CECI N’EST PAS UNE CONQUÊTE MILITAIRE

Caio Peres
Bodega de Bíblia
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10 min readMar 22, 2024

Josué 5:13–15 como alerta para interpretações erradas da Conquista de Canaã — parte 1

A imagem de um cachimbo não é um cachimbo realmente. Essa é a provocação filosófica proporcionada pela famosa pintura do artista belga René Magritte. Da mesma forma, a descrição literária de uma campanha militar não é uma campanha militar realmente. Não há dúvida de que as tradições da conquista militar de Canaã em Josué, com diversas motivações e justificações teológicas em outras partes da Bíblia, causam estranheza ou mesmo mal-estar em seus leitores. Sabemos que Deus se envolve com a nossa realidade humana, mas não é agradável ler que Deus instruiu Israel a matar populações inteiras, inclusive crianças, ou ler relatos em que Deus está do lado de Israel em suas vitórias militares contra povos que não os atacaram. Ora, e se o propósito e significado desses textos nada têm a ver com guerra e violência?

Eu já pensei e escrevi sobre essas questões antes. Mas uma breve mensagem do meu amigo Edson Nunes me instigou a refletir ainda mais. Ele fez referência a Josué 5:13–15, um episódio que se passa imediatamente antes da conquista de Jericó, a primeira ação militar de Israel em sua campanha de invasão de Canaã. Nesse texto, Josué se encontra com um homem que tem em suas mãos uma espada desembainhada. Josué, tendo em mente o embate militar que estava prestes a acontecer, faz uma pergunta óbvia: “você está do nosso lado ou do lado dos nossos inimigos?” O homem, que agora se identifica como “comandante do exército de Yahweh”, responde de forma surpreendente: “Nenhum dos dois”. Pior ainda, esse representante divino não dá instruções ou confirmações militares a Josué, antes diz: “Remova sua sandália do seu pé, porque o lugar onde você está é santo!” Como assim, Deus não está do lado de Israel contra os inimigos? E o que essa ordem tem a ver com a preparação de Josué para liderar um exército?

Esse episódio é muito significativo para entendermos toda a narrativa de conquista de Jericó, e mais ainda de Canaã. Existem muitos elementos aqui que apontam para a melhor forma de entendermos essa narrativa não como uma campanha militar e muito menos como um envolvimento de Deus em tal campanha. O simples fato de estarmos lidando com uma obra literária já deveria nos alertar a não interpretarmos a narrativa como uma descrição histórica de uma campanha militar real. Mas, é claro, existem obras literárias e até artísticas baseadas em campanhas militares históricas. Por isso, mais do que essa simples confirmação da provocação filosófica da expressão artística “ceci n’est pas une conquête militaire”, precisamos atentar para as peculiaridades da construção literária bíblica da conquista de Canaã. E eu quero mostrar que Josué 5:13–15 tem um papel fundamental nisso. O que posso adiantar é que esse texto é um alerta de perigo mortal que uma leitura militarmente triunfalista dessa narrativa apresenta a nós.

IDEOLOGIAS MILITARES TRIUNFANTES

Uma confirmação divina de triunfo militar a um rei, antes de alguma batalha, aparece como tema recorrente em tradições do antigo Oriente Próximo.[1] A própria Bíblia, inclusive no livro de Josué, nos oferece muitos exemplos disso. Em Josué 8:18, Yahweh diz para Josué: “Estenda a espada em sua mão para Ai, pois eu a dou em suas mãos”. Já em Josué 10:8 temos: “Não tenha medo deles, porque eu os entreguei na tua mão; nenhum deles poderá resistir a você”. Em outras partes da Bíblia, algo semelhante ocorre (p. ex. Juízes 7:9–11; 2 Samuel 5:22–25). Talvez a cena que melhor descreva esse tipo de prática religiosa ideologicamente marcada, antecedendo campanhas militares, esteja em 1 Reis 22. Ali nós vemos o uso que o rei faz de profetas e adivinhos para buscar alguma orientação divina como parte da sua estratégia militar.

É muito importante constatarmos esse mesmo fenômeno em outras culturas do antigo Oriente Próximo, especialmente a forma que elas tomaram em expressões literárias e iconográficas. Possivelmente a evidência associada com o episódio de Josué 5:13–15 mais remota que temos data de meados do segundo milênio AEC, proveniente de Mari, uma importante cidade da Síria. Num oráculo pronunciado por um profeta do palácio ao rei de Mari, Zimri-Lim (ca. 1775–1761 AEC), a divindade síria Addu (ou posteriormente conhecida como Adade, com características prototípicas de Marduque, da Babilônia) diz o seguinte: “Eu o coloquei no trono de seu pai e dei a você as armas com as quais eu lutei contra o Mar. Eu ungi você com o óleo da minha invencibilidade e ninguém poderá se colocar contra você”.[2] Já no fim do segundo milênio AEC, no Egito, temos textos e imagens de uma divindade entregando sua espada para o faraó. De acordo com uma inscrição do templo de Karnak, o faraó Mernepta (1213–1203 AEC) tem uma visão noturna antecedendo o enfrentamento militar contra a Líbia: “Então sua majestade viu num sonho como se uma estátua de Ptah [divindade egípcia] estivesse em pé diante do Faraó… dizendo para ele: ‘Pegue!’ ao estender para ele a espada, ‘e retire o coração temeroso de si’”.[3] A entrega de uma espada pela divindade ao faraó é um tema recorrente na iconografia egípcia, incluindo na estela de Mernepta em que há a primeira referência história ao povo de Israel. De acordo com Thomas Römer, essa tradição literária e iconográfica reflete um ritual em que depois de uma visão profética ou um oráculo, uma espada era entregue ao rei por um sacerdote ou funcionário do templo.[4]

Historicamente mais próxima é a evidência de algo parecido na Assíria. É possível que no Obelisco Quebrado (imagem de capa desse post), possivelmente do reinado de Tiglate-Pileser I (ca. 1114–1076 AEC),[5] a mão saindo do disco solar que segura um arco seja uma divindade entregando a arma ao rei assírio.[6] As coisas ficas mais claras quando nos voltamos para a evidência textual assíria já no período de Esar-hadom e Assurbanipal no século VII AEC. Existe uma série de oráculos de profetas da deusa Istar a Esar-hadom que segue um padrão: “Esar-hadom, rei das terras, não tema… eu sou Istar de Arbela, eu vou destruir os seus inimigos e entregá-los a você. Eu sou Istar de Arbela. Eu vou a sua frente e dianteira”.[7] De forma mais completa, temos um texto do reinado de Assurbanipal em que um oráculo é anunciado antes de sua campanha militar contra os elamitas (639 AEC):

“Naquela mesma noite em que implorei a ela [Istar], um vidente se deitou e teve um sonho. Quando ele acordou, me reportou a visão noturna dada a ele por Istar: ‘Istar, que habita em Arbela, entrou carregando aljavas em seu lado direito e esquerdo e segurando um arco em sua mão. Ela desembainhou uma espada pontiaguda, pronta para a batalha. Você ficou diante dela e ela lhe falou como uma mãe de quem você nasceu. Istar, a mais elevada dos deuses, lhe chamou e lhe deu a seguinte ordem: ‘Você está preparado para a batalha, e eu estou preparada para cumprir os meus planos’. Você disse para ela: ‘Onde quer que você vá, eu irei com você!’ Mas a Dama das Damas lhe respondeu: ‘Você fique aqui no seu lugar… até que eu cumpra esta tarefa, fazendo com que você adquira o desejo do seu coração’”.[8]

Um último exemplo desse fenômeno ainda vale ser citado. No último capítulo do livro de 2 Macabeus, datado por volta do fim do segundo século AEC, temos um relato muito relevante para Josué 5:13–15 diante desse apanhado histórico do antigo Oriente Próximo. Os judeus, sob comando de Judas Macabeu, estavam diante de uma terrível ameaça militar promovida pelo general selêucida, Nicanor, que havia prometido destruir o templo de Jerusalém e construir no lugar um templo a Dionísio (2 Macabeus 14:30–36; cf. 1 Macabeus 7:35–36). Ao se preparar para a batalha com o seu exército, Judas Macabeu descreve uma visão que teve em sonho:

“Em seguida, apareceu a Judas, da mesma forma, um homem notável pelos cabelos brancos e pela dignidade, sendo maravilhosa e majestosíssima a superioridade que o circundava. Tomando então a palavra, disse Onias [um antigo sumo sacerdote]: ‘Este é o amigo dos seus irmãos, aquele que muito ora pelo povo e por toda a cidade santa, Jeremias, o profeta de Deu’. Estendendo, por sua vez, a mão direita, Jeremias entregou a Judas uma espada de ouro, pronunciando estas palavras enquanto a entregava: ‘Recebe esta espada santa, presente de Deus, por meio da qual esmagarás teus adversários!” (2 Macabeus 15:13–16).

Com todos esses exemplos na mesa, podemos discernir os elementos que compõe essa tradição político-religiosa que tem certa relação com Josué 5:13–15. Alguns elementos apontam fortemente para um contexto cúltico, como visões de divindades e oráculos oferecidos por profetas ou videntes associados ao templo e ao palácio. Daí a interpretação de Römer de que o fenômeno literário e artístico ser reflexo de um ritual. O caráter religioso e ritual, porém, são de interesse político, já que as visões e oráculos antecedem campanhas militares reais. Deixando de lado os casos de Josué 8:18; 10:8; Juízes 7:9–11; 2 Samuel 5:22–25, sabemos que todos os outros exemplos aparecem no contexto de conflitos militares reais. A entrega de armas associadas à divindade ao rei funciona como aprovação divina para o empreendimento militar do rei e confirmação de sucesso militar. Os propósitos políticos e militares do rei se tornam propósitos religiosos compartilhados pela divindade. Daí que a ação divina se torna uma forma de satisfação dos interesses políticos e militares do rei, uma forma de concretizar o desejo do seu coração, como Istar diz a Assurbanipal. Dessa forma, é inevitável seguirmos uma interpretação profundamente teológica desse fenômeno que segue de perto o que aparece de forma explícita no caso do rei de Mari, o primeiro exemplo citado acima. Os empreendimentos militares do rei são entendidos como um empreendimento religioso de propósitos cósmicos de luta do bem contra o mal, dos deuses contra os monstros, da ordem contra o caos, da vida contra a morte. E em todos os casos que vimos a aparição da presença divina vem para confirmar o triunfo do rei e, inevitavelmente, confirmar toda essa perspectiva teológica de justificação da guerra como um meio de avançar os propósitos cósmicos da divindade.

A pergunta que devemos fazer, então, é se Josué 5:13–15 cumpre esse mesmo papel teológico dentro da construção literária de Josué. Todos os detalhes da composição literária de Josué 1–5, assim como os detalhes da visão específica de Josué 5:13–15 nos levam a uma resposta negativa. Sem considerar o significado desses detalhes, estudiosos de caráter mais histórico acabam por interpretar Josué 5:13–15 à luz desse tema que vimos em várias tradições do antigo Oriente Próximo como “autorização para Josué começar sua campanha e uma garantia de que esta será bem-sucedida”.[9] Em alguns casos, essa conclusão é feita a partir de considerações do desenvolvimento histórico do texto bíblico. Em busca da realidade histórica por trás do texto, estudiosos amputam a parte final de Josué 5:15, já que a fala do “comandante do exército de Yahweh” não corresponde com o que era esperado de um representante divino que aparece a uma figura de autoridade antecedendo uma campanha militar. Nessa reconstrução histórica, os estudiosos buscam o que o texto diria no “original” e a resposta deles é algo como uma palavra de confirmação do sucesso da campanha militar de Israel contra Jericó.[10] É interessante perceber como esse tipo de interpretação precisa desconfigurar o texto à luz da história enquanto a solução está exatamente em entender o texto à luz da história. Como quero mostrar na parte 2 desse estudo, esse contexto do antigo Oriente Próximo é definitivo para entender a construção teológica e literária de Josué 5:13–15 não como réplica das outras tradições, mas sim como subversão desse tema ou gênero.[11] Cria-se a expectativa de confirmação divina, mas o que temos é um confronto divino para reorientar o significado da narrativa que parece ser sobre triunfo militar, mas não é.

Estudiosos de caráter mais teológico, que mantém a unidade do texto bíblico são melhores em perceber a função dos detalhes de Josué 5:13–15 à luz das comparações com outras tradições do antigo Oriente Próximo. Mais notadamente, eles entendem que a aparição do “comandante do exército de Yahweh” é confrontante e não confirmativa, assim como um desafio para a simples dicotomia entre Israel e inimigos.[12] Existe, também, uma percepção importante do caráter cúltico do episódio que combina com o contexto literário de Josué 1–5, como inda veremos, e de que o cerne teológico da narrativa da conquista de Canaã não tem nada a ver com sucesso militar, e sim com alinhamento aos propósitos de Deus.[13] Mesmo assim, ainda permanece um aspecto de que o episódio é uma garantia de triunfo ou sucesso, mantendo certos aspectos de conquista da terra contra um grupo de pessoas.[14] Esse não é o papel literário e teológico de Josué 5:13–15, como veremos na segunda parte desse estudo.

NOTAS

[1] Ver Paul R. Hinlicky, Joshua. Brazos Theological Commentary on the Bible (Grand Rapids: Brazos, 2021), 99.

[2] Texto traduzido e publicado em francês por Jean-Marie Durand, Le culte d’Addu d’Alep et l’affaire d’Alahthum (Florilegium Marianum VII; Paris: Société pour l’étude du Proche-Orient Ancien, 2002), 134–137. Conforme citação em inglês por Thomas Römer, “Joshua’s Encounter with the Commander of Yhwh’s Army (Josh 5:13–15): Literary Construction or Reflection of a Royal Ritual?” In: Warfare, Ritual, and Symbol in Biblical and Modern Contexts, editado por Brad E. Kelle, Frank Ritchel Ames, ae Jacob L. Wright (Atlanta, Society of Biblical Literature, 2014), 58.

[3] Texto traduziod e publicado em inglês por James Henry Breasted, Ancient Records of Egypt: Historical Documents From the Earliest Times to the Persian Conquest, vol. 3 (Chicago: Chicago University Press, 1906), 245, §582.

[4] Römer, “Joshua’s Encounter with the Commander of Yhwh’s Army (Josh 5:13–15)”, 57–58.

[5] Conforme o estudo mais recente em Daisuke Shibata, “The Assyrian King of the Broken Obelisk, the Date of the Archive from Giricano, and the Timing of the Assyrian Calendar Reform”, Journal of Cuneiform Studies 74.1 (2022): 109–129.

[6] Römer reconhece que a interpretação da imagem é disputada entre os estudiosos. Ver Römer, “Joshua’s Encounter with the Commander of Yhwh’s Army (Josh 5:13–15)”, 58–59.

[7] State Archives of Assyria 9 1.1 (linhas 4’ e 18’), em Martti Nissinen, Prophets and Prophecy in the Ancient Near East (Atlanta: Society of Biblical Literature, 2003), 102.

[8] Prisma B v 49–68, em Nissinen, Prophets and Prophecy in the Ancient Near East, 147–48.

[9] Richard D. Nelson, Joshua: A Commentary. Old Testament Library (Louisville: Westminster John Knox Press, 1997), 83.

[10] Ver Nelson, Joshua, 81; Römer, “Joshua’s Encounter with the Commander of Yhwh’s Army (Josh 5:13–15)”, 55.

[11] Ver Hinlicky, Joshua, 99.

[12] Ver David G. Firth, Joshua. Evangelical Biblical Theological Commentary (Bellingham: Lexham Press, 2021),127–28; John Goldingay, Joshua. Baker Commentary on the Old Testament Historical Books (Grand Rapids: Baker, 2023), 141–44; Hinlicky, Joshua, 99.

[13] Ver David G. Firth, The Message of Joshua. The Bible Speaks Today (Downers Grove: InterVarsity, 2015), 76; Firth, Joshua, 126.

[14] Ver Firth, The Message of Joshua, 76; Firth, Joshua, 126, 128; Hinlicky, Joshua, 100.

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Caio Peres
Bodega de Bíblia

Mestre em Estudos Bíblicos e interessado em relacionar a Bíblia com tudo o que tem a ver com a experiência humana.