CECI N’EST PAS UNE CONQUÊTE MILITAIRE

Caio Peres
Bodega de Bíblia
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21 min readApr 10, 2024

Josué 5:13–15 como alerta para interpretações erradas da Conquista de Canaã — parte 3

INTRODUÇÃO

Na primeira parte deste estudo, vimos exemplos bíblicos e extra-bíblicos em que a aparição da divindade ou de seu representante com uma espada serve como confirmação de sucesso militar para o rei. No entanto, já levantamos a proposta de que a função literária e teológica de Josué 5:13–15 é confrontar e não confirmar uma noção de sucesso militar como definitivo para o significado da conquista de Canaã. Na segunda parte deste estudo, falamos da composição literária de Josué 1–5 como fechamento conclusivo do ciclo do êxodo. Portanto, a relação entre conquista de Canaã e libertação da opressão imperial egípcia se complementam. Assim, a proposta da narrativa da conquista é promover e reforçar a identidade de Israel definida pela sua fidelidade a Yahweh e seu modo de governo e de vida em negociação com outros grupos e em contraste com a dominação e opressão imperialista egípcia sobre Canaã. É interessante perceber que essa ambiguidade sobre quem pertence ou não a Israel, quem contribui para um modo de governo e de vida ou outro, está no fundamento de Josué 1–5 com o protagonismo de Raabe, a prostituta cananeia que tem papel fundamental na conquista de Jericó por Israel e Yahweh. A participação de Raabe aponta exatamente para a possibilidade de negociação da identidade de Israel em relação aos outros povos, desde que se preservasse o modo de governo e de vida que a aliança com Yahweh e a fidelidade a Yahweh exigiam. Dessa forma, Josué 1–5 não é uma confirmação divina de sucesso militar de Israel em conquistar Canaã, mas um teste sobre o discernimento a respeito da relação de Israel com os habitantes de Canaã e um questionamento: o que caracteriza a obediência a Deus em conquistar Canaã?

SANTIDADE E PERIGO

Josué 5:13–15 contempla tudo isso de forma coesa com uma potente imagem:

“Aconteceu que ao estar Josué em Jericó. Ele levantou os olhos e olhou. Vejam! Um homem se colocou contra ele, com sua espada desembainhada em sua mão. Josué andou até ele e disse: ‘Você é dos nossos ou dos nossos inimigos?’ E ele disse: ‘Não! Pois eu sou comandante do exército de Yahweh. É assim que eu venho agora.’ Josué caiu com rosto em terra, prostrado, e disse: ‘O que meu senhor diz ao seu servo?’ O comandante do exército de Yahweh disse a Josué: ‘Tire sua sandália do seu pé, porque o lugar em que você se coloca é santo!’ E Josué fez isso.”

Conforme alguns dos relatos do antigo Oriente Próximo e da própria Bíblia que vimos na primeira parte deste estudo, a experiência de Josué pode ser caracterizada como um tipo de sonho ou visão. A expressão que prefacia a experiência: “Aconteceu que ao estar… olhou. Vejam!” (וַיַּרְא וְהִנֵּה …בִּהְיוֹת וַיְהִי), tem características de visão profética, como em Daniel 8:15: “Aconteceu que ao olhar… Vejam!” (וְהִנֵּה …וַיְהִי בִּרְאֹתִי). Josué se encontrava em Jericó, como se transportado para lá, já que o acampamento de Israel estava ainda nos arredores de Jericó, em Gilgal (Josué 4:19; 5:3, 9).[1] A posição do homem segurando a espada desembainhada não é meramente “em frente a” (לִפְנֵי) Josué, mas “oposto a ele” (לְנֶגְדּוֹ), com uma pose agressiva.[2] Nisso já temos algo bem diferente das visões ou rituais de confirmação de sucesso militar nos textos bíblicos e nas tradições do antigo Oriente Próximo. Mais adiante veremos a importância dessa pose do comandante do exército de Yahweh em comparação com a visão de Números 22:23, 31, especialmente, e também 1 Crônicas 21:16.

Apesar da situação ameaçadora, Josué se aproxima, talvez mais uma evidência de que se trata de uma visão. Sua pergunta é muito interessante. Como líder do acampamento de Israel, dificilmente Josué não reconheceria alguém que fosse membro do seu próprio povo. Portanto, na pergunta de Josué estão implícitas duas questões relevantes: essa pessoa não era parte do acampamento de Israel e mesmo assim ela poderia ser “um dos nossos”. Aqui estamos diante de uma possibilidade bem sutil, mas que aponta de volta para o protagonismo de Raabe no sucesso de Israel em conquistar Jericó e, consequentemente, Canaã.[3] Um pouco mais explícito na pergunta de Josué, porém, é a dicotomia entre nós e eles ou amigos e inimigos. Aqui, a resposta do comandante do exército de Yahweh é um ponto de revelação para o significado de toda a cena: “Não!”. A resposta rejeita a própria pergunta.[4] Essa dicotomia não funciona para caracterizar o que o representante do exército de Yahweh veio fazer. Existe, sim, uma dicotomia, como vimos na segunda parte desse estudo. Mas não a função do comandante do exército de Yahweh e, consequentemente, de Josué 5:13–15, não é reforçar a dicotomia entre o governo de Yahweh representado por Israel e o governo do imperialismo egípcio representado pelos reis vassalos de Canaã. Nisso percebemos a importância de considerarmos a função literária do trecho. O episódio aparece como uma cena interpretativa do que está prestes a acontecer com a conquista de Canaã, um tipo de intervenção narrativa que possibilita ao narrador explicar sua intenção ou o significado do que quer comunicar.[5] Num primeiro plano, então, temos uma função de confrontação divina com relação ao empreendimento de conquista de Jericó/ Canaã por Israel e não uma função confirmativa.[6] Em segundo plano, ao rejeitar a própria pergunta feita por Josué, e estabelecer algo para além da dicotomia proposta, o comandante do exército de Yahweh sugere que existe outro propósito divino nesse conflito.[7]

Parte desse propósito tem a ver com a imagem de um representante divino com espada desembainhada, como veremos. Mas existe algo muito significativo na segunda interação entre o comandante do exército de Yahweh e Josué: “o que o meu senhor diz ao seu servo?” Assim como no caso da primeira pergunta, existe mais aqui do que os olhos veem na superfície. Josué pressupõe uma relação em que ele e Israel são vassalos de Yahweh, por isso o tratamento do seu representante como “meu senhor”. A conquista de Jericó/ Canaã é uma reivindicação do senhorio de Yahweh contra o senhorio do imperialismo egípcio naquele território. Essa reivindicação depende de Israel ser liberto e renunciar a relação de vassalagem com o Egito e outros poderes indígenas dos reis vassalos de Canaã. A fim de cumprir o propósito do senhorio de Yahweh que implica num modo de vida, forma de produção e consumo e relações socioeconômicas e políticas na construção de uma sociedade, Israel não pode se sujeitar a esses poderes imperiais, ou aos seus deuses. Israel não pode se colocar debaixo do jugo de Baal, como um animal doméstico que trabalha a terra, como vimos na segunda parte do estudo. Aqui é interessante pensar que na fala de Josué, ele chama o representante de Yahweh de “senhor” (אָדוֹן) e não de Baal, que também significa “senhor”.

Na resposta do comandante do exército de Yahweh encontramos algo ainda mais significativo: “Tire sua sandália do seu pé, porque o lugar em que você se coloca é santo!”. Não há dúvida de que estamos diante de uma réplica da experiência de Moisés com a sarça no “monte de Deus” (הַר הָאֱלֹהִים) em Êxodo 3, que também ocorre no encontro com um representante de Yahweh, lá chamado de “mensageiro de Yahweh” (מַלְאַךְ יְהוָה, Êxodo 3:2). Com isso, reforçamos o aspecto complementar entre êxodo e conquista, portanto da conquista como uma forma de libertação da opressão imperial egípcia em Canaã. Mas existe uma forte exortação para Josué que se deriva da relação de Yahweh com o território. Jericó — lembrem que Josué se encontra ali — é chamada de “lugar… santo” ( קֹדֶשׁ… הַמָּקוֹם) pelo representante de Yahweh. Em Êxodo 3:5, o mensageiro de Yahweh fala em “terra santa” (אַדְמַת־קֹדֶשׁ), mas aqui temos “lugar” (מָקוֹם). Enquanto em Êxodo 3:5 a questão era o solo, o chão, já que se tratava do “monte de Deus”, aqui em Josué 5:15 a questão é o território, já que se trata de Canaã. Mais ainda, o termo מָקוֹם tem importância significativa para o estabelecimento da presença divina em associação com Canaã e o estabelecimento do povo de Israel ali. Na teologia deuteronomista, o santuário é sempre “o lugar [הַמָּקוֹם] que Yahweh vai escolher para fazer seu nome habitar ali” (e.g., Deuteronômio 12:11) ou “o lugar [הַמָּקוֹם] que Yahweh vai escolher para colocar o seu nome” (e.g., Deuteronômio 12:21) ou alguma versão próxima dessas duas (e.g., Deuteronômio 12:5). Jericó, antes da entrada de Israel e independente da sua presença ali, é um lugar santo onde se encontra a presença de Yahweh. Sim, os propósitos de Deus para aquele território estão intrinsecamente relacionados com a presença de Israel ali, mas, lembrando da rejeição da primeira pergunta de Josué, a ação de Deus ali não tem a ver com uma guerra entre nós e eles. Deus está acima disso e sua relação com Jericó/Canaã está acima disso. É isso que explica a possibilidade de negociação e cooperação entre os dois espias e Raabe.

A sacralidade do território de Jericó/Canaã é o fundamento para a exortação prática dada pelo comandante do exército de Yahweh para Josué: “tire sua sandália do seu pé”. Mais uma vez, um pequeno detalhe diferencia a experiência de Josué daquela de Moisés. Em Êxodo 3:5 a exortação usa o plural, “suas sandálias dos seus pés”, o que não parece ser uma diferença significativa. No entanto, o caso de Josué parece ter um pano de fundo bem específico: “Todo o lugar [מָקוֹם] que a sola do seu pé [singular] pisar eu dou a você, assim como disse a Moisés” (Josué 1:3). A conexão com Êxodo 3, portanto, é mais profunda e fundamental (cf. Êxodo 3:7–8). Mas, o que poderia ser uma confirmação incondicional da conquista da terra por Josué, é uma confrontação sobre as limitações e qualificações da relação de Israel com Canaã. A remoção da sandália é uma expressão cultural de anulação de direito de posse. Dois casos bíblicos ilustram isso como um ritual em casos judiciais. Em Deuteronômio 25:9–10, o irmão que não cumpre sua responsabilidade de gerar herdeiros a seu irmão falecido é destituído de direitos de posse pela viúva do seu irmão. Parte dessa decisão é demonstrada num ritual em que a sandália é removida do seu pé e ele ficará conhecido pela comunidade como “a família daquele sem sandália”. O caso que aparece no texto de Rute é mais fácil de entender. Um contexto semelhante de casamento e viuvez está envolvido, mas o texto deixa claro que a transferência de sandália de uma pessoa para outra é uma forma de transferência de propriedade que implica na anulação de direito de posse de tal propriedade por aquele que tem a sandália removida (Rute 4:6–9). Algo semelhante é conhecido em outras culturas próximas a Israel. De acordo com Christine Palmer, o termo acadiano para pé (šēpu) era usado para indicar a propriedade e posse de alguém. Ter algo debaixo dos pés é uma forma de reivindicar e exercer controle sobre tal coisa.[8] Um exemplo interessante aparece na cultura judicial dos hititas, um povo que viveu na Ásia Menor no segundo milênio AEC. Nos arquivos de Nuzi, há documentação de transferência de propriedade em que o vendedor levanta um pé do chão enquanto o comprador daria uma pisada no chão.[9] Portanto, a remoção da sandália, como uma exortação divina, é uma exigência de anulação de qualquer reivindicação de direito de posse que pudesse estar por trás das ações de Josué e de Israel com relação a Jericó/ Canaã.

A relação entre a sacralidade do “lugar” (מָקוֹם) e a exigência de remoção da sandália ganha um aspecto ainda mais interessante quando a comparamos com a relação de levitas e sacerdotes com o santuário. É notável que na descrição das vestimentas sacerdotais em Êxodo 28–29 não haja nenhuma referência a caçados. Uma possível e razoável implicação é que levitas e sacerdotes faziam o serviço no santuário de pés descalços.[10] Parece que a sacralidade de um lugar pressupõe um reconhecimento prático por parte dos que estão ali que, culturalmente, se expressa por estar descalço.[11] No caso dos levitas, o que inclui os sacerdotes, trata-se não somente do reconhecimento de que eles não podem reivindicar posse e controle sobre o santuário, que é propriedade de Deus. Estar descalço no serviço do santuário refletia o fato de eles não terem nenhuma propriedade de terra como herança (ver Números 18:23–24; Deuteronômio 10:8–9), e implicava na sua escolha como servos pessoais de Yahweh, para se submeterem em humildade ao serviço das coisas sagradas, e não reivindicarem nenhum direito de posse e controle.[12]

Josué se encontrava em Jericó. Naquele lugar em que Josué “se coloca” (Josué 5:15) onde a planta do seu pé tocava (Josué 1:3), era santo e não podia ter a sua posse reivindicada por ele ou por Israel. Que tipo de conquista militar seria essa sem reivindicação de posse? Agora é que podemos fazer algumas afirmações mais precisas e agudas sobre a função literária e teológica de Josué 5:13–15. Sua função é apontar para o perigo de interpretar a conquista como uma guerra entre Israel e cananeus, numa disputa por domínio sobre aquele território. É como se o texto dissesse, a partir daqui, cuidado, as coisas não são o que parecem ser. A conquista é uma reivindicação de sacralidade daquele território como propriedade de Yahweh e nada tem a ver com uma divisão étnica em que Israel exerce supremacia sobre cananeus e detém o domínio sobre eles e sobre seu território. A qualificação de Jericó como “lugar sagrado” ( קֹדֶשׁ… הַמָּקוֹם), e a anulação da reivindicação de posse por essa exigência de remover a sandália, geralmente são entendida como um requerimento para a destruição total, como uma forma de consagração (חֵרֶם, ver Josué 6:17, 18, 21; cf. Números 21:2–3; Deuteronômio 7:2, 26; Josué 2:10).[13] Mas tal intepretação desconsidera a função de Josué 5:13–15 como chave interpretativa para o que se segue. O requerimento exigido pelo comandante do exército de Yahweh é uma reivindicação da presença de Yahweh em Jericó/Canaã e o serviço de Israel naquele “lugar sagrado”. Não é o pé de Josué ou de Israel que determina o propósito de Yahweh em Canaã. É Yahweh quem reivindica sua presença em Canaã, como no caso do itinerário de Números 33, e o modo de vida pretendido naquele território. Como vimos na segunda parte deste estudo, trata-se de um contraste entre relações igualitárias e imperiais, cooperativas e opressivas, distributivas e acumulativas, de reprodução da vida em submissão a Deus ou reprodução da morte em submissão a outros poderes. Sem esse contraste, que não diz respeito a questões étnicas ou mesmo militares, a conquista perde sua relação com o êxodo, como cumprimento da libertação das forças opressivas do imperialismo egípcio e seu controle sobre Canaã por meio de reis vassalos e suas divindades que reivindicam posse sobre aquele território e uma forma específica de produção e consumo de recursos materiais. Uma implicação muito importante da afirmação de que é o “seu pé” e não o pé de Josué ou Israel, por assim dizer, que marca a posse de Jericó/Canaã, é que Yahweh considera a possibilidade de os habitantes daquele território entrarem nessa relação de submissão, aliança, e pertencimento, como Raabe fez.

De uma forma analógica, eu diria que a função literária e teológica de Josué 5:13–15 requer de nós, leitores, tirarmos nossa sandália do nosso pé antes de seguirmos adiante na interpretação da narrativa da conquista de Canaã. Esse é um lugar sagrado, reivindicado por Deus, e corremos grande perigo se nos aproximarmos desse texto em busca de confirmação da nossa supremacia sobre os outros, do nosso direito de posse e domínio para justificar interpretações e ações violentas contra um grupo que entendemos como “pecadores”, “merecedores da ira divina”, “os de fora”. Essa não é a relação entre povos que promove uma negociação de identidade e submissão aos propósitos de Deus para a “terra prometida”.

VIOLÊNCIA E SANTIDADE

Essa interpretação da função de Josué 5:13–15 é confirmada quando comparamos essa cena com outras duas em que um representante de Yahweh aparece com a espada desembainhada. A primeira cena comparativa é 1 Crônicas 21:16. A narrativa é famosa. Davi dá ordens aos seus comandantes (שָֹרֵי, v. 2) para fazerem um censo, com claros propósitos militares, já que a contagem é feita de “homens que desembainham a espada” (אִישׁ שֹׁלֵף חָרֶב, v. 5). Essa atitude de Davi é descrita pelo narrador como profundamente negativa, já que é o “adversário” (שָׂטָן, v. 1) quem incita Davi a agir assim, um dos comandantes hesita a cumprir a tarefa (v. 3) que acha repulsiva (v. 6), e o texto é explícito sobre como a atitude de Davi desagradou a Deus (v. 7) provocando uma punição severa contra Israel (vv. 8–30). O motivo para tamanha desaprovação não fica claro. Mas certamente existe uma relação contrastante entre poderio militar e presença divina. A narrativa funciona como um tipo de etimologia, uma narração das origens, do local do templo de Jerusalém. O censo é feito para homens que desembainham a espada, e o mensageiro de Yahweh enviado para destruir Jerusalém é apresentado com sua espada desembainhada, assim como o comandante do exército de Yahweh em Josué 5:13. Davi, assim como Josué, “levanta e os olhos e olha” (v. 16). Mesmo depois que a punição divina havia passado, Davi nunca mais se aproximou do santuário de Yahweh, por medo “da espada do mensageiro de Yahweh” (חֶרֶב מַלְאַךְ יְהוָה, v. 30). Uma reivindicação de poder militar por parte de Israel se torna não somente um motivo para punição divina, mas também um obstáculo incompatível com a presença divina num lugar sagrado.

A comparação de Josué 5:13–15 com 1 Crônicas 21 nos ajuda a perceber que a cena de um representante de Yahweh com a espada desembainhada não serve de confirmação de apoio divino para o empreendimento militar de Israel. O exato oposto disso é verdade. Ambas as cenas apresentam Deus em oposição a um possível empreendimento militar de Israel como reivindicação de sua relação privilegiada com Deus. As cenas demonstram que uma relação privilegiada com Deus, um tipo de eleição feita em aliança, não condiz com reinvindicações de poder e domínio sobre outros povos, especialmente, por meio do poder militar. A espada na mão de Israel se voltando contra si mesmo como uma espada na mão do representante de Yahweh que se opõe a Israel.

Com essa importante lição em vista, podemos seguir com a segunda comparação, agora com Números 22 e a narrativa de Balaão e sua jumenta. Temas semelhantes vão aparecer aqui, mas enquanto em Josué 5:13–15 e 1 Crônicas a espada do representante de Yahweh é apontada contra o próprio Israel, em Números 22 a ameaça é contra um inimigo de Israel. Dessa forma, nessa comparação entre Josué 5:13–15 e Números 22, poderemos aprender sobre quem são os inimigos de Israel contra quem a espada de Yahweh se apresenta como ameaça.

Depois de trinta e oito anos perambulando pelo deserto (Deuteronômio 2:14), Israel finalmente começa seu movimento em direção a Canaã. Esse movimento se dá a leste de Canaã, do outro lado do Jordão, por meio de Moabe. Apesar de Israel ser caracterizado em sua jornada como um acampamento com traços militares e até mesmo vitórias militares (ver Números 21:1–3, 21–35), a caracterização de Israel em encontro com outros povos é bem diferente. Israel descreve sua situação da seguinte maneira em sua mensagem para Edom: “Você sabe de todas as adversidades que vieram ao nosso encontro. Nossos pais desceram ao Egito, se estabeleceram no Egito por muito tempo. O Egito foi maldoso conosco e com os nossos pais. Nós clamamos a Yahweh. Ele ouviu nossa voz e enviou um mensageiro e nos libertou do Egito. Agora estamos aqui em Cades, uma cidade na sua fronteira. Deixe-nos passar por sua terra. Não passaremos pelas suas plantações ou vinhedos, nem beberemos água dos seus poços. Andaremos pela Estrada do Rei, não desviaremos para direita nem para esquerda, até termos passado pela sua fronteira” (Números 20:14–17). A condição de Israel diante dos outros povos é caracterizada por sua vulnerabilidade e fragilidade depois de anos de opressão pelo Egito e agora em fuga para uma terra que não pertence a eles. No entanto, há também um apontamento para um poder, já que Israel foi libertado do Egito por Yahweh. É esse poder, também, que parece estar por trás das vitórias de Israel contra outros povos que os atacaram nessa condição de vulnerabilidade (ver Números 21:1–3, 21–35).

Quando chegamos a Números 22, toda essa relação entre Israel e outros povos é apresentada de forma muito elaborada. O rei de Moabe, Balaque, tem uma posição de poder político-militar bem estabelecida numa terra rica em recursos naturais e cobiçada por outros povos (ver Números 21:26). Balaque tem “comandantes” (שָֹרֵי), Números 22:8, 13, 14, 15, 21, 35, 40; 23:6, 17) e influência e riquezas suficientes para contratar um famoso vidente, Balaão. Ainda assim, Balaque e os moabitas temiam Israel, porque eram muitos (Números 22:2–3). Existe um teor de medo militar, já que é dito especificamente que Israel tinha derrotado os amorreus (Números 22:2). Contudo, o medo real de Balaque e dos moabitas, intensificado pelo detalhe de que haviam muitos israelitas, era que Israel consumisse os recursos da sua terra, ou seja, era o medo de não ter sob seu controle político centralizado a produção da terra (Números 22:4). A intenção de Balaque, portanto, era contratar Balaão a fim de amaldiçoar Israel para que seu exército pudesse destruir Israel, um povo vulnerável e necessitado, na batalha (Números 22:5–6). Um rei com poder militar com domínio sobre os recursos da terra teme um povo vulnerável por causa da ameaça que este apresenta para seu controle e centralização dos recursos da terra. Essa dinâmica é semelhante com a relação entre Israel e o rei Amaleque, que será invocada em um dos oráculos/profecias de Balaão (Números 24:20). A peculiaridade de Amaleque na tradição bíblica é exatamente sua ação militar contra um povo vulnerável recém libertado do Egito (Êxodo 17:8–16). Na recordação do evento em Deuteronômio 25:17–19, é dito que Amaleque atacou a retaguarda de Israel, matou todos os que estavam ficando para trás, famintos e exaustos. Assim, quando o próprio texto de Deuteronômio fala para Israel não esquecer disso e apagar a memória de Amaleque de debaixo do sol, podemos pensar em duas coisas e nenhuma delas é um chamado ao genocídio de algum povo: trata-se de uma exortação para que Israel jamais faça o que Amaleque fez ou que Israel lute contra esse tipo de poder político-militar que mata os vulneráveis. Eu fiz essa digressão sobre Amaleque e Deuteronômio 25, porque vejo que Números 22 vai apresentar uma mensagem semelhante que ajuda no nosso entendimento do significado da conquista de Canaã a partir de Josué 5:13–15.

Apesar de vários elementos intrigantes na narrativa de Balaão em Números 22 que não poderão ser explicado aqui, posso dizer que sua decisão de acompanhar os “comandantes de Balaque vai contra a vontade divina e demonstra sua disposição de colaborar com os planos de amaldiçoar Israel e ajudar Balaque em seu ataque militar. Dessa forma, o episódio de Balaão e sua jumenta encontrando com o mensageiro de Yahweh serve como parábola para a triangulação entre Israel, Balaque e Yahweh. Balaão representa Balaque e sua violência contra Israel, que é representado pela jumenta, e o mensageiro de Yahweh se apresenta como protetor da jumenta e ameaça a Balaão. Em Números 22:22, o mensageiro de Yahweh se posiciona contra Balaão, com sua espada desembainhada, como seu “adversário” (שָׂטָן). De forma muito parecida com 1 Crônicas 21, a espada do poder militar se volta contra aquele que a carrega. Depois de três ocorrências de violência de Balaão contra sua jumenta, ele diz: “Se eu tivesse uma espada na mão agora, eu mataria você” (Números 22:29). Acontece que a espada que Balaão gostaria de ter em mãos para matar a jumenta, estava na mão do mensageiro de Yahweh. A espada, porém, era uma ameaça a sua vida, enquanto a jumenta, em sua posição humilde e vulnerável debaixo da violência de Balaão, era o motivo para o mensageiro de Yahweh não ter matado Balaão (Números 22:33).

Dessa forma, a aparição do mensageiro de Yahweh com a espada desembainhada ocorre para esclarecer quem seria o inimigo de Israel contra quem Yahweh e, consequentemente Israel, estava lutando nesse processo de libertação do Egito e chegada em Canaã. A espada de Yahweh, por assim dizer, não está contra os cananeus, mas contra os reis locais que usam seu poder político-militar para destruir a população vulnerável que se tornou uma ameaça para sua forma de estruturar a vida. Aqui no episódio de Balaque e Balaão, vários dos elementos que já vimos sobre essa forma de estrutura a vida dos reis locais vassalos do imperialismo egípcio aparecem. A questão do poder político-militar, a vulnerabilidade e opressão da população, a centralização dos recursos da terra — muito possivelmente indicando o acúmulo de recursos para sustentar os reis vassalos e o pagamento de tributos para o Egito ou outro poder imperial — , e a relação dessa forma de estruturar a vida com a religião. Balaque busca utilizar a relação e o conhecimento do divino, representado na pessoa de Balaão como vidente, não somente para justificar essa sua forma de estruturar a sociedade, mas especificamente para divinizar o seu poder e demonizar aqueles grupos da população oprimida que se levantam contra isso. É o uso da religião para o bem dos poderosos e sua violência e para o mal dos vulneráveis que sofrem com a violência dos poderosos. Em Números 22, a cena do mensageiro de Yahweh com sua espada desembainhada, portanto, revela qual o lado de Yahweh nessa relação. Yahweh está com os oprimidos e vulneráveis e contra os poderosos e violentos. Esse esclarecimento é importante para entender a identidade dos inimigos de Israel e de Yahweh. Não se trata dos cananeus, toda uma população de um povo ou de uma etnia específica. Trata-se dos reis vassalos que estruturavam a sociedade, a vida, de uma forma que reproduzia a morte, portanto contrária aos propósitos de Deus para a vida de Israel em Canaã (ver Números 23:21 para uma descrição de Israel como um santuário-jardim onde Yahweh habita; cf. Gênesis 2) e da humanidade como um todo em toda a terra. Isso nos ajuda a entender os oráculos/profecias de Balaão em Números 23–24 que usam imagens violentas de vitória de Israel sobre outros (por exemplo, Números 23:24; 24:8–9). A identidade dos inimigos de Israel não é toda a população, mas os reis e os representantes de um sistema de opressão imperial de reprodução da morte.

O episódio de Balaão não serve somente para identificar quem são os inimigos de Israel e colocar Yahweh e sua espada desembainhada como adversário desses inimigos. Existe um elemento em Números 22 que já aponta para o perigo apresentado em 1 Crônicas em que Israel pode se ver numa posição privilegiada no relacionamento com Yahweh e achar que pode abusar dessa relação para se fortalecer militarmente, definir seu estabelecimento em Canaã como um veredito da sua supremacia e a maldade ou inferioridade dos outros e, por fim, agir com violência contra estes. A relação entre o episódio das serpentes mortíferas em Números 21:4–9 e Números 22–24 me parece apresentar o episódio de Balaão e o mensageiro de Yahweh como um sinal de perigo para Israel também. É como se fosse uma placa de alerta, avisando Israel que se eles replicassem o modo de vida de Balaque com seu poder político-militar ou de Balaão com seu relacionamento e conhecimento do divino, Yahweh se colocaria contra eles, como adversário, com a espada desembainhada para matá-los, como aconteceu em 1 Crônicas 21.

A partir dessa comparação com Números 22, agora podemos falar com ainda mais propriedade sobre a função literária e teológica de Josué 5:13–15 e o significado da conquista de Canaã. Definitivamente não se trata de um episódio de confirmação do apoio divino para ações militares de Israel contra os cananeus. Ao colocar esse episódio imediatamente antecedendo as instruções divinas sobre a conquista de Jericó/ Canaã (Josué 6) e de todo o processo de entrada de Israel em Canaã, os responsáveis pelo texto apontam para pelo menos quatro questões: 1) Yahweh está confrontando certa perspectiva de como entender a entrada de Israel em Canaã; 2) Yahweh está definindo quem são os inimigos de Israel; 3) Yahweh está definindo o significado da conquista; 4) todos esses elementos têm o propósito de orientar a como ler o que se segue.

Eu poderia repetir algumas coisas já ditas, mas acredito que o resumo dessa análise de Josué 5:13–15 é que a luta de Israel, aquilo para o qual a conquista aponta, é a luta contra o poder político-militar de reis que representam a força opressiva de deuses e impérios que acabam com a vida do povo simples da terra. Basicamente, a luta de Israel num aspecto histórico da sua formação é contra reis cananeus vassalos de poderes imperiais, especialmente o Egito, mas não exclusivamente. Dessa forma, a conquista nunca foi um chamado à guerra e muito menos ao extermínio de cananeus e outros povos indígenas. Na verdade, qualquer grupo podia e certamente fez parte da formação e da identidade de Israel. A identidade de Israel, em primeiro lugar, conforme a tradição do Pentateuco e bíblica de forma geral, é o compromisso de aliança com Deus e a sua forma de vida, de organizar a sociedade, as relações de produção e consumo dos recursos materiais. Para nós, portanto, fica o aviso de alerta, a placa de perigo, com o comandante de Yahweh com sua espada desembainhada. Uma vez que lemos ou praticamos a nossa relação com o divino de forma violenta para o benefício dos poderosos e contra os vulneráveis, a espada de Deus estará apontando contra nós!

NOTAS

[1] Ainda que gramaticalmente possível, a preposição hebraica ב, aqui, não significa “perto de”. Contra David G. Firth, Joshua. Evangelical Biblical Theological Commentary (Bellingham: Lexham Press, 2021), 127.

[2] Richard D. Nelson, Joshua: A Commentary. Old Testament Library (Louisville: Westminster John Knox Press, 1997), 81.

[3] Para essa possibilidade implícita, ver Firth, Joshua, 127.

[4] John Goldingay, Joshua. Baker Commentary on the Old Testament Historical Books (Grand Rapids: Baker, 2023), 143–44.

[5] Para esse tipo de intervenção em Josué, ver Firth, Joshua, 126.

[6] Ver Paul R. Hinlicky, Joshua. Brazos Theological Commentary on the Bible (Grand Rapids: Brazos, 2021), 99.

[7] Cf. Firth, Joshua, 128.

[8] Christine Palmer, “Unshod on Holy Ground: Ancient Israel’s ‘Disinherited’ Priesthood”. In: Fashioning Jews; Clothing, Culture, and Commerce, editado por Leonard J. Greenspoon (West Lafayette: Purdue University Press, 2013), 6–7.

[9] A referência arqueológica é Semitic Museum Nuzi (SMN), 2390, 2338. Ver a citação em Palmer, “Unshod on Holy Ground”, 7; Rachel Adelman, “The Burning Bush: Why Must Moses Remove His Shoes?” (2021). TheTorah.com. https://thetorah.com/article/the-burning-bush-why-must-moses-remove-his-shoes [acessado 09/04/2024].

[10] Ver Menahem Haran, Temples and Temple Service in Ancient Israel: An Inquiry into the Character of Cult Phenomena and the Historical Setting of the Priestly School (Oxford: Claredon Press, 1978), 166, n. 34.

[11] Joachim J. Krause, “Barefoot before God: Shoes and Sacred Space in the Hebrew Bible and Ancient Near East”. In: Clothing and Nudity in the Hebrew Bible, editado por Christoph Berner, Manuel Schäfer, Martin Schott, Sarah Schulz e Martina Weingärtner (Londres: T&T Clark 2019), 321.

[12] Uma excelente análise da relação entre Êxodo 3:5, Josué 5:15 e o serviço dos levitas é apresentada em Palmer, “Unshod on Holy Ground”, 8–14.

[13] Por exemplo, Hinlicky, Joshua, 101; Nelson, Joshua, 82–83.

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Caio Peres
Bodega de Bíblia

Mestre em Estudos Bíblicos e interessado em relacionar a Bíblia com tudo o que tem a ver com a experiência humana.