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Caio Peres
Bodega de Bíblia
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11 min readMar 26, 2024

Josué 5:13–15 como alerta para interpretações erradas da Conquista de Canaã — parte 2

A CONSTRUÇÃO LITERÁRIA DA NARRATIVA DA CONQUISTA EM JOSUÉ 1–5 E SEU SIGNIFICADO TEOLÓGICO

Para entender o papel de Josué 5:13–15 é necessário atentar para a construção literária de Josué 1–5, que são os capítulos antecedentes ao início da conquista de Canaã. Esses primeiros capítulos de Josué, especialmente o capítulo 5, foram compostos de forma a fechar o ciclo do êxodo. O fechamento do ciclo do êxodo em Josué 5 é confirmado de forma explícita quando o povo, logo depois da celebração da Páscoa, come do fruto da terra e o maná cessa de ser dado (Josué 5:11–12). Mais ainda, Josué 1–5 tem uma estrutura literária de espelhamento dos primeiros eventos do êxodo:

A1 Aparição divina (Êxodo 3)

….. B1 Celebração da Páscoa (Êxodo 12:1–28)

………. C1 Circuncisão preparatória (Êxodo 12:43–50)

…………… D1 Travessia do Mar (Êxodo 14)

…………… D2 Travessia do Jordão (Josué 3–4)

………. C2 Circuncisão preparatória (Josué 5:2–9)

….. B2 Celebração da Páscoa (Josué 5:10–12)

A2 Aparição divina (Josué 5:13–15).[1]

O fechamento desse ciclo tem o propósito, também, de se contrapor ao evento central de rebeldia contra Deus por parte da geração do êxodo. Esse evento central está em Números 13–14 em que o envio dos espias termina numa rebeldia coletiva para voltar ao Egito com a escolha de novos líderes. Em Josué 2, também temos uma missão de espias, porém somente dois que nem são líderes representantes das tribos.[1] Nessa missão, os espias se limitam a ir para Jericó, em vez percorrer de sul a norte de Canaã como os doze espias fizeram (Números 13:21), porque o propósito dessa missão não é a mesma dada por Deus em Números 13–14. Naquele primeiro momento o propósito era que o povo confirmasse que a terra era boa e renovasse sua confiança na própria bondade de Deus. Aqui em Josué a missão cumpre um propósito bem diferente. A personagem central da missão dos espias é Raabe, uma prostituta cananeia que é a responsável por salvar a vida dos dois espias e confirmar o sucesso de Israel na conquista de Jericó. Assim, essa segunda missão de espias serve como um tipo diferente de “teste” para o povo. O povo já experimentou a bondade da terra, o que explica o fim do maná, então não é necessário confirmar a bondade de Deus na entrega de uma terra boa. Mas a introdução de Raabe faz com que o teste do povo seja o discernimento a respeito da relação de Israel com os habitantes de Canaã. Além de questionar uma dicotomia simplista entre Israel e os “outros” ou entre Israel e inimigos, esses primeiros capítulos de Josué sugerem a pergunta: o que caracteriza a obediência a Deus em conquistar Canaã?[2]

O papel de Raabe já é um indício de que a obediência a Deus na conquista de Canaã não está em passar à espada todos os seus habitantes, incluindo mulheres e crianças, como pode sugerir uma leitura simplista e literal de certos textos bíblicos. Estamos diante de algo bem diferente, algo que diz respeito à aliança com Deus, uma nova forma de viver em oposição ao sistema imperial e escravagista egípcio, ou seja, a conclusão da libertação do êxodo com a implementação de um novo povo na terra prometida.

Podemos entender isso melhor ao percebermos três eventos de caráter cúltico que envolvem a conquista de Canaã. Anteceder a conquista de Canaã com a celebração da Páscoa e com a circuncisão de toda uma geração de israelitas aponta para um evento cúltico e não militar. Ambos os rituais são formativos para a identidade de Israel em sua relação com Deus. A celebração da Páscoa marca a formação de Israel em contraposição com sua condição escravizada no Egito e o ponto de partida para sua libertação. Já a circuncisão é a marca da aliança de Deus com Abraão e sua descendência. Nenhum desses dois rituais faz sentido militar. Eles não servem como um tipo de ritual de consagração que garanta vitória militar. Na verdade, eles prejudicam qualquer estratégia militar. A celebração da Páscoa, que toma alguns dias, serviria contra estratégias militares ao dar mais tempo para Jericó se preparar para o ataque de Israel. O ritual da circuncisão, obviamente, enfraqueceria todo o contingente militar de Israel, deixando-o susceptível ao ataque de inimigos (cf. Gênesis 34). Por fim, o “ataque” de Israel a Canaã é descrito como um tipo de procissão litúrgica. Uma volta em torno da cidade todos os dias, por seis dias, e sete voltas no sétimo dia (Josué 6:2–5). Isso não é estratégia militar, e sim um ritual de consagração, pois segue a mesma lógica de repetição de rituais de consagração com ênfase no sétimo dia (cf. Êxodo 29; Levítico 8–9; Ezequiel 43:25–27; Gênesis 1). Junto com o “exército” israelita iriam sete sacerdotes com trombetas e a Arca da Aliança. Apesar de em outras tradições bíblicas a Arca da Aliança ter um papel militar (ver 1 Samuel 4, 14; 2 Samuel 11:11), aqui ela cumpre um único papel de manifestação da presença divina no meio do povo. Isso fica claro com o uso ritual dos sete toques de trombetas pelos sacerdotes. Em Números 10:1–10, vemos o uso das trombetas para organizar o movimento do acampamento, sem nenhuma referência a ações militares, mas sim com referência aos festivais cúlticos para memória da relação do povo com Yahweh como seu Deus (Números 10:10). Além disso, o som das trombetas, de acordo com Números 23:21, é um indício da presença de Yahweh como rei no meio do povo.

Agora podemos falar com mais exatidão sobre o que seria a conquista de Canaã por Israel, que tem na conquista de Jericó o seu paradigma. Trata-se de uma reivindicação divina sobre aquele território específico. É claro que reivindicações de território por parte de uma divindade pode ser uma mera justificação religiosa para o domínio militar e político de um povo como força representativa dessa divindade contra os povos que habitam em tal território e representam outras divindades. Mas não parece ser esse o caso da tradição bíblica sobre Canaã.

Canaã é caracterizado na tradição do êxodo e da conquista como território sob dominação egípcia. As fronteiras de Canaã estabelecidas em Números 34 correspondem ao território de Canaã enquanto província egípcia, especialmente em sua fixação depois da batalha de Cades contra os hititas, por volta do ano 1270 AEC,[3] e na última parte do século VII AEC.[4] Nesses dois períodos, o Egito mantinha sua dominação imperial sobre Canaã, controlando as rotas de comércio e tendo reis vassalos que pagavam tributos, incluive da produção agrária.[5] O significado dessa conquista é justamente a libertação desse domínio imperial egípcio que oprimia e escravizava a população de Canaã. Ainda assim, poderíamos questionar se há aqui um chamado à guerra, à violência, às armas e à destruição total da população de Canaã. A resposta curta é que não. Essa conquista não tem a população geral de Canaã em vista, mas sim a elite ligada aos reis vassalos do Egito. Mesmo reinterpretando a conquista dessa forma, um caráter histórico mais do que teológico permanece, e não parece ser esse o significado da conquista de Canaã na tradição bíblica.

Felizmente, Números 33 nos oferece um exemplo do que seria essa reivindicação divina de Yahweh sobre Canaã, porque ali vemos o itinerário de Israel pelo deserto funcionando exatamente como uma procissão litúrgica que estabelece a presença de Yahweh em locais previamente dominados por outras divindades. Dois exemplos em Números 33 deixam a questão mais clara. Um dos locais por onde Israel passa chama-se Harada (Números 33:24), que corresponde ao topônimo Ḫiratâqaz/ṣaya nos anais do rei assírio do século VII AEC, Assurbanipal. De origem semítica, esse topônimo significa “terra cultivada de Qos”, a divindade edomita.[6] A relação entre um território e uma divindade, portanto, não é mera questão religiosa e cúltica, e sim socioeconômica, estabelecendo certas formas de relação de produção e consumo dos recursos da terra. Isso vai ficar ainda mais marcado no segundo exemplo de Números 33. Um dos pontos de parada de Israel no deserto é chamado Almon-Diblataim (Números 33:46–47). Esse topônimo é possivelmente uma variação de Bete-diblataim, mencionado em Jeremias 48:22 e na Estela de Mesa (linha 30).[7] A variação que encontramos em Números 33 realça a relação desse topônimo com Baal, fazendo uma aglutinação entre Baal + meon = Almon.[8] Isso se comprova pelo fato de na Estela de Mesa, o termo “bete” corresponder a “casa” ou “templo”, que explica o uso do topônimo Bete-Baal-meon (linha 30) logo depois do topônimo Bete-diblaten, uma variação de Bete-diblataim, conforme encontramos em Jeremias 48:22 como variação de Almon-Diblataim de Números 33:46–47. Dessa forma, esse topônimo de Números 33 é uma aglutinação de vários locais próximos que aparecem na Estela de Mesa e estão associados com espaços cúlticos dedicados a Baal.[9] A relação de um espaço cúltico de Baal e uma forma específica de produção e consumo de recursos da terra nos aponta para Números 25:2–3, em que ao participar do culto a Baal em terras moabitas, Israel se submete a uma relação opressiva com os moabitas, como um animal que trabalha a terra debaixo de um jugo: “e o povo colocou em si o julgo de Baal-Peor” (Números 25:3).

O que está em jogo na conquista de Canaã, portanto, é a relação socioeconômica de Israel com outros povos em relação à propriedade de terra, o trabalho, produção e consumo dos seus produtos, dentro de um contexto religioso de submissão e lealdade a divindades distintas. A conclusão do itinerário de Israel pelo deserto, em Números 33:50–56 com paralelo em Josué 23:13, aponta nessa direção ao dizer que a expulsão dos habitantes de Canaã e a destruição dos seus espaços e elementos cúlticos têm a ver com a distribuição justa da terra, e que o fracasso em assim fazer tornaria os habitantes de Canaã em “uma trave em seus olhos e um espigão na sua lateral” (Números 33:55). A imagem, novamente como em Números 25:2–3, remete ao animal que trabalha a terra subjugado com instrumentos que dominam o seu corpo. A questão, portanto, é uma relação de sujeição e opressão no trabalho da terra sob o poder dos habitantes de Canaã, debaixo de uma submissão religiosa aos deuses desses habitantes que eram entendidos como os proprietários da terra. Ora, quem tinha domínio real sobre as terras de Canaã não eram pessoas comuns, e sim os reis vassalos do imperialismo egípcio. A conquista de Canaã, portanto, é uma afirmação da libertação de Israel desse domínio imperialista que se dá pela reivindicação da terra por Yahweh. É, como afirmei no início, a conclusão da narrativa do êxodo, portanto, do processo de libertação de Israel que caracteriza a estrutura literária de Josué 1–5. Nesse sentido, a presença de Yahweh em algum lugar como reivindicação da terra como sua propriedade é o fundamento e implica no fim de relações opressivas na produção e consumo do produto da terra e na formação de relações justas e mais igualitárias. A conquista de Canaã é uma afirmação de contraste entre duas formas de governo, o de Yahweh e de outras divindades.

É claro que a presença de Yahweh está associada com a presença de Israel. No entanto, percebam como o itinerário de Números 33 contribui para uma nova forma de entendimentos sobre a identidade de Israel em relação a outros povos e suas divindades, inclusive de Canaã. Ao afirmar que a origem de Israel e a presença de Deus estão atreladas a locais previamente dominados por outras divindades com habitantes anteriormente desvinculados de Israel e de Yahweh, o itinerário de Israel pelo deserto e a conquista de Canaã promovem a possibilidade de inclusão de outros grupos e povos na formação da identidade de Israel. Não se trata de uma perspectiva de poder imperial de propósitos colonialistas a ser imposta pela força. A proposta da narrativa da conquista é promover e reforçar a identidade de Israel definida pela sua fidelidade a Yahweh e seu modo de governo e de vida em negociação com outros grupos e em contraste com a dominação e opressão imperialista egípcia sobre Canaã. Por um lado, esses grupos com suas identidades podem ser incluídos na identidade de Israel em aliança com Yahweh. Por outro lado, o modo de governo e de vida que marcam a identidade de certos grupos em sua relação com os reis vassalos do imperialismo egípcio e suas divindades, devem ser destruídos a fim de dar lugar à formação de outra sociedade.

Existe uma ambiguidade aqui sobre inclusão e exclusão. Não é possível falar em destruição total de populações e povos. A conquista de Canaã não é sobre pessoas e povos, mas sobre modo de governo e modo de vida. É claro, porém, que há um contraste entre Israel e Canaã, as divindades cananeias e Yahweh. Mas o contraste tem caráter socioeconômico, político e religioso, e não étnico, e não serve ou tem o propósito de justificar ações contra indivíduos e povos que não fazem parte de Israel, mas sim contra certas figuras políticas importantes que representam um modo de governo e de vida imperialista, opressivo. E, mais ainda, não há nenhuma justificação aqui para ações militares, guerra e morte de mulheres e crianças. É interessante perceber que essa ambiguidade sobre quem pertence ou não a Israel, quem contribui para um modo de governo e de vida ou outro, está no fundamento de Josué 1–5 com o protagonismo de Raabe, a prostituta cananeia que tem papel fundamental na conquista de Jericó por Israel e Yahweh. A participação de Raabe aponta exatamente para a possibilidade de negociação da identidade de Israel em relação aos outros povos, desde que se preservasse o modo de governo e de vida que a aliança com Yahweh e a fidelidade a Yahweh exigiam.

Como quero mostrar na terceira e última parte desse estudo, todos esses elementos estão compactados de forma literária e teológica no evento descrito em Josué 5:13–15. O comandante do exército de Yahweh afirma a reivindicação de Canaã como propriedade de Yahweh, e isso requer que Josué e os leitores entendam qual o propósito da conquista de Jericó e, consequentemente, de Canaã, e os perigos de se interpretar mal esse movimento de conquista.

NOTAS

[1] A missão dos espias é incluída como parte do espelhamento literário de Josué 1–5 com o início do êxodo em Joachim J. Krause, “Hexateuchal Redaction in Joshua”. Hebrew Bible and Ancient Israel 6 (2017):198. Mas como esse evento ocorre somente em Números 13–14, cronológica e literariamente bem distante dos primeiros capítulos de Êxodo, é melhor não o incluir nesse espelhamento.

[2] Como coloca muito bem Firth, Joshua, 126.

[3] Steven Grosby, “The Successor Territory”. In: Nationalism and Ethnosymbolism: History, Culture and Ethnicity in the Formation of Nations, editado por Athena S. Leoussi e Steven Grosby (Edinburgh: Edinburgh University Press, 2007), 106–07.

[4] Yigal Levin, “Numbers 34:2–12, The Boundaries of the Land of Canaan, and the Empire of Necho”, Journal of the Ancient Near Eastern Society 30.1 (2006): 55–76; Bernd U. Schipper, “Egyptian imperialism after the New Kingdom: the 26th Dynasty and the southern Levant”. In: Egypt, Canaan and Israel: History, Imperialism, Ideology and Literature — Proceedings of a Conference at the University of Haifa, 3–7 May 2009, editado por S. Bar, D. Kahn, e J. J. Shirley (Leiden: Brill, 2011), 268–290.

[5] Ver Grosby, “The Successor Territory”, 105; Schipper, “Egyptian imperialism after the New Kingdom: the 26th Dynasty and the southern Levant”, 278–83.

[6] Juan Tebes, “Desert Place-names in Numbers 33:34, Assurbanipal’s Arabian Wars and the Historical Geography of the Biblical Wilderness Toponymy”, Journal of Northwest Semitic Languages 43.2 (2017): 74–79.

[7] A Estela de Mesa é um artefato arqueológico associado ao rei de Moabe, Mesa, do século IX AEC, com grande importância histórica no estudo do antigo Israel, porque cita Omri, rei de Israel e o nome divino Yahweh. Para a tradução em inglês da Estela de Mesa ver William W. Hallo (ed), The Context of Scripture: Canonical Compositions, Monumental Inscriptions and Archival Documents from the Biblical World (Leiden: Brill, 2003), vol. 2, p 138.

[8] Jacob Milgrom, The Commentary to Numbers. The JPS Torah Commentary (Philadelphia: Jewish Publication Society, 1990), 282.

[9] Ver J. Andrew Dearman, “Roads and Settlements in Moab”, The Biblical Archaeologist 60.4 (1997): 207–08.

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Caio Peres
Bodega de Bíblia

Mestre em Estudos Bíblicos e interessado em relacionar a Bíblia com tudo o que tem a ver com a experiência humana.