Deus Ordena Termos Filhos? Como um Biblista faz Teologia

Caio Peres
Bodega de Bíblia
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20 min readOct 16, 2020

A velocidade das redes sociais não permite que alguma contribuição mais elaborada venha a tempo para fazer parte da conversa ou da discussão. É por isso que não escrevo esse texto para surfar na onda da polêmica que rolou no Twitter sobre cristãos terem ou não filhos. Mas é bom situar o leitor e esclarecer o meu propósito. Provavelmente como resultado de uma declaração de Fábio Porchat, crentes começaram a relatar nas redes sociais que compartilhavam de pensamentos ou sentimentos semelhantes. Para eles, filhos atrapalham a vida ou trazem muitas dificuldades para o casamento, para a vida profissional, etc. Uma questão, que no meio cristão, poderia ser facilmente abordada a partir de uma ética de auto-entrega e auto-doação em oposição ao egoísmo — como veremos mais para frente, isso evitaria, por exemplo, que cristãos que optam por não terem filhos por motivos financeiros sérios, de serem julgados como egoístas. As motivações egoístas, imaturas e irresponsáveis são reais e são, de fato, um problema do ponto de vista da teologia e da ética cristãs. Contudo, em vez de focar nas motivações e na ética cristã mais fundamental, a discussão tomou uma forma muito mais problemática. O motivo disso é que a partir de uma construção teológica-ética-biológica, argumentou-se que o cristão que não quer ter filhos não deve se casar e, caso se case, estaria em pecado se não quisesse ter filhos. É claro que tal visão gerou uma enxurrada de reações contrárias e a favor.

Essa é a situação. Meu propósito aqui é demonstrar como um biblista de formação trabalha com essas questões. Isso é relevante porque aqueles que defenderam essa visão de que há um mandamento para o cristão ter filhos apelam para o texto bíblico. Essa tentativa de ser bíblico, então, nos faz pensar: o que diz o texto; por que o texto diz isso; como aplicar o texto hoje? Assim, quero usar esse exemplo para mostrar como um biblista faz uma construção bíblica-teológica-ética-biológica sobre um assunto relevante para a igreja.

EXEGESE É A BASE

Quando se fala em procriação, é claro que temos que lidar com Gênesis 1.28: “Então Deus os abençoou dizendo para eles: ‘Sejam abundantemente férteis, encham a terra, sujeitem, dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre toda vida que pulula na terra’” (tradução minha). Como os verbos estão no imperativo, muita gente vê nisso uma ordem ou um mandamento divino. Então vamos começar por esse aspecto gramatical. Sim, os verbos estão na forma imperativa. Eles, porém, estão subordinados ao verbo principal da sentença que é a bênção de Deus. Assim, os imperativos não são mandamentos, como uma lei, mas uma comissão derivada da capacitação dada pela bênção de Deus.[1] Essa constatação gramatical tem corroboração teológica que se percebe quando comparamos Gênesis 1.28 e Gênesis 1.22. Os dois textos apresentam a mesma expressão: “Então Deus os abençoou dizendo [para eles]: ‘Sejam abundantemente férteis, encham…’”. Em Gênesis 1.22, a bênção divina é dada aos animais criados no v. 21 e sua comissão é simplesmente “encher”. Existem duas questões teológicas importantes nessa comparação. A fertilidade abundante, tanto de animais (Gn 1.22) quanto de seres humanos (1.28), ainda que parte da bênção e da comissão divinas, também é um meio para se cumprir a segunda parte da comissão dada por Deus. No caso dos animais, a comissão é meramente “encher” os seus devidos habitats. No caso dos seres humanos, a comissão final é “sujeitar e dominar” todos os animais. Assim, para os seres humanos, a comissão para se multiplicar e encher a terra são meios para alcançar a comissão final de sujeição e domínio sobre a criação.

Eu não vou entrar na discussão sobre o que isso quer dizer aqui, mas certamente não significa que o ser humano pode fazer o que quiser com a criação, como veremos em nossa conclusão final. Mas vamos pensar sobre as implicações dessa exegese para a discussão que nos propomos abordar aqui. Como a fertilidade abundante é uma característica da bênção e da comissão divinas aos animais e aos seres humanos, usar esse texto para basear uma teologia e ética do casamento é completamente injustificado. Como a fertilidade abundante tem um propósito mais amplo — encher a terra a fim de sujeitar e dominar sobre a criação — dizer que a fertilidade abundante é um fim em si mesmo é completamente injustificado.

Com essas duas conclusões, quero ampliar um pouco as implicações teológicas. Farei isso trazendo à superfície dois pressupostos que se escondem por trás do uso de Gênesis 1.28 por aqueles que acham que ter filhos é um mandamento e que não obedecê-lo é pecado. O primeiro é que Gênesis 1.28 é sobre casamento. Não há manobra exegética que seja capaz de fundamentar esse pressuposto. Gênesis 1.28 nada tem a ver com casamento, pois não fala sobre o compromisso de um casal diante de Deus. Se Gênesis 1.28 é usado para falar de casamento, então vamos construir uma teologia que fundamente o casamento de animais a partir de Gênesis 1.22. O segundo é que Gênesis 1.28 tem em vista cada indivíduo humano. Ainda que esse pressuposto errado seja mais compreensível que o primeiro, ele ainda é problemático exegeticamente. Gênesis 1.28 tem em vista a espécie humana, assim como Gênesis 1.22 tem em vista cada espécie de animais. Nos dois casos, tanto a bênção divina quanto sua comissão se cumpre pela totalidade da espécie. Gênesis 1.28 é a fala de Deus para adam (Gn 1.27a), que é dividido entre homem e mulher (Gn 1.27b) e não para dois indivíduos específicos, como é o caso de Gênesis 2. Para os que defendem uma comissão para cada indivíduo humano ou casal humano, seria necessário, também, estabelecer que o domínio de todos os animais é uma comissão de cada indivíduo. Pela lógica proposta por aqueles que vêem pecado no não desejo de ter filhos por casais cristãos, também é pecado se esse mesmo casal não sujeita e domina todos os animais. Percebem a falta de sentido disso? Assim, se no fim das contas a humanidade ou outras espécies de animais enchem seus devidos habitats, ainda que 90% dos indivíduos de sua espécie não tenham se reproduzido, está tudo certo.

Diferente de Gênesis 1.28, que nada tem a ver com casamento, Gênesis 2 nos apresenta um caminho melhor para uma teologia do casamento. Logo após a criação da mulher, o homem a vê e cheio de alegria faz um lindo poema (Gn 2.23), que é seguido por uma explicação teológica do casamento: “Por isso, um homem deixa seu pai e sua mãe, se une à sua mulher, e eles se tornam uma só carne” (Gn 2.24, Bíblia de Jerusalém). No único texto bíblico em que se oferece uma razão teológica para o casamento, o enfoque está na relação entre as duas partes e não na procriação. Esse texto é relevante para a discussão em dois detalhes. O primeiro deles é que a ênfase de responsabilidade é colocada no homem. É o homem quem deve deixar a lealdade a sua família (pai e mãe) e dar início a uma nova lealdade, agora a sua mulher.[2] A ênfase deve estar na formação de uma nova lealdade, um novo compromisso de aliança, porque na prática, na cultura do antigo Israel, era a mulher quem deixava sua família para viver com a família do seu marido. Como a lealdade à família era a principal obrigação humana nesse contexto, a afirmação do texto demonstra o nível de compromisso que o homem deve oferecer à sua esposa numa aliança de casamento.[3] O segundo deles é que casamento, ao formar uma nova relação de aliança e lealdade, resulta numa nova “casa”. Percebam que a base da formação da família é um compromisso firme e profundo de lealdade, ou seja, de aliança. Transmissão genética, reprodução, não formam o fundamento do casamento, mas lealdade, sim.[4] Esse novo grupo social formado por uma mudança de lealdade é o que era chamado no antigo Israel de “casa do pai”.[5] Esse grupo social está vinculado não necessariamente pela genética, já que podia incluir pessoas diversas, como trabalhadores e escravos, e sim pela lealdade. Logo abaixo veremos como a reprodução e a criação de filhos era importante para a cultura e a teologia do antigo Israel, mas ela não define o significado de casamento de forma alguma.

FILHOS NA CULTURA DO ANTIGO ISRAEL

Na discussão que rolou nas mídias sociais, eu fiz uma piada irônica. Eu disse que “ter filhos é tão importante na Bíblia que se você, homem, morrer sem eles, o seu irmão deve transar com sua esposa viúva e lhe dar um filho. Isso é bíblico, é mandamento de Deus. Se você não fizer é pecado e Deus pode matar você por isso (Gn 38)”. Essa narrativa de Gênesis 38 fala de como Er, o primogênito de Judá, se casou com Tamar, uma mulher cananeia, faleceu sem ter filhos. Assim, o segundo filho de Judá, Onã, foi ordenado por Judá a ter relações sexuais com Tamar a fim de dar um herdeiro ao seu irmão falecido. Onã certamente aproveitou a oportunidade para ter relações sexuais com sua cunhada, mas na “hora H” ele ejaculava no chão. Deus considerou essa atitude tão maldosa que matou o sujeito (Gn 38.6–10). Essa responsabilidade familiar é tão séria que a temos em forma de lei no Antigo Testamento. Ela se chama lei do levirato e se encontra em Deuteronômio 25.5–10. Outras culturas circunvizinhas a Israel também apresentavam práticas e leis semelhantes.[6]

Outros exemplos que demonstram a importância dos filhos no antigo Israel podem ser dados. Uma esposa, estéril ou não, por exemplo, poderia fazer uso de uma concubina (uma escrava da “casa do pai” que pertence a ela), para gerar filhos que seriam reconhecidos como seus. O caso conhecido de Agar em Gênesis 16 demonstra isso. Sara diz que sua intenção com isso “ser edificada por meio dela” (Gn 16.2, minha tradução). Isso quer dizer que o filho de Agar seria contado como filho de Sara e iria “edificar” uma “casa” em nome de Sara. Existem muitos outros casos desse na Bíblia, mas as mulheres não eram contadas como tendo status de esposa, por isso esse tipo de relação é chamada de “policoito”.[7] Por outro lado, havia no antigo Israel a prática da bigamia — mais comum — e da poligamia. Essa última era mais típica entre reis (Davi e Salomão são exemplos óbvios) e o homens abastados (por exemplo, Gideão é descrito como tendo “muitas mulheres”, Jz 8.30–31), já que poucas pessoas tinham recursos suficientes para administrar uma casa com tantos membros dependentes. Muito mais comum era a bigamia, especialmente em casos em que a primeira esposa era estéril, como no caso de Ana, esposa de Elcana, que também era casado com Penina, a fim de ter filhos (1Samuel 1). A bigamia era comum suficiente para ser legislada em Deuteronômio 21.15–17.[8] Se teologicamente, como vimos em Gênesis 2.24, o casamento é monogâmico, por que essas práticas, que parecem opostas a esse ideal, existiam e eram até aprovadas, e no caso do levirato ordenadas, pelas leis do Antigo Testamento?

Não tem como discutir isso em detalhes, mas vale fazer alguns apontamentos. O valor cultural básico dos filhos no antigo Israel tinha a ver com posteridade. Com isso, eu quero dizer que os filhos preservavam a herança e o nome da família. Assim, a lei da bigamia em Deuteronômio 21.15–17 não é, verdadeiramente, uma lei sobre a bigamia, mas sobre transmissão de herança. Os questionamentos de Abraão sobre não ter filhos também têm a ver com transmissão de herança (Gn 15.3). De forma ainda mais profunda, os filhos eram aqueles que levavam adiante a própria vida de seus antepassados ao preservarem seu nome e herança.

É claro que isso não explica, necessariamente, a ênfase na fertilidade que vemos no Antigo Testamento. Outros fatores entram nessa equação. Começando por um relacionado ao que foi dito sobre levar adiante a vida dos antepassados, deve-se lembrar que a expectativa de vida naquele contexto era bem baixa, entre 30 e 40 anos de idade.[9] Acrescente a isso o fato de 50% dos nascidos morriam no primeiro ano de vida.[10] Numa economia de subsistência, como era a realidade da maioria das pessoas no antigo Israel, fertilidade era uma questão de sobrevivência. Com baixa expectativa de vida, era necessário ter filhos o quanto antes para transmissão de propriedades. Com o número alto de mortalidade infantil, era necessário ter vários filhos a fim de garantir que alguns deles sobreviveriam até a vida adulta. E tudo isso era necessário para garantir a produção de recursos suficientes para a “casa do pai”.[11] No caso do levirato, por trás estão as mesmas preocupações com relação à herança, mas acrescenta-se também uma garantia de segurança socioeconômica para a viúva.

É importante reconhecer esses fatores para entender o texto bíblico e, posteriormente, para fazer aplicações em contextos tão diferentes, como o que vivemos hoje. Mas se considerarmos a conclusão do tópico anterior diante desses fatores, podemos apontar algumas implicações. Fertilidade não serve de fundamento para o significado de casamento, nem é um mandamento para cada indivíduo. A ênfase na fertilidade inclui vários fatores socioeconômicos bastante relevantes para a preservação da estrutural social básica, a “casa do pai”, e, consequentemente, de toda a sociedade do antigo Israel. Isso não quer dizer que os filhos eram valorizados meramente por seus papeis socioeconômicos, como se os pais somente tivessem em vistas motivações egoístas. Podemos pensar sobre isso a partir da responsabilidade dos filhos de cuidar de seus pais na velhice. Esse cuidado faz parte da honra devida aos pais pelos filhos, que vemos em um dos Dez Mandamentos (Êx 20.12). Para aqueles pais que conseguissem superar a expectativa de vida dos 30–40 anos, e chegasse à velhice, seus filhos, como parte da “casa do pai”, era a segurança socioeconômica que uma pessoa na velhice precisava. Essa honra devida aos pais não acabava nem em sua morte, já que os filhos tinha responsabilidade de cuidar dos túmulos de seus antepassados (ver Gn 50.14). Assim como no caso do casamento a relação de pais e filhos é uma de lealdade. O valor dos filhos, portanto, é semelhante ao valor dos esposos, em que existe reciprocidade de lealdade para o bem do outro.[12]

FILHOS HOJE

Pensar no contexto da antiguidade é importante, mas se temos o interesse de pensar numa teologia e uma ética que se aplique a nós, hoje, é necessário atentar para o contexto atual. Já poderíamos começar afirmando que questões de herança, baixa expectativa de vida dos pais, alta mortalidade infantil, produção de recursos em comum na “casa do pai”, não são questões relevantes mais quando pensamos em fertilidade e geração de filhos. Toda essa questão socioeconômica, hoje, está invertida. Filhos não são mais valorizados por sua contribuição socioeconômica para a “casa do pai”. Pelo contrário, pela organização socioeconômica em que vivemos, ter filhos é socioeconomicamente custoso.

Vamos olhar para alguns fatores contextuais atuais que são relevantes quando pensamos sobre ter ou não ter filhos. O primeiro fator relevante é a urbanização. Mesmo na antiguidade, processos de urbanização como o que aconteceu em Judá a partir do século oitavo antes de nossa era,[13] resultam em menor número de filhos. O antigo ditado africano, “é necessário uma vila para criar uma criança”, é bem representativo. Nossa estrutura socioeconômica é um impeditivo sério para a criação de filhos. Isso torna ainda mais verdadeiro a partir dos processos de industrialização do século XIX e XX. É nesse contexto, por exemplo, que na cidade de São Paulo começa a ocorrer um processo de institucionalização da infância, já que as crianças eram abandonadas em suas casas, enquanto os pais trabalhavam nas recém-chegadas fábricas.[14] A demanda por mão-de-obra e o custo de vida alto das cidades exigiram a participação das mulheres no mercado de trabalho, um fator crucial para entender as decisões sobre ter ou não filhos. Enquanto para alguns poucos as motivações profissionais e financeiras para não se ter filhos é mera recusa de não abrir mão de certos luxos da vida, para muitos outros é uma escolha sábia que permite viver com alguma qualidade.

Filhos hoje, assim como no passado distante do antigo Israel, continuam sendo um bem social, ou seja, algo que tem valor para toda a sociedade e que deve ser mantido e encorajado como um valor. Não é isso que está em questão neste estudo. Estamos lidando aqui com a fundamentação bíblica e cristã na formulação de uma teologia e uma ética que dê conta da realidade. Pelo que vimos, a promoção de uma formulação teológica-ética-biológica que vê na procriação uma regra definidora do casamento cristão não corresponde com o texto bíblico, nem considera a distância da realidade do antigo Israel e da nossa realidade.

TEOLOGIA E ÉTICA CRISTÃS PARA INDIVÍDUOS E CASAIS

Acredito que já ficou mais do que claro que não há justificativa no texto bíblico, nem na comparação dos contextos da antiguidade e atual, para a formulação teológica-ética-biológica: o casal cristão que não quiser ter filhos está em pecado. Por trás dessa formulação, em minha opinião, está uma ideologia do casamento e das relações de gênero que não se justifica biblicamente. De forma bem grosseira, defende-se a procriação como fundamento do casamento para impedir que a qualificação de casamento a uniões homoafetivas e para reforçar a noção de complementarismo dos gêneros. Eu não quero entrar nesses dois assuntos espinhosos. Mas que fique claro uma coisa. Cria-se uma suposta teologia bíblica, uma teologia natural e uma teologia ética que julga como pecadores um bom número de bons cristãos, simplesmente, para reagir a uma ameaça a uma visão daquilo que chamam de “cristianismo histórico”. A intenção pode até ter algo de bom, mas como se trata de uma posição reacionária tendo uma ideologia bem definida, o texto bíblico é totalmente usurpado. A consequência, como eu disse, é o a criação de uma lei rígida alienada da realidade atual e da realidade por trás dos textos bíblicos.

Por fim, então, quero propor uma teologia e uma ética cristãs para indivíduos e casais sobre ter ou não ter filhos. Trarei algumas informações teológicas e éticas novas sobre Gênesis 1.28, que não apresentei na parte exegética, e também sobre outras partes da Bíblia e do contexto do antigo Israel.

Uma questão teológica de extrema relevância para esse assunto é que na teologia do antigo Israel, Deus não procria. Isso parece lógico, mas a maioria das divindades das culturas circunvizinhas a Israel são apresentadas como viris, férteis e procriadoras.[15] A procriação é a forma dessas divindades reproduzirem seu poder. Na teologia do antigo Israel, Deus encontra uma forma diferente de reproduzir o seu poder, como veremos logo.

A relação entre Deus e Israel é descrita como um casamento, sendo o profeta Oseias o exemplo mais claro disso. Obviamente, nesse casamento não há filhos por procriação. Eu não quero ser acusado de extrapolar uma metáfora. Não é esse o caso. A relação entre Deus e Israel é caracterizada como um casamento por causa de seu caráter de aliança e, consequentemente, lealdade entre as duas partes, formando um vínculo típico de parentesco. Portanto, apesar de essa aliança, que pode ser comparada a um casamento, não ter o propósito da procriação, ela ainda forma uma família. O que determina a pertencimento ou não nessa família não é a procriação genética dentro do contexto de um casamento. O que determina o pertencimento é a participação nessa aliança pelo compromisso de lealdade que estabelece um vínculo de parentesco entre Deus e a comunidade. Eu poderia falar mais sobre isso no contexto do Antigo Testamento, mas é bom olhar para o Novo Testamento. É somente por meio dessa teologia da aliança e da participação na família de Deus por meio dela é que podemos entender o que acontece no Novo Testamento. Jesus relativiza sua família natural fundamentado numa teologia da aliança. Ele diz que seus irmãos, irmã e mãe são aqueles que fazem a vontade de seu Pai (Mt 12.46–50; Mc 3.31–35; Lc 8.19–21). Ainda mais, somente assim entendemos a teologia paulina da igreja como descendentes de Abraão (Gl 3.25–29), inclusive como seus herdeiros, não por uma linha de sangue, mas por meio de Jesus.

Com isso, eu não quero, de forma alguma, desmerecer o valor da família natural e da procriação como um dos propósitos do casamento. Na verdade, a fertilidade da espécie humana como bênção divina precisa ser apreciada adequadamente. Como vimos, no antigo Israel, e em todo seu contexto cultural, ter filhos, ser fértil, era de suma importância. Isso ganha traços ainda mais significativos diante da alta taxa de mortalidade infantil, perigos de morte da mulher no parto, gravidezes que não vingavam, infertilidade provocada por doenças que não era tratáveis na época e até por desnutrição.[16] É por isso, por exemplo, que em diversas culturas antigas e modernas, desenvolve-se rituais, tratamentos e procedimentos para garantir a fertilidade, um bom desenvolvimento do feto, um bom parto e um crescimento saudável do recém-nascido.[17] Além disso, a fertilidade humana, por exemplo, na cultura mesopotâmica, podia ser motivo de tanto desconforto para as divindades que elas enviaram um dilúvio para matar a todos.[18] O fato de termos em Gênesis 1.28 uma afirmação de que a espécie humana é abençoada com uma fertilidade perene, independente de rituais e favores oferecidos aos deuses, é de suma importância. Sim, a fertilidade é uma bênção e não pode, de forma alguma, ser desprezada como uma futilidade. Contudo, é importante retomar que se trata de uma bênção para a espécie humana e não para cada indivíduo. Portanto, ela não pode servir de lei que julga. Além disso, essa fertilidade, como vimos, é um meio para se cumprir outra comissão divina. E eu quero terminar com uma explicação disso, que irá, também, amarrar essa teologia da aliança que forma família por meio de um compromisso de lealdade.

Quando comparamos Gênesis 1.28 com Gênesis 1.22, fica claro que ser abundantemente férteis não é uma questão moral, nem mesmo é moral a comissão divina de encher os seus devidos habitats. Portanto, nem na fertilidade nem no enchimento dos habitats há a possibilidade de uma fundamentação ética. Em comparação do comissionamento divino entre animais e seres humanos, o complemento final é o que caracteriza, de fato, uma questão moral. Esse complemente final do comissionamento divino para os seres humanos é a sujeição e o domínio de toda a criação. Como já observei, tanto a fertilidade quanto o enchimento do habitat, no caso dos seres humanos, em o propósito final de cumprir com esse comissionamento moral final. E o que é esse comisisonamento moral?

Os dois verbos usados têm conotação real, ou seja, estabelecendo a função da humanidade como uma função régia. A humanidade deve reinar sobre a criação. Por muitos motivos, o relato de Gênesis 1 caracteriza a Deus como sendo o rei da criação. Sendo assim, a humanidade se torna a representação régia de Deus na criação[19] e o interessante é que isso não acontece por meio de uma procriação, como se entendia em outras culturas circunvizinhas a Israel. Deus cria a humanidade à sua imagem e à sua semelhança, uma identidade que capacita e comissiona a humanidade a exercer essa representação régia, não por meio da procriação. O aspecto representativo aponta para o modelo de reinado de Deus que foi exercido no processo da criação em Gênesis 1. O que vemos em Gênesis é o exercício de um reinado que promove a vida, já que o começo da criação é desprovido de vida e o final é caracterizado por uma explosão de diversidade de vida. J. Richard Middleton descreve bem esse modelo de reinado como um exercício que “nutre, capacita e empodera os outros, sem coerção, para o benefício deles, não para o auto-engrandecimento daquele que o exerce”.[20] Portanto, o comissionamento moral dado por Deus à humanidade começa pela iniciativa divina de criar um ambiente que, entre outras coisas, sustenta a vida da humanidade. Isso se dá de tal forma que a resposta humana a esse comissionamento divino se encaixa num compromisso de lealdade com aquele que a comissiona. Essa dinâmica de compromisso de lealdade a partir da criação de um ambiente que promove a vida é exatamente a dinâmica da filiação e do vínculo parental na “casa do pai”. O comissionamento divino moral em Gênesis 1.28 é nada mais nada menos do que o mesmo tipo de representatividade que um filho tem diante de seus pais que o criaram e sustentaram.

Por que isso é importante para essa teologia e ética para cristãos casados ou não? Como isso nos ajuda a entender a questão sobre ter ou não ter filhos? Enquanto o comissionamento moral de Deus em Gênesis 1.28 depende que a espécie humana procrie, ela depende que cada indivíduo procrie. Eu explico e agora já pensando na ética cristã. Nem todo cristão precisa ter filhos. Nem todo casal cristão precisa ter filhos. Contudo, todo cristão e todo casal cristão precisa e tem condições de representar o reinado de Deus conforme o modelo desse reinado em Gênesis 1. Todo cristão e todo casal cristão precisa promover a vida dos outros em resposta ao dom da vida recebido por Deus. Todo cristão e todo casal cristão deve promover a vida do outro a partir da dinâmica de lealdade e solidariedade característica das relações familiares, pois foi isso que o próprio Deus ofereceu a eles.

Qual a vantagem dessa teologia e ética cristã? Em primeiro lugar, ela dá conta do que o texto bíblico diz. Em segundo lugar, ela dá conta do que virá a se desenvolver no Novo Testamento. Enquanto no Novo Testamento não temos nada que fundamente uma teologia da procriação, temos, de forma profunda, uma teologia do reino de Deus como um reino domiciliar, ou seja, um reino de família. Em terceiro lugar, ela dá conta da formação familiar que não se dá pela procriação, como a adoção. A adoção, muito mais do que a procriação, corresponde à teologia bíblica da relação entre Deus e humanidade, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. Em quarto lugar, ela dá conta de indivíduos e casais cristãos que optam por não ter filhos a fim de se dedicar à vocação ministerial. O que vimos sobre Gênesis 2.24 é completamente compatível com casais cristãos que querem e podem até precisar do companheirismo e apoio mútuo proporcionado pelo casamento para exercer seu ministério de forma integral e eficaz. Em quinto lugar, ela faz sentido tanto numa organização social que favorece a procriação, como no antigo Israel, quanto numa que não favorece, como a nossa.

A teologia e a ética que fundamenta o casamento cristão e a procriação, também fundamenta cristãos solteiros e casais cristãos sem filhos que ainda podem, e devem, responder ao comissionamento divino de reinar sobre a criação e espalhar sobre ela pequenos representantes do reinado de Deus. A formação desses pequenos representantes do reinado de Deus não depende de procriação de cada indivíduo ou casal cristão. Contudo, depende, sim, de oferecermos ao outro aquilo que nos foi oferecido por Deus, de forma concreta, ser sua família, vivendo em sua casa. Para nós, cristãos, isso significa desfrutar da participação na família divina por meio do filho, Jesus Cristo, e oferecer a outros essa mesma participação por meio de ações que promovem a vida, conforme o modelo do reinado de Deus. Estar em pecado é desprezar o valor desse dom que recebemos e reproduzirmos pequenas imagens de nós mesmos, seja tendo filhos ou não.

[1] Ver J. Richard Middleton, The Liberating Image: The Imago Dei in Genesis 1 (Grand Rapids: Brazos, 2005.), 225.

[2] Ver Victor P. Hamilton, The Book of Genesis 1–17. New International Commentary on the Old Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1990), 180–1

[3] Ver Gordon J. Wenham, Genesis 1–15. Word Biblical Commentary (Dallas: Word, Inc., 1987), 71.

[4] John Walton está certo ao dizer que uma “linhagem de carne”, já que a mulher foi feita da carne do homem, é mais forte do uma “linhagem de sangue”. Contudo, ele erra ao atribuir um desejo sexual e reprodutivo na união entre o homem e a mulher, já que não há nenhum indício disso no próprio texto de Gênesis 2. O verbo “se unir” Não tem nenhuma conotação sexual, sendo usado para falar do povo de Israel se “unindo” a Deus (por exemplo, Dt 4.4). Ver John H. Walton, Genesis. The NIV Application Commentary (Grand Rapids: Zondervan, 2001), 178–9. David Tsumura acerta ao dizer que Gênesis 2.24 é um ideal de monogamia para companhia e apoio mútuo. Ver David T. Tsumura, “Family in the Historical Books”. In: Family in the Bible: Exploring Customs, Culture, and Context, editado por Richard S. Hess e M. Daniel Carroll R. (Rand Rapids: Baker, 2003), 67.

[5] Uma boa explicação dessa esrutura social é apresentada em Philip J. King e Lawrence E. Stager, Life in Biblical Israel (Louisville: Westminster John Knox Press, 2001), 39–40.

[6] Roland de Vaux cita os hurritas de Nuzu, elamitas e assírios. Ver Rolad de Vaux, Instituições de Israel no Antigo Testamento. Traduzido por Daniel de Oliveira (São Paulo: Vida Nova, 2004), 61.

[7] Kristine Garroway, Children in the Ancient Near Eastern Household (Winona Lake: Eisenbrauns, 2014), 161.

[8] Para mais informações sobre monogamia, poligamia e “barriga de aluguel”, ver de Vaux, Instituições de Israel no Antigo Testamento, 46–8; King e Stager, Life in Biblical Israel, 54–5.

[9] Kristine Garroway, Growing Up in Ancient Israel: Children in Material Culture and Biblical Texts (Atlanta: Society of Biblical Literature, 2018), 224, n. 7.

[10] Garroway, Growing Up in Ancient Israel, 53; King e Stager, Life in Biblical Israel, 41.

[11] Ver Garroway, Children in the Ancient Near Eastern Household, 159; King e Stager, Life in Biblical Israel, 42.

[12] Para mais detalhes sobre a valorização dos filhos no antigo Israel, ver Garroway, Growing Up in Ancient Israel, 267–70.

[13] A típica “casa do pai”, nas cidades em processo de crescente urbanização como Jerusalém e Láquis, dá lugar a famílias nucleares. Ver William M. Schniedewind, How the Bible Became a Book (Cambridge: Cambridge University Press, 2004.), 67.

[14] Existem muitos detalhes cruéis desse processo. Um pouco disso é apresentado em Marco Antonio Cabral dos Santos, “Criança e criminalidade no início do século XX”. In: História das Crianças no Brasil, organizado por Mary Del Priore, 210–221 (São Paulo: Editora Contexto, 1999).

[15] Ver David R. Tasker, Ancient Near Eastern Literature and the Hebrew Scriptures about the Fatherhood of God (New York: Peter Lang, 2004).

[16] Ver Garroway, Growing Up in Ancient Israel, 28–30, 224.

[17] Ver Garroway, Growing Up in Ancient Israel, 30–42.

[18] Tal narrativa se encontra no acadiano Épico de Atrahasis. Ver John H. Walton, Ancient Near Eastern Thought and the Old Testament: Introducing the Conceptual World of the Hebrew Bible (Grand Rapids: Eerdmans, 2006), 51.

[19] Há um bom número de estudos que detalham essa concepção com muitos argumentos em seu favor. Ver Hamilton, Genesis 1–17, 139; Middleton, The Liberating Image, 26; Bernard F. Batto, In the Beginning: Essays on Creation Motifs in the Ancient Near East and the Bible (Winona Lake: Eisenbrauns, 2013), 129; Jon D. Levenson, Creation and the Persistence of Evil: The Jewish Drama of Divine Omnipotence (Princeton: Princeton University Press, 1994), 112.

[20] Middleton, The Liberating Image, 295.

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Caio Peres
Bodega de Bíblia

Mestre em Estudos Bíblicos e interessado em relacionar a Bíblia com tudo o que tem a ver com a experiência humana.