Quem Merece Comer? 2 Tessalonicenses 3:10, Políticas Sociais e Evangélicos Conservadores

Caio Peres
Bodega de Bíblia
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8 min readApr 5, 2024

Quem já discutiu sobre Bíblia, política e justiça social com evangélicos conservadores certamente se deparou com aquele texto-prova: “se alguém não quer trabalhar, também não coma” (2 Tessalonicenses 3:10). Mais recentemente, Nikolas Ferreira, deputado e líder evangélico, participou de um podcast e abusou desse texto para defender sua ideologia política de austeridade nas áreas sociais, de meritocracia e expressar seu preconceito contra classes sociais baixas. Eu digo que é um abuso do texto, que serve de texto-prova, porque não há nenhum esforço interpretativo. A frase é usada como um tipo de máxima, um aforismo, que contém a verdade em si mesma. É a famosa frase de para-choque de caminhão. É muito interessante ver a reação dessas pessoas quando a gente inverte as coisas e abusa do texto para criticar os ricos. Sabe aquela frase de coach financeiro, “deixe seu dinheiro trabalhar por você”? Quando a gente fala que rico investidor capitalista, pela mesma máxima, não deveria comer, eles enchem a boca para nos chamar de marxista. Mas eles, ao fazer a mesma coisa, do outro lado, acham que é a própria Bíblia que afirma o que eles afirmam. Eles são bíblicos e os outros não.

Logo depois de falar que quem não quer trabalhar não deve comer, Paulo explica melhor a situação: “Porque ouvimos dizer que alguns entre vocês vivem desocupados, não querem trabalhar, e se intrometem na vida alheia” (2 Tessalonicenses 3:11, A21). Em outra versão temos: “Porquanto ouvimos que alguns entre vós andam desordenadamente, não trabalhando, antes fazendo coisas vãs” (ACF). Para delírio de conservadores e neoliberais, temos aqui o termo “desocupados”, em outras versões “ociosos” (NVI), e a ideia de fazer “coisas vãs”. Para ser claro, esse pessoal lê isso e pensa na ética de trabalho protestante ou meritocracia.[1] Acham que Paulo é neoliberal e está criticando assistencialismo estatal, porque isso reforça a vagabundagem. A Bíblia está do lado deles. Será?

O abuso desse texto começa por problemas de tradução. É inevitável, mas traduções bíblicas são ou ideologicamente determinadas ou irresponsavelmente ingênuas. Os dois termos importantes no v. 11 são esses traduzidos como “desocupados” (ἀτάκτως) e “coisas vãs” (περιεργαζομένους). Mas o versículo inteiro tem outro sentido com uma tradução melhor e mais cuidadosa: “Ouvimos dizer que alguns perambulam entre vocês desordenadamente, sem trabalhar, mas dando trabalho”. Em vez de desocupados ou ociosos, a questão é a desordem. Logo abaixo veremos o motivo dessa questão da des/ordem ser importante. Em vez de coisas vãs ou se metendo na vida dos outros, a questão é dar trabalho aos outros, ser um peso para elas.[2] Este segundo termo forma um jogo de palavras importante. Paulo diz que existem pessoas que não ἐργαζομένους (“trabalham”), mas que περιεργαζομένους. Trata-se da mesma palavra, com a adição da preposição περι de lugar como sufixo. Com isso, de forma literal, o termo significaria “rodear o trabalho”, mas tendo a conotação de uma pessoa intrusiva, que se mete na vida dos outros.[3] Para manter o jogo de palavras, optei por “trabalhar e dar trabalho aos outros”. É interessante que o uso da preposição de lugar, περι, também aponta para uma pessoa que anda por aí, de um lugar ao outro. Isso se torna significativo porque Paulo identifica essas pessoas como quem “perambula” ou “anda” (περιπατοῦντας), termo que também formada com o sufixo περι. Paulo não está falando, como praticamente todas as traduções e comentaristas assumem, de pessoas das comunidades de seguidores de Jesus de Tessalônica. Paulo está falando de pessoas que estão de passagem por entre os seguidores de Jesus de Tessalônica.

Agora, sim, a gente pode entender a crítica que Paulo está fazendo e porque ele deu ordens aos tessalonicenses para não darem de comer a quem não trabalhar. Paulo não está falando de generosidade e caridade aos necessitados, mas sim da relação correta, a ordem, entre pregadores itinerantes e a comunidade de fé, assim como da ética do pastorado. Todo o fundamento de Paulo para sua crítica a tais pessoas desordenadas (ἀτάκτως) que não trabalham, mas dão trabalho aos outros, é o exemplo de pastorado dos apóstolos, o que Paulo chama de “tradição” (2 Tessalonicenses 3:8). Ele diz que nunca comeram a comida dos outros, mas trabalhavam dia e noite com esforço e fadiga para não ser um peso para ninguém. A ética do pastorado modelada por Paulo é a de que o pregador nutre e cuida da comunidade de fé em vez de ser um peso para ela. Essa é a relação certa, ou a ordem correta das coisas, o que inclui as relações de trabalho e financeira. A inversão dessa relação é o que Paulo vai chamar de “desordem”. Paulo está criticando pregadores de forma geral, mas especialmente os itinerantes (lembrem de “perambulando entre vocês” e o uso de περι), que abusavam da hospitalidade e da generosidade das comunidades de fé em Tessalônica para seu benefício financeiro. E, para Paulo, o trabalho de pregação e pastorado não conta como trabalho que justifique receber sustento financeiro integral da comunidade de fé. Para Paulo, trabalhar é fazer algo que gere renda, especialmente trabalho manual.[4] O trabalho religioso que dependente do apoio financeiro da comunidade de fé, sem ser acompanhado de trabalho “secular”, para Paulo, é uma forma de sacrilégio ou heresia, já que foge da tradição apostólica. O conceito de “tradição” em Paulo é muito forte, não se trata meramente de prática comum, mas de um fundamento da fé (cf. 1 Coríntios 15:3).[5] A pessoa se ocupa das coisas “de Deus” abusando das relações humanas para seu próprio benefício.[6] Esses são os desordeiros que não devem receber comida da comunidade de fé, porque não trabalham.

É interessante que a história da recepção desse texto é unânime e incontestável a esse respeito. Do documento cristão do fim do primeiro século ou começo do segundo, o Didaquê, passando por Gregório de Nissa, João Crisóstomo, Agostinho, Tomás de Aquino, John Wycliffe, Lutero e até Calvino, todos entendem que Paulo está criticando lideranças eclesiásticas que se beneficiam financeiramente das comunidades de fé.[7] Como exemplo, posso citar John Wycliffe, famoso tradutor bíblico do século XIV. Ele diz: “existem falsos pastores… que não trabalham eficazmente nesse ofício, para quem a afirmação do apóstolo poderia ser aplicada: ‘quem não trabalhar, que não coma’ (2 Ts 3:10)” (Pastoral Office 9, 39).[8] Mais ainda, alguns deles afirmam que o verdadeiro pastor trabalha a fim de ter renda para ajudar os pobres e necessitados![9] João Crisóstomo, um dos pais da igreja (século IV), por exemplo, diz que os “desordeiros” se esquecem que é mais abençoado dar do que receber.[10] Enquanto isso, o famoso comentarista puritano do século XVII, Matthew Poole, diz comentando o texto paulino: “Deus exige que… supramos nossas necessidades… e também as necessidades do pobre”.[11] Os que agem de outra forma, de acordo com a história da recepção desse texto, são falsos pregadores e líderes ou, para ser mais drástico, nas palavras de Jan Huss, precursor da reforma, são “traficantes de coisas santas” sendo esta a terceira heresia cristã depois da apostasia e da blasfêmia (Sobre Simonia, 201).[12]

Percebam a ironia. O verdadeiro líder cristão, de acordo com o modelo refletido em 2 Tessalonicenses 3:10–11, trabalha para se sustentar, não ser um peso para os outros, e ter recursos suficientes para ser generoso e praticar a caridade. Essa última parte que aparece na história da recepção do texto paulino também faz parte do argumento de Paulo em 2 Tessalonicenses 3:6–15. Paulo muda o alvo da sua fala no v. 13, deixando sua crítica contra pregadores e pastores itinerantes para falar com os irmãos tessalonicenses dizendo: “Quanto a vocês, irmãos, não se cansem de fazer o bem” (2 Tessalonicenses 3:13).[13] Paulo não quer que os irmãos de Tessalônica pensem que sua crítica à ética de trabalho de certos pregadores e pastores leve os irmãos a deixarem de ser generosos e caridosos com os pobres e necessitados, ou mesmo com outros pastores e pregadores que não são desordeiros. Em Gálatas 6:6–10, Paulo usa a expressão “fazer o bem” (τὸ καλὸν ποιοῦντες, v. 9) parecida ao “fazer o bem” (καλοποιοῦντες) de 2 Tessalonicenses 3:13, que é um termo único no Novo Testamento. Em Gálatas Paulo está defendendo que pregadores e pastores recebam recompensa financeira pelo seu trabalho (v. 6) e para encorajar a caridade de forma geral (v. 10).[14]

A ironia de toda essa história é que 2 Tessalonicenses 3:10 não está condenando os pobres que recebem caridade, mas sim líderes religiosos que se beneficiam financeiramente de comunidades de fé, sendo um peso para tais comunidades, e que não modelam uma vida cristã generosa com os pobres. O texto bíblico está falando exatamente de gente como Nikolas Ferreira. Ele acha que o texto é uma arma sendo apontada contra evangélicos com o mínimo de consciência social e contra pobres beneficiários de programas sociais do Estado. Mas, a verdade é que o texto aponta para gente como ele, dizendo: “herege e falso líder”.

NOTAS

[1] Ver Beverly Roberts Gaventa, First and Second Thessalonians. Interpretation (Louisville: Westminster John Knox Press, 1998), 128.

[2] Shogren afirma: “Mais uma vez, devemos insistir que o texto grego ainda não diz nada sobre ‘vadiagem’, ‘preguiçoso’, ‘desperdiçar tempo’ ou ‘não fazer nada a não ser’; tudo isso é eisegesis, uma leitura imposta ao texto”. Ver Gary S. Shogren, 1 and 2 Thessalonians. Zondervan Exegetical Commentary on the New Testament. Grand Rapids: Zondervan 2012).

[3] Ver Gordon D. Fee. The First and Second Letters to the Thessalonians. The New International Commentary on the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 2009), 334.

[4] ἐργάζεσθαι é um verbo tipicamente relacionado com trabalho manual ou braçal, por exemplo, 1 Coríntios 4:12; Efésios 4:28; 1 Tessalonicenses 4:11.

[5] Cf. Gaventa, First and Second Thessalonians, 129–30.

[6] Ver essa possibilidade de significado para o próprio termo περιεργάζομαι, que eu traduzi como “dar trabalho”, em Shogren, 1 and 2 Thessalonians.

[7] Ver Anthony C. Thiselton, 1 and 2 Thessalonians through the Centuries (Oxford: Wiley-Blackwell, 2011), 265–74.

[8] Citado em Thiselton, 1 and 2 Thessalonians through the Centuries, 269.

[9] Especificamente, Gregório de Nissa, Tomás de Aquino, Matthew Poole e Matthew Henry.

[10] Citado em Thiselton, 1 and 2 Thessalonians through the Centuries, 267.

[11] Matthew Poole, Commentary on the Holy Bible, vol. 3 (Edinburgh: The Banner of Truth Trust, 1963 [original, 1685]), 770.

[12] Citado em Thiselton, 1 and 2 Thessalonians through the Centuries, 269.

[13] A mudança de audiência é nítida. Ver Shogren, 1 and 2 Thessalonians.

[14] “Fazer o que é bom” (καλοποιοῦντες) parece bem generalista, podendo incluir vários comportamentos e virtudes (Gaventa, First and Second Thessalonians, 129). Mas seu uso em Gálas 6:9 parece indicar algo mais específico, como apontado acima. Paulo está, de fato, encorajando os tessalonicenses a continuar sendo generosos e caridosos com os necessitados, incluindo os que se dedicam ao ensino religioso. Mas, diante do contexto maior de 2 Tessalonicenses 3:6–15, essa generosidade e caridade não deve sustentar pregadores e pastores aproveitadores e abusadores que não trabalham e não são eles mesmos generosos e caridosos.

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Caio Peres
Bodega de Bíblia

Mestre em Estudos Bíblicos e interessado em relacionar a Bíblia com tudo o que tem a ver com a experiência humana.