O Sacerdote Prepara a Mesa

Caio Peres
Bodega de Bíblia
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16 min readMay 8, 2024

INTRODUÇÃO

Talvez você já tenha ouvido falar que o homem é o sacerdote do lar. Nessa afirmação, geralmente, temos algo muito positivo e algo muito negativo. O aspecto positivo é que essa afirmação aponta para a responsabilidade do homem de abençoar sua família e contribuir para que ela esteja próxima de Deus. O aspecto negativo é que essa afirmação pressupõe duas coisas extremamente danosas para o homem e sua família. Primeira, ela pressupõe um papel exclusivo do homem, ou seja, somente ele é sacerdote do lar. Segunda, ela pressupõe que a relação entre o marido e a esposa tem uma forte hierarquia onde o homem detém para si poder e autoridade sobre sua esposa. Nenhum desses dois pressupostos condiz com o papel de sacerdote conforme a prescrição bíblica, especialmente no relato do livro de Números. Eu quero convidar vocês a refletir sobre o que significa ser sacerdote do lar a partir da bênção sacerdotal de Números 6:22–27.

SACERDÓCIO COMO BÊNÇÃO

E o SENHOR disse a Moisés: “Diga o seguinte para Arão e os seus filhos: ‘Assim vocês abençoarão os israelitas:

O SENHOR abençoe e guarde você;

O SENHOR brilhe o seu rosto sobre você e tenha misericórdia de você;

O SENHOR levante o seu rosto sobre você e estabeleça para você o bem-estar (shalom).

Assim estabelecerá o meu nome sobre os israelitas e assim eu certamente os abençoo’”.

A bênção sacerdotal é a bênção de Deus. Com isso eu quero dizer que a bênção sacerdotal não é somente um pedido, mas é um reconhecimento de gratidão pelo que já está acontecendo como resultado do trabalho dos sacerdotes.

Só existe um outro lugar na Bíblia onde temos uma descrição do sacerdote abençoando o povo. Essa descrição está em Levítico 9:22: “Arão levantou suas mãos em direção ao povo e certamente os abençoou, assim ele desceu, tendo feito a oferta de purificação, a oferta de ascensão (do verbo olah), e a oferta de bem-estar (do substantivo shalom)”.

Existem muitos pontos de contato entre a bênção sacerdotal de Números 6:22–27 e essa descrição da bênção sacerdotal em Levítico 9:22. As ações de Deus levantando o rosto e certamente abençoando em Números, aqui em Levítico se transformam em ações de Arão, que levanta as mãos e certamente abençoa o povo.

Mas o ponto principal aqui é essa estranha descrição de que Arão abençoou o povo e desceu. Desceu de onde? Se continuarmos a leitura, é dito o seguinte: “Moisés e Arão entraram na Tenda do Encontro, e tendo eles saído, certamente abençoaram o povo, porque foi vista a glória do SENHOR para todo o povo: saiu fogo de diante do SENHOR e consumiu sobre o altar a oferta de ascensão e a gordura. Tendo visto isso, todo o povo gritou e caiu sobre seu rosto” (Levítico 9:23–24). As ofertas de sacrifício que Arão havia preparado estavam sobre o altar, portanto, Arão desceu do altar. A bênção sacerdotal é emitida de cima do altar onde estão preparadas as ofertas de sacrifício.

A bênção sacerdotal em Números 6:22–27 também acontece em meio a ofertas de sacrifícios. Ela aparece como a conclusão de uma sequência de ofertas de sacrifícios que marcam o fim do voto de nazireu em Números 6:1–21, e como introdução para uma sequência de ofertas de sacrifícios que marcam o início do culto do Tabernáculo em Números 7:1–88. Assim, Números 7:1–88 é uma volta no tempo para a inauguração do Tabernáculo e do culto, com a consagração do altar que acontece justamente em Levítico 9:22–24, assim como a ascensão das lâmpadas dentro do Tabernáculo que acontece logo depois de Números 7, em Números 8:1–4.

Para tentar deixar as coisas mais claras como uma narrativa. O povo constrói o Tabernáculo e deixa tudo pronto para começar o primeiro culto a Deus como povo que saiu do Egito (Êxodo 40). Arão, que é o sacerdote, prepara as ofertas de sacrifício no altar (Levítico 9), lá de cima ele emite a bênção sacerdotal (Números 6:22–27), desce e entra no Tabernáculo junto com Moisés (Levítico 9:23–24), onde ele ascende (do verbo olah) as lâmpadas (Números 8:1–4). Uma coisa a gente sabe, então, a bênção sacerdotal tem a ver com ofertas de sacrifícios.

Exatamente por ter a ver com ofertas e sacrifícios, a bênção sacerdotal tem a ver com comida e comunidade. Um aspecto básico, então, do contexto da bênção sacerdotal é a distribuição generosa, justa e abundante de recursos materiais que são o sustento da comunidade da qual ele faz parte. De uma forma bastante fundamental, é exatamente essa distribuição de recursos materiais que garante a todos aquilo que é reconhecido como experiência da ação de Deus na bênção sacerdotal: a segurança, a misericórdia e o bem-estar. Ser abençoado, guardado por Deus, receber dele misericórdia e bem-estar, está tudo compactado nessa experiência do culto em que, diante da presença de Deus, o sacerdote organiza a comunidade de uma forma que todos tenham suas necessidades supridas. Desde as necessidades materiais, passando pelas necessidades sociais, até chegar em suas necessidades espirituais.

A responsabilidade do sacerdote, portanto, é um tipo de serviço religioso, mesmo quando grande parte do que ele faz tenha a ver com comida. Podemos ver isso em duas expressões importantes que aparecem na bênção sacerdotal: “brilhar o seu rosto sobre você” e “levantar o seu rosto sobre você”. As duas expressões têm um significado semelhante. Ambas querem dizer que Deus seja favorável àqueles que se colocarem diante da sua presença nessa experiência cúltica de comunhão de mesa com as ofertas de sacrifícios. Essa atitude favorável de Deus pressupõe, por exemplo, o perdão de pecados, ou seja, sua misericórdia, a possibilidade de se aproximar de Deus e, consequentemente, receber dele tudo aquilo que garante o seu bem-estar.

A expressão “brilhar o seu rosto” é muito significativa. Ela aponta para uma experiência extraordinária da presença de Deus. Mais especificamente, é uma experiência extraordinária da glória de Deus. A relação entre a glória de Deus e uma experiência brilhante, é muito forte na narrativa do encontro de Moisés com Deus, quando seu rosto fica resplandecente porque Deus havia falado com ele (Êxodo 34:29).

Mas o que é interessante aqui é que a bênção sacerdotal remete à inauguração do culto, em Levítico 9, quando o sacerdote havia preparado as ofertas de sacrifício sobre o altar, e fogo sai de diante de Deus para consumir as ofertas. Esse fogo está associado à glória de Deus que aparece para todo o povo (Levítico 9:23). Na verdade, a bênção sacerdotal reconhece que o rosto de Deus brilha sobre todos nessa experiência do culto em que a glória de Deus aparece para todos num ambiente de comunhão de mesa com distribuição generosa, justa e abundante para todos, proporcionada pela organização do sacerdote.

E aqui voltamos para a centralidade da comida e da comunidade. De onde sai o fogo que consome as ofertas de sacrifícios? Sai de diante do SENHOR. O que Arão fez depois de preparar as ofertas de sacrifício sobre o altar? Entrou no Tabernáculo e ascendeu as lâmpadas do candelabro. O fogo que sai de diante do SENHOR tem origem nas lâmpadas do candelabro. E qual era a instrução de Deus sobre as lâmpadas? Que elas deveriam brilhar o lado oposto de diante do candelabro.

Agora vamos ter que ver um pouco de hebraico. A expressão em hebraico na bênção sacerdotal para o SENHOR “brilhar seu rosto” é yaʾerpanayiw. O fogo que sai para consumir as ofertas de sacrifício em Levítico 9:24 tem origem no panê do SENHOR e sua glória é vista (wayyeʾiraʾ) por todo o povo. E a luz das lâmpadas no Tabernáculo em Números 8:2 devem brilhar (yaʾirûּ) do lado oposto do rosto (panê) do candelabro. O brilho do rosto do SENHOR sobre todos na bênção sacerdotal tem sua contrapartida narrativa em Levítico 9:23–24 e sua contrapartida estética na mobília do Tabernáculo.

Dentro do Tabernáculo, antes do Lugar Santíssimo onde estava a arca da aliança, havia três peças de mobília. O candelabro (Êxodo 25:31–40), uma mesa com um incensário (Êxodo 30:1–10) e uma mesa posta com doze pães, pratos e jarras que seriam usados para algumas ofertas (Êxodo 25:23–30; Levítico 24:5–9; Números 4:7). Em primeiro lugar, a mobília e os elementos que fazem parte desse espaço são claramente domésticos, ou seja, o Tabernáculo é um espaço domiciliar. Em segundo lugar, a organização desses elementos indica que o que ficava do lado oposto do candelabro era a mesa com os doze pães. Isso significa que as lâmpadas ou o brilho do rosto do candelabro tinham a função de iluminar os doze pães. É uma representação estética do brilho do rosto do SENHOR sobre Israel. Mas é importante ressaltar que nessa imagem o que temos é pão, comida. A bênção de Deus, seu favor, sua presença, sua glória, está diretamente relacionada com o pão, com a comida, que é distribuída, compartilhada, no culto das ofertas de sacrifício.

O próprio candelabro, até conhecido pelo termo hebraico, menorá, tem a ver com comida. A estética do candelabro é propositadamente semelhante a uma árvore. Ele tem um tronco que se espalha em sete galhos decorados com botões que brotam em frutos (Êxodo 25:31–40). O candelabro é como a vara de Arão que brota com frutos de amêndoa (Números 17:1–13) e como a árvore da vida no jardim do Éden (Gênesis 2:9). E é aqui que a gente entende a importância do pão ou da comida em relação à bênção sacerdotal e a própria glória de Deus. Pão é o sustento da vida e Deus é aquele que sustenta a vida. E se o sacerdote é aquele que possibilita encontros com a presença de Deus, então ele precisa, necessariamente se envolver com a distribuição de comida.

E aqui entra um aspecto muito interessante da função sacerdotal. O sacerdote não é visto como aquele que trabalha para produzir os recursos materiais, ou seja, ele não é provedor, o ganha-pão. Não. O sacerdote é aquele que prepara o alimento, põe a mesa, e distribui a comida servindo os que estão à mesa. E ainda lava a louça depois (Números 4:16). Para adiantar um pouco o que vou falar em seguida, o sacerdote é a dona-de-casa da casa de Deus, e nessa casa as pessoas e os recursos materiais são organizados de tal forma que todos tenham acesso à glória de Deus e ao sustento necessário para viver, ou seja, tudo é organizado para que todos possam se sentar à mesa de Deus.

Eu não quero dizer, com isso, que a responsabilidade do homem na família é, necessariamente, cozinhar e lavar a louça, em vez de trabalhar fora de casa. A preocupação com essa divisão de tarefas baseadas em gênero desvia a atenção para o que importa de verdade. Papeis de homens e mulheres, maridos e esposas, pode variar de cultura para cultura, família para família. Não é isso que caracteriza uma família “bíblica” ou família “de Deus”, nem uma masculinidade “bíblica” ou um homem “de Deus”. Se o sacerdócio é que o deve caracterizar o papel do homem, do marido, na família, esse é um compromisso de distribuição e compartilhamento de recursos, funções e autoridade entre todos os membros para o bem-estar da família. Esse é um serviço religioso e não um exercício de poder humano. O que caracteriza a função do sacerdote é esse compromisso com o sustento da vida familiar por meio da distribuição e compartilhamento de responsabilidades e recursos materiais a fim de que todos tenham suas necessidades supridas. Quando isso acontece, estamos diante da bênção sacerdotal, que nada mais é do que a experiência da proteção, do favor, da misericórdia, da própria glória de Deus. E, para ser bem claro, isso, inevitavelmente, implica em uma responsabilidade e envolvimento profundo com a vida da família e as tarefas domésticas. Não há como fugir disso.

SACERDÓCIO, INSTRUÇÃO E INCLUSÃO

Ainda precisamos dizer mais sobre a função do sacerdote na comunidade, que pode nos ajudar a entender o papel do homem ou do marido na sociedade e na família. Dentro da igreja, o sacerdócio do homem na família é geralmente visto como uma posição de autoridade que coloca o homem acima da esposa. Como acabei de falar, o sacerdócio é um serviço religioso e não um exercício de poder humano. Não existe espaço para hierarquia aqui. Além disso, estabelecer o sacerdócio como uma autoridade acima de outros membros da família ou da comunidade vai contra outro papel importante do sacerdócio no relato bíblico.

Uma função fundamental do sacerdote era o ensino. E aqui não é ensino intelectual, ou seja, transmissão de informação. Mas, sim, ensino integral, ou seja, missão de formação. O sacerdote tinha a tarefa de formar um povo santo, um reinado de sacerdotes (Êxodo 19:6; cf. 1 Pedro 2:9). Tudo o que a gente viu até aqui sobre a função do sacerdote na distribuição generosa, justa, e abundante de recursos materiais entre a comunidade no culto como experiência de se sentar à mesa na casa de Deus, é exatamente o que eu estou chamando de missão de formação. É por meio desse culto prático, material, ritual, que o sacerdote contribui para a formação de um povo santo e um reinado de sacerdotes, ou seja, a formação de um povo em que todos são sacerdotes, porque todos servem essa função de distribuição de recursos materiais numa experiência da presença de Deus. A função do sacerdote não é reivindicar sua posição em relações de hierarquia, mas formar outras pessoas para tomar o seu lugar, por assim dizer.

E o próprio texto bíblico que reproduz a bênção sacerdotal indica as implicações dessa missão de formação que o sacerdote tem. Como já disse, a bênção sacerdotal introduz uma sequência de ofertas em Números 7 e conclui o fim do voto de nazireu em Números 6. Nos dois casos, o que temos são os israelitas comuns sendo formados segundo o modelo do sacerdote, ou seja, são os israelitas comuns agindo como sacerdotes. O caso de Números 7 é um pouco mais simples, então vamos começar por ele. Nesse capítulo nós vemos as lideranças de cada tribo de Israel juntando ofertas a serem entregues nas mãos dos sacerdotes que iriam utilizá-las para a inauguração do culto, lá em Levítico 9. São as lideranças tribais distribuindo recursos materiais a fim de proporcionar uma experiência da presença de Deus no culto em que todos podem se sentar à mesa.

Mas o caso do voto de nazireu em Números 6:1–21 é bem mais interessante e é um exemplo claro de como a função sacerdotal não era para ser exclusiva de um grupo que detinha poder e autoridade, mas deveria ser distribuída a todos.

O voto de nazireu era um voto de extrema consagração a Deus. Ele consistia em não beber vinho ou bebida forte qualquer, ou mesmo consumir qualquer coisa relacionada com produtos da vinha, nem mesmo a casca ou a semente da uva (Números 6:3–4). Outra parte fundamental do voto de nazireu é não cortar o cabelo que é, surpreendentemente, chamado de “santo ao SENHOR” (la-yhwh qadosh, Números 6:5). Por fim, o último elemento do voto de nazireu é não chegar nem perto de um cadáver, mesmo que seja o cadáver de algum familiar próximo (Números 6:6–7).

Todos esses elementos do voto de nazireu são característicos das exigências feitas para os sacerdotes, até mesmo o sumo-sacerdote (ver Levítico 21:11; Ezequiel 44:20). Essa relação entre o voto de nazireu e o sacerdócio é bem marcada pela caracterização do cabelo e a forma como o voto é concluído com ofertas de sacrifício.

Quanto ao cabelo, o termo nazireu usa a mesma raiz hebraica para coroa (נזר). De certa forma, o voto de nazireu é sobre ter uma coroa, o cabelo, como sinal de consagração extraordinária a Deus. Um dos apetrechos do sumo-sacerdote era a tiara, que serve como um tipo de coroa de ouro que ficava na testa do sumo-sacerdote (Êxodo 28:36–38). A tiara do sumo-sacerdote tinha uma gravura com os dizeres: “santo ao SENHOR” (qodesh la-yhwh, Êxodo 28:36). Já o cabelo do nazireu é qualificado como “santo ao SENHOR” (ַ la-yhwh qadosh, Números 6:5). O cabelo do nazireu é a sua coroa de sumo-sacerdote.

Já com relação à conclusão do voto, eu não quero entrar os detalhes dos sacrifícios que compõem esse culto, mas é importante destacar duas coisas. Primeiro, o conjunto de sacrifícios que conclui o voto de nazireu (Números 6:14–15) é semelhante ao conjunto de sacrifícios que marcam a consagração inicial dos sacerdotes em Êxodo 29, que é colocado em prática em Levítico 8–9. Basicamente é um culto composto por todos os tipos de sacrifício de Levítico 1–6. A parte vegetal da oferta de comunhão é descrita em detalhes para destacar a presença de pães, comidas feitas com farinha e bebidas. Isso já conecta bem com a relação dos sacerdotes, a presença de Deus brilhando sobre Israel, e os pães da presença dentro do Tabernáculo.

O segundo elemento importante do culto que conclui o voto de nazireu é que o seu cabelo é cortado e colocado no altar de sacrifícios junto com a oferta de bem-estar (Números 6:18). Por quê? Porque a oferta de bem-estar é aquela em que o ofertante e os seus convidados comem com Deus e com os sacerdotes. O cabelo do nazireu, como sua consagração extraordinária de santidade ao SENHOR, é o fundamento dessa experiência de comunhão de mesa da casa de Deus, a partir da distribuição generosa, justa e abundante de recursos materiais. O culto de conclusão do voto de nazireu é um grande banquete para todo o povo, que é financiado pelo nazireu. É importante destacar aqui, ainda, que a ênfase nos grãos e no pão acabam sendo uma ênfase no benefício dos mais pobres nesse banquete, já que o pão era o elemento mais básico da dieta. Aqui, portanto, o nazireu está cumprindo o papel do sacerdote de preparar a comida, pôr a mesa, e servir a comida a todos os convidados que estão ali para ter uma experiência da presença de Deus, especialmente com a inclusão dos mais pobres.

Um israelita comum podia viver de forma extraordinariamente consagrada, mesmo que seja por um período de tempo, a ponto de cumprir a função do próprio sacerdote. Isso é tão forte que é até possível dizer que na conclusão do voto de nazireu, com a oferta de sacrifícios junto com o seu cabelo, é o nazireu quem promove o perdão de pecados, já que a descrição da tiara do sumo-sacerdote, com os dizeres “santo ao SENHOR”, está associada com a função do sumo-sacerdote de “carregar o pecado cometido contra as coisas consagradas que os israelitas houverem consagrado em todas as suas santas ofertas” (Êxodo 28:38).

O voto de nazireu, portanto, é a concretização de que o modelo do sacerdócio cumpriu a sua missão de formação. O sacerdócio não é um ofício de exclusividade de status, poder e autoridade, é um serviço religioso para a promoção do acesso de todos à mesa de Deus, a presença de Deus, a fonte que sustenta toda a vida, portanto, acesso aos recursos materiais que sustentam a vida. E eu quero destacar aqui o seguinte. Sim, o sacerdócio no texto bíblico é exclusivo para homens. Mas o voto de nazireu, que propõe a possibilidade de pessoas comuns se tornarem sacerdotes, é intencional e explícito ao dizer que é um voto que homens e mulheres podem fazer. Todo esse modelo do sacerdócio, mesmo o sacerdócio do lar, como vamos ver agora, não é algo definido por gênero. Homens e mulheres, na sociedade, maridos e esposas, na família, têm a responsabilidade de cumprir esse papel. Não há diferença sobre essa função e homens e mulheres podem e devem desempenhá-la de diversas formas. O que existe aqui não é um modelo de hierarquia de autoridade, mas de compartilhamento de serviço.

É necessário que seja assim a fim de o sacerdócio alcançar seu propósito maior de ampliar o máximo possível o acesso de todos à vida, à presença de Deus, à mesa de Deus, a sua proteção, sua misericórdia, seu favor, o bem-estar, o seu brilho glorioso sobre todos. E é por meio da distribuição da função sacerdotal para todos os membros do povo, e não no seu exercício exclusivo, que esse propósito é garantido. Enquanto o sumo-sacerdote vivia essa consagração extraordinária durante seu serviço cúltico no Tabernáculo, os nazireus, homens e mulheres, viviam essa consagração na vida comum, na sua casa, com sua família. O voto de nazireu é uma representação de como a presença de Deus no Tabernáculo não deve ser limitada àquele espaço especial, assim como o sacerdócio não deve ser limitado a um grupo especial. O propósito é distribuir, irradiar a presença divina para tudo quanto é canto. A mesa de Deus está no culto, na igreja, e está em cada casa onde a presença de Deus se faz presente. O sacerdócio ou sumo-sacerdócio está na igreja e em cada casa. Trata-se de um modelo a ser seguido, formado e distribuído entre todos, e não um patamar de exclusão e privilégio.

É por isso que a bênção sacerdotal não aparece na conclusão da consagração dos sacerdotes lá em Levítico 8, e sim aqui em Números 6, na conclusão da consagração do voto de nazireu. É também por isso que a bênção sacerdotal é concluída com a expressão do propósito da função sacerdotal: “assim estabelecerá o meu nome sobre os israelitas”. Sabe onde o nome de Deus é estabelecido? Num santuário, um templo, um lugar que serve de habitação de Deus (Deuteronômio 12:5). A bênção sacerdotal aponta para o propósito de tornar o povo de Deus inteiro num grande santuário, um grande templo onde Deus habita, onde seu nome é estabelecido. Assim, cada casa se torna um santuário de Deus e cada mesa é um altar para Deus.

Aqui, voltamos para o jardim do Éden e a árvore da vida, representada na vara do sumo-sacerdote, Arão, e no candelabro dentro do Tabernáculo que faz brilhar a glória de Deus sobre os 12 pães. A função sacerdotal de distribuição de recursos materiais, de distribuição dessa própria função, como forma de fazer irradiar, brilhar a glória de Deus sobre todos, é uma forma de nos formar como um santuário de Deus, onde temos acesso à vida, nos levar de volta para esse lugar, o jardim do Éden, onde podemos ter comunhão com Deus.

Se o sacerdócio é visto como retenção de autoridade e poder, como status e prestígio, como privilégio exclusivo de acesso à presença de Deus e a recursos materiais diversos, então esse não é um sacerdócio de formação da sua casa, da sua comunidade, do seu povo, como um povo santo, um reinado de sacerdotes, um santuário, um jardim do Éden. É só um sacerdócio que torna a sua casa, a sua comunidade, o seu povo, num pequeno reino pessoal seu que nada tem a ver com Deus e com a vida que Deus quer promover. É somente um reino mesquinho para quem tem o “rei na barriga”, uma expressão bem apropriada para o tipo de reivindicação de poder e autoridade por aqueles que desejam, anseiam e detém todos os recursos para si mesmo, para a sua própria barriga, em vez considerar a necessidade e o bem-estar dos outros. Sacerdócio e autoridade exclusiva não combinam, na verdade estão em oposição. O sacerdote prepara a comida, põe a mesa, serve os convidados; o sacerdote distribui sua função aos outros. O sacerdote presta serviço aos outros e não exerce poder sobre os outros. O sacerdote está mais perto de uma dona de casa do que de um chefe de empresa.

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Caio Peres
Bodega de Bíblia

Mestre em Estudos Bíblicos e interessado em relacionar a Bíblia com tudo o que tem a ver com a experiência humana.