). Segue-se, então a receita com plantas que devem ser misturadas e batidas para a mulher beber.[3] A expressão “expelido” aqui é o ponto que gostaria de destacar. Já no Egito, no Papiro Ebers, temos a seguinte prescrição: “O começo das receitas que são feitas para mulheres com intuito de causar a interrupção da gravidez de uma mulher no primeiro, segundo, ou terceiro período” (Ebers 783). Segue-se, então, a receita de uma pasta com diversas plantas e mel a ser colocada na vagina.[4] Mais adiante, em vez de falar do aborto como interrupção da gravidez, a prescrição médica egípcia usará a expressão “expelir” (Ebers 798).

Há muito a humanidade reflete sobre o aborto, inclusive sobre as questões éticas em torno da prática. Isso não é coisa dos nossos tempos. É verdade também que, em toda discussão sobre aborto desde a Antiguidade até hoje, a posição da mulher é de extrema precariedade e vulnerabilidade. Em circunstâncias de violência sexual, gravidezes indesejadas por condições socioeconômicas arriscadas, por falta de apoio e segurança, ou seja, por diversas questões de injustiça, mulheres se encontram numa posição de escolha moral simplesmente impossível quando o assunto é aborto. Como disse a amiga Lillian Cabral no Twitter: “O aborto é a última das consequências em uma sociedade que viola as mulheres incessantemente”. Mais ainda, como no caso da prescrição assíria que vimos acima, as mulheres, na maioria das vezes, se encontram num dilema ético impossível de ser solucionado. É a escolha entre o aborto ou a sua morte. Parece que a PL1904, que tem gerado as mais recentes discussões sobre o assunto, coloca diversas meninas — crianças — vulneráveis, violentadas, injustiçadas, numa situação igual entre escolher sua vida ou a vida do bebê em gestação, entre o aborto e sua morte (física e imediata ou psicológica e lenta). Seus autores compartilham o mesmo ódio contra as mulheres e desejo de controle das suas vidas que esses antigos assírios.

O assunto é complexo e sensível. Cometi o erro de achar que poderia compartilhar reflexões sobre como pensar a questão a partir de textos bíblicos, mesmo que a própria Bíblia não ofereça diretrizes diretas ou explícitas. Fui punido pela ignorância e pelo ódio de gente que para defender a vida incitou violência e sugeriu ameaça de morte pela fogueira, como nos “bons tempos” da Inquisição.

Eu quero aproveitar, então, para trabalhar o assunto com mais detalhes e cuidado a partir de Êxodo 21:22–25. E por que usar texto bíblico para discutir uma questão ética e legal contemporânea que foge do escopo do próprio texto bíblico? Eu tenho algumas respostas para essa pergunta. Primeiro, grande parte dessa discussão atual resvala nas sensibilidades e na articulação política de evangélicos, o que está claro pela autoria da PL 1904 por um deputado federal que é pastor e vinculado ao Silas Malafaia. Segundo, é uma forma de exemplificar como o texto bíblico é um parceiro de diálogo relevante para religiosos e não religiosos quando não é usado de forma dogmática com um tipo de abordagem de texto-prova. Terceiro, esse texto de Êxodo além de lidar com um caso de gravidez, violência e possivelmente um aborto provocado por fatores externos, ele é o texto bíblico onde aparece a famosa tradição do antigo Oriente Próximo do lex talionis, ou “olho por olho, dente por dente”. Esse texto, portanto, tem importância fundamental para lidarmos com questões éticas a partir da sabedoria da tradição bíblica.

UM CENÁRIO IMPROVÁVEL E O PROPÓSITO DA “LEI” NO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO

Para entender melhor a relevância desse texto bíblico, quero apresentá-lo em suas características linguísticas, literárias e culturais. Uma das marcas desse trecho específico de Êxodo é sua complexidade e ambiguidade. O texto diz de forma mais literal:

“Se homens brigarem e ferirem uma mulher grávida e saírem seus filhos sem que haja dano, ele deve ser punido de acordo com o que o marido da mulher estabelecer, ele dará o que for justo. Mas se houver dano, você entregará vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, machucado por machucado, ferida por ferida” (Êxodo 21:22–25).

Logo de cara, a gente percebe que o texto sai do âmbito específico do caso da mulher grávida que é ferida numa briga da qual ela nem está participando e parte para uma lógica ampla sobre justiça retributiva, formulada a partir do que veio a ser conhecida como lex talionis. Essa combinação entre especificidade e generalidade complica algumas decisões sobre o significado de certas construções sintáticas e termos. O texto fala em “filhos”, no plural, “saírem” como resultado de uma ação violenta. Por que o plural? O que o texto quer dizer com “saírem”? Um nascimento prematuro, um aborto? A quem o dano se refere? À mulher, ao bebê em gestação, aos dois?[5] Nada disso é claro no texto e isso é intencional, como quero mostrar.

Se o texto quisesse ser explícito sobre a morte do bebê em gestação, poderia simplesmente ter usado o verbo “morrer” (מות) ou o substantivo “morto” (מות). Melhor ainda, poderia ter usado o termo נֶפֶל, literalmente “cair”, que aponta exatamente para um aborto (p. ex. Sl 58:9; Jó 3:16; Ec 6:3), assim como na expressão usada no texto assírio citado acima. Em vez de usar esses termos mais claros, Êxodo 21:22 usa o verbo “sair” (יָצָא), que pode se referir ao nascimento (p. ex., Gn 25:26; 38:28–30) e poderia estar apontando para um nascimento prematuro, mas que também pode se referir ao aborto (Nm 12:12; Jó 3:11). A decisão sobre se estamos diante de um nascimento prematuro ou um aborto não é possível a partir dos termos usados no texto.

A situação nem mesmo se resolve considerando o que vem depois, a partir do conceito de “dano” (אָסוֹן), porque a construção sintática nos revela que o campo de significado do termo é amplo incluindo a morte, dano ao olho, ao dente, ao braço, a perna, uma queimadura, um machucado, uma ferida.[6] Além de campo de significado amplo, a construção sintática não deixa claro se o texto somente considera o “dano” causado à mulher ou também inclui danos causados ao bebê em gestação que, talvez, tenha nascido prematuramente por causa do ato violento e apresentado problemas de saúde.

Por fim, para complicar ainda mais, o texto bíblico não fala de um bebê em gestação, mas de “crianças” (יְלָדִים), no plural. O que podemos inferir aqui é que o texto está tentando ser o mais abrangente possível, para incluir diversas possibilidades, inclusive a infertilidade futura da mulher provocada por algum ato de violência externo,[7] por mais que isso seja totalmente improvável, para não dizer impossível.

Essas ambiguidades e ampliação de possibilidades, portanto, não são fortuitas, mas propositais. Uma diferença importante dos documentos contendo prescrições de casos “legais” entre a tradição bíblica e a tradição do antigo Oriente Próximo está exatamente nisso. Enquanto os documentos hititas, babilônios e assírios tentam ser exaustivos, considerando cada possível situação separadamente, o material bíblico comprime várias questões de justiça em alguns poucos casos.[8] É isso que torna o caso específico de Êxodo 21:22–25 tão extraordinário. Em que situação aconteceria algo assim? A chance de um aborto espontâneo por causa de alguma batida, soco ou ato violento externo é muito pequena.[9] Então para que incluir isso nas prescrições “legais”? A resposta está no real propósito dessas prescrições “legais” do antigo Oriente Próximo, especialmente na tradição bíblica.

Nenhum desses materiais constitui o que hoje chamamos de códigos legais, ou seja, um documento definitivo que um juiz consulta para determinar um julgamento. Todos eles servem de modelo para reflexão sobre a justiça em diversos casos e para expressar a sabedoria e a justiça de um determinado rei ou de uma cultura em sua capcadidade de formar uma sociedade bem ordenada.[10] No entanto, ao comprimir vários fatores e situações em um único caso, a tradição bíblica cria uma situação bem complexa que não tem solução simples. Essas “leis” bíblicas não servem de texto-prova para pensar o que fazer nessa exata situação. É um convite à reflexão para debatermos como alcançar a justiça em situações muito longes do ideal, marcadas por diversas camadas de injustiça. O texto bíblico não fornece uma resposta pronta e nem uma fórmula, mas um tipo de modelo de exercício filosófico, jurídico e teológico.

ÊXODO 21:22–25 E A REFLEXÃO SOBRE O DILEMA ÉTICO DO ABORTO

Quando consideramos o contexto cultural do qual o texto bíblico faz parte, certamente a cena criada contempla, entre outras coisas e não exclusivamente, um aborto provocado por uma força externa violenta sem intenção. Quero citar aqui três exemplos que aparecem em culturas do antigo Oriente Próximo:

“Se um homem ferir uma mulher livre a ponto de ela perder sua criança em gestação, ele deve pagar dez ciclos pela perda dela” (Hamurabi, 209)

“Se um homem ferir a esposa de um homem, nos primeiros estágios da sua gravidez, e levar ela a fazer cair aquilo que está dentro dela, é um crime; ele deve pagar dois talentos de chumbo” (MAL A 20)

“Se alguém causar uma mulher livre a abortar, se estiver no décimo mês, ele deve pagar 10 ciclos de prata, se for no quinto mês, ele deve pagar 5 ciclos de prata” (Leis Hititas 17)

Eu quero chamar a atenção para alguns detalhes. Em nenhum desses casos, o aborto é punido com a morte da parte culpada, mas com alguma recompensa financeira. Existem motivos para isso. Primeiro, o bebê em gestação, num contexto de alta mortalidade infantil até um bom tempo depois do parto, cerca de 50% até um ano de idade,[11] é uma vida em potencial. Como a perda do bebê acarreta numa perda socioeconômica, existe a possibilidade de recompensa financeira. Isso explica também o fato de dois dos exemplos fazerem uma qualificação sobre em que período da gestação a mulher estava quando ocorreu o aborto.

Diferente do que pensamos hoje, essa possibilidade de recompensa financeira pela morte do bebê em gestação e a consideração do bebê em gestação como vida em potencial que não se equivale à vida de uma pessoa nascida e formada, não é uma forma de menosprezar a vida perdida, como se o bebê fosse um objeto, uma posse, e nada mais. Dos três exemplos, somente o exemplo assírio usa linguagem que objetifica o bebê em gestação, chamando-o de “aquilo que está dentro dela”. No caso de Hamurabi, temos um termo forte de pessoalidade, criança, assim como no texto bíblico.[12]

Bebês em gestação não eram vistos como uma não-vida ou não-pessoa no antigo Oriente Próximo. Pelo contrário, eram vistos como uma vida, uma pessoa, com valor altíssimo desde critérios afetivos, sociais e familiares, religiosos, até critérios econômicos, de trabalho. No contexto mesopotâmico, por exemplo, um bebê em gestação e seu nascimento está por trás de uma relação profunda de identidade entre humanidade e divindade.[13] Esse valor, no entanto, não levou essas culturas a estabelecerem o aborto, a perda do bebê em gestação, como critério absoluto para determinar o que seria justo com relação ao culpado. Em outras palavras, a ética por trás dessa justiça considera outros fatores além da vida do bebê em gestação. Essas culturas determinaram esses fatores. Alguns são mais compreensíveis, como o fato de a gestação ou mesmo parto não serem uma garantia da sobrevivência do bebê. Outros são menos compreensíveis, como a diferença de punição para casos envolvendo mulheres livres ou escravas e prostitutas. Mas a questão é que casos de aborto envolvem vários fatores complexos e a vida do bebê em gestação não é o critério absoluto, ainda que sua perda possa ser considerada a perda de uma vida, ou seja, um assassinato.

Mas, e a Bíblia? Por causa desse contexto, o consenso acadêmico é que Êxodo 21:22–25 está lidando com um caso de aborto.[14] O aborto, como falei, certamente está incluído como uma das possibilidades da cena construída pelo texto bíblico, ainda que não seja o único. Além disso, é necessário esclarecer que o texto bíblico, diferente de alguns dos textos do antigo Oriente Próximo, não está lidando com um aborto provocado intencionalmente. Essa é uma diferença significativa a ponto de termos que afirmar que o texto de Êxodo 21:22–25 não lida diretamente com a questão do aborto conforme a discussão contemporânea, como eu assumi desde o início desse texto.

O que o texto bíblico oferece para nós é mais interessante do que se tivesse abordado a questão do aborto diretamente, como no Egito, Assíria e Babilônia, exatamente porque contextos diferentes exigem considerações diferentes. O texto bíblico, com sua ambiguidade e ampliação de possibilidades para formar um cenário complexo e improvável, cria intencionalmente um espaço para reflexão comunitária de cada caso de acordo com situações e fatores que não são e nem poderiam ser previstas pelo texto. Com isso, o texto bíblico também não estabelece o aborto ou a vida do bebê em gestação como critério absoluto para o estabelecimento do que seja justo e injusto. Pelo que é oferecido no texto bíblico, o aborto provocado por essa força externa num acidente pode levar à punição capital, ou seja, o agressor culpado seria morto, seguindo a lógica da vida pela vida, ou não. O texto bíblico também contempla a possibilidade do aborto levar à punição por recompensa financeira, o que implica numa diferença entre a vida do bebê em gestação para vida de um ser humano nascido e completamente formado. As duas opções são contempladas no texto bíblico e nós precisamos lidar com isso.

O mais importante é que em nenhum dos dois casos, a vida, pessoalidade ou valor do bebê em gestação é diminuída ou desprezada. Assim como nas outras culturas do antigo Oriente Próximo, o bebê em gestação tem valor altíssimo desde critérios afetivos, sociais e familiares, religiosos, até critérios econômicos, de trabalho.[15] Nem precisamos apelar para outros textos bíblicos para afirmar isso. Mas, dado o contexto evangélico e sua visão sobre a Bíblia, talvez seja necessário afirmar que textos como Jeremias 1:5; Salmos 139 e Lucas 1:41 refletem exatamente o valor do bebê em gestação como uma vida, uma pessoa. A possibilidade que Êxodo 21:22–25 dá para lidar com um aborto provocado por uma violência externa com uma recompensa financeira não aponta para diminuição ou desprezo da vida do bebê em gestação, mas da relativização do valor absoluto dessa vida diante de outros fatores que tornam o caso mais complexo. Esse é um caso muito específico e que não se aplica para outras condições, como se a lógica aqui se aplicasse à possibilidade de considerarmos o assassinato de certos grupos de pessoas justificável. Mais uma vez, a alta mortalidade infantil no contexto em que esse trecho bíblico se encontra certamente foi um fator relevante, mas não só. Da mesma forma acontece hoje. Ainda que hoje a taxa de mortalidade infantil seja muito menor hoje do que na Antiguidade, algo em torno de 1,1% até o primeiro ano de vida,[16] a fecundação e a gravidez não são garantias absolutas de vida. A porcentagem de gravidezes que terminam em aborto espontâneo é de 15,3% até as primeiras 22 semanas.[17] Se ainda considerarmos a porcentagem de fecundações que não atingem a viabilidade vital, ou seja, que não “vingam”, então chegamos a números muito altos, cerca de 40–60%.[18] Acrescente a isso outros complicadores como, por exemplo, o risco de morte da mãe, o estupro, o estupro de criança, e temos diante de nós uma complexidade extrema. A questão é que gravidez, aborto, justiça e injustiça não são fenômenos simples, mas complexos, não tem uma única cara, mas várias. Todas as culturas mencionadas aqui, por meio dessas prescrições e considerações éticas, filosóficas, jurídicas e teológicas, estão em busca da melhor forma da sua comunidade proteger a vida individual e comunitária.

CONCLUSÃO

Minhas conclusões sobre o assunto a partir dessa análise mais detalhada não é tão diferente do que já disse antes. O texto bíblico mais relevante para o tema deixa espaço e é convidativo para considerar a justiça em relação ao aborto de uma forma em que cada caso e cada comunidade deve debater para entender qual a opção que melhor serve à justiça que inclui os diversos atores, mulher, homem, bebê em gestação, a comunidade, a sociedade. A diferença fundamental entre a reflexão do texto bíblico e a nossa, com relação ao aborto, é que o texto bíblico está considerando como fazer justiça ao homem e à mulher quando um ato de violência leva a um aborto, e nós estamos considerando como a possibilidade do aborto pode fazer justiça à mulher que sofreu uma violência sexual perpetuada por um homem ou mesmo à mulher que se vê grávida num contexto marcado por inseguranças e injustiças contra ela numa sociedade machista e misógina. Diante das diversas possibilidades de injustiça, como já afirmei, o aborto, ou seja, a morte do bebê em gestação não pode ser o critério absoluto, porque outros fatores podem interferir, como por exemplo, o risco de morte da mãe, o estupro, o estupro de criança. Não quer dizer que todos esses fatores levem, obrigatoriamente, ao aborto. Não é isso que o texto bíblico propõe, exatamente por não dar respostas prontas e convidar à reflexão profunda, difícil, em que muitas vezes se escolhe pelo menos pior e não entre o bem e o mal.

Nada disso é uma defesa do aborto. Eu sou contra o aborto e considero, ética e teologicamente, o aborto uma forma de assassinato, um ato contra a vida, especificamente e mais agravante, uma vida vulnerável. Eu gostaria que não existissem injustiças tamanhas contra as mulheres que levassem ao aborto como uma possibilidade e, às vezes, necessidade, para se fazer justiça a elas. O que o texto bíblico em questão não permite é o desprezo pela vida humana, incluindo do bebê em gestação. A melhor forma de proteger toda a vida, individuais e da comunidade inteira, incluindo as vidas em potencial, as vidas em gestação, é proteger as mulheres, especialmente as mais vulneráveis. A solução não está na criminalização do aborto que é, no fim, a criminalização das mulheres que precisavam terem sido protegidas. Não há espaço no texto bíblico em questão para culpabilizar, prejudicar, demonizar e punir as mulheres que optam pelo aborto, como no texto assírio que citei no início, quando essas mulheres na vasta maioria das vezes são vítimas de atrocidades de uma sociedade já machista, misógina e sexista. Não há espaço no texto bíblico em questão para chamar o bebê fruto do estupro de monstro, como Lula fez num daqueles momentos de infelicidade maligna. E também não há no texto bíblico espaço para demonizar e desejar o mal de pessoas e comunidades que chegam à conclusão, pelo texto bíblico, pelo contexto sociopolítico e jurídico, que o aborto pode ser uma possibilidade no caminho da justiça, cujo propósito final e último é a eliminação completa da própria prática do aborto.

Para concluir, quero mostrar que o grupo religioso que está por trás da PL 1904 e por trás de ataques violentos contra qualquer pessoa, inclusive cristãos, que pensam diferente deles sobre o assunto, relativiza a vida e o assassinato de uma forma muito mais irrefletida, desdenhosa até, do que muitas feministas e/ ou cristãos em relação ao aborto. Essas pessoas dizem que a vida é um valor absoluto, que somente Deus pode tirar a vida de alguém porque ele é quem a deu, e que a ação humana de tirar a vida é sempre assassinato injustificável. No entanto, esse mesmo grupo religioso que afirma isso e condena ao inferno pessoas como eu, os evangélicos conservadores e reformados, são capazes de entender que outros fatores podem justificar o assassinato. Na verdade, trata-se de um único fator: a própria vida deles. Essas pessoas defendem o porte de armas, o assassinato por legítima defesa e a noção de guerra justa. Pior do que isso, eu já vi pessoas desse grupo religioso fazendo piada e rindo diante da apologia do assassinato. O reverendo presbiteriano Augustus Nicodemus Lopes, em algum evento em que lhe perguntaram sobre porte de armas, afirmou publicamente que ele não vê problema algum na autodefesa e que daria um tiro “no meio dos olhos” de alguém que entrasse na casa dele e ele sentisse que a família dele está sendo ameaçada. A plateia do evento, certamente formada por pessoas que afirmam serem pró-vida, que consideram a vida do bebê em gestação um valor absoluto, que não aceitam de forma alguma a consideração de outros fatores que podem explicar e justificar o aborto como um caminho para a justiça, e que condenam da pior forma possível as mulheres e crianças que optam pelo aborto, assim como cristãos que conseguem dar explicações razoáveis para a possibilidade do aborto, essas pessoas caem na gargalhada diante da fala apologética ao assassinato pelo reverendo Augustus Nicodemus Lopes, que ainda usou o texto bíblico para dizer que estava tudo bem pensar assim.[19] Para defender a vida deles, obviamente num contexto ideológico muito bem marcado por recortes religiosos, políticos e socioeconômicos, eles são capazes de relativizar a vida e não só explicar a possibilidade de assassinato, como fazer apologia, zombar e dar risada. Esse é o tipo de coisa para a qual a Bíblia não tem qualquer justificativa. Aqui, sim, estamos diante do desprezo pela vida humana. Mas, nesse caso, eu não vi evangélicos conservadores e reformados dizendo que se tratava de um absurdo a ser combatido, ou um demônio, um Satanás, um servo das trevas, um ímpio, um retardado mental, uma insanidade, uma fala anticristã. Eu, portanto, não considero e não levo a sério a posição evangélica conservadora sobre o aborto, ainda que eu conheça evangélicos conservadores cuja posição sobre o aborto eu, sim, considero.

NOTAS

[1] Ver Kristine Henriksen Garroway, Growing Up in Ancient Israel: Children in Material Culture and Biblical Texts (Atlanta: SBL, 2018), 38, n. 42.

[2] J. C. Pangas, “Notas sobre el aborto em la antigua Mesopotamia”, Aula Orientalis 8 (1990), 216.

[3] Pangas, “Notas sobre el aborto em la antigua Mesopotamia”, 216.

[4] Conforme citado em Kristine Henriksen Garroway (2023). Abortion in the Ancient Near East and Greco-Roman World. TheTorah.com. https://thetorah.com/article/abortion-in-the-ancient-near-east-and-greco-roman-world.

[5] Nahum M. Sarna, Exodus. The JPS Torah Commentary (Philadelphia: The Jewish Publication Society, 1991), 125.

[6] William H. C. Propp, Exodus 19–40: A New Translation with Introduction and Commentary. Anchor Bible (New York: Doubleday, 2006), 222.

[7] Propp, Exodus 19–40, 222.

[8] Propp, Exodus 19–40, 222.

[9] Garroway, Growing Up in Ancient Israel, 37.

[10] Ver Raymond Westbrook e Bruce Wells, Everyday Law in Biblical Israel: An Introduction (Louisville: Westminster John Knox, 2009).

[11] Garroway, Growing Up in Ancient Israel, 223.

[12] O mesmo acontece numa carta no contexto babilônico do mesmo período. Ver Shawn W. Flynn, Children in Ancient Israel: The Hebrew Bible and Mesopotamia in Comparative Perspective (Oxford: Oxford University Press, 2018), 28.

[13] Flynn, Children in Ancient Israel, 24–43.

[14] Ver Garroway, Growing Up in Ancient Israel, 37, n. 40; Carol Meyers, Exodus. The New Cambridge Bible Commentary (Cambridge: Cambridge University Press, 2005), 192–93.

[15] Ver Flynn, Children in Ancient Israel, 43–58.

[16] https://data.unicef.org/topic/child-survival/neonatal-mortality/

[17] Ver Siobhan Quenby et al. “Miscarriage matters: the epidemiological, physical, psychological, and economic costs of early pregnancy loss”, Lancet 397,10285 (2021): 1658–1667. Disponível online em https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/33915094/#:~:text=Miscarriage%20is%20generally%20defined%20as,%25)%20of%20all%20recognised%20pregnancies.

[18] Ver Gavin E. Jarvis, “Estimating limits for natural human embryo mortality.” F1000Research 5 2083 (2016). Disponível online em https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5142718/

[19] https://www.youtube.com/watch?v=HszU-RRTWfE

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Caio Peres
Bodega de Bíblia

Mestre em Estudos Bíblicos e interessado em relacionar a Bíblia com tudo o que tem a ver com a experiência humana.