Ressurreição, Reprodução da Vida e Adoção

Caio Peres
Bodega de Bíblia
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7 min readApr 1, 2024

Eu não esperava que essa fosse minha experiência de Páscoa, no domingo da ressurreição, sentado no banco da igreja, vendo uma bebê que me lembrou de quando eu era bebê. Como quase sempre acontece, as experiências espirituais que tenho tido na igreja pouco têm a ver com os louvores, orações e pregações em si mesmas. Alguma coisa, no meio disso tudo, quase que de forma aleatória e despretenciosa, acaba me conduzindo para mais perto de Deus.

Durante o louvor, estava sentado com minha esposa atrás de uma nova família da igreja que acabou de ter uma bebê. Pequenina, perfeita, linda, com os olhinhos brilhantes e um cabelo espetadinho. Ela é a cara do pai, mas também me lembrou de como eu era bebê. Eu tinha uns olhinhos meigos mas, mais importante, eu tinha um cabelo todo espetado que ainda perdura, firme e forte até esses mesu quarenta anos de idade (nem sempre consigo controlar o redemoinho que fica atrás na minha cabeça, e minha franja ainda fica em pé sem eu precisar passar gel ou algo assim).

Talvez nem todos saibam, mas eu e minha esposa decidimos formar a nossa família pela adoção e não pela reprodução biológica. Foi uma decisão consciente, mas também um resultado natural, já que nossos corpos nunca foram capazes de reproduzir. Diferente da minha esposa, eu nunca tive momentos em que senti algum sofrimento por não ter passado pela experiência da reprodução biológica. Mas, hoje, vendo aquela bebê, a cara do pai, mas que me lembrou de como eu era quando bebê, mexeu comigo. Senti, pela primeira vez, a dor de saber que nunca vou segurar nos meus braços um pequeno Caio, com olhinhos meigos, cabelo arrepiado e as notórias orelhas de abano. Também nunca vou segurar uma pequena Dot (minha esposa), com seus olhinhos azuis, buchechas rosadas e cabelinho fino e dourado (eu senti algo semelhante, mas foi bem positivo, segurando minha sobrinha, na Holanda, que era muito parecida com a Dot quando era bebê). Hoje eu senti um vazio. Minha vida nunca será reproduzida de uma forma direta, objetiva, clara, uma expansão de quem eu sou biologicamente na vida dos meus filhos. Eu sabia disso; eu abracei essa verdade há muito tempo. Mas nunca tinha sentido esse vazio antes.

Isso foi especialmente significativo hoje, porque estávamos ali no culto para celebrar a ressurreição, a forma divina de re-produção da vida. E ali, naquele banco de madeira, quase que numa experiência à parte do que acontecia à minha volta, eu tive um lampejo rápido sobre ressurreição, reprodução da vida e adoção. Eu deveria ter prestado mais atenção naquela experiência, mas deixei passar. Só que o culto não acaba com o amém do pastor. Enquanto perambulava pela igreja, em busca de alguém para conversar e administrando o comportamento disruptivo do meu filho mais velho, encontrei alguém. Antes de conversar com ele, porém, uma jovem muito querida que estava do lado dele me perguntou de sopetão: “como foi sua experiência de louvor hoje?” Pronto, uma pergunta que ressuscitou aquele lampejo, mas que não deu para elaborar na hora. A pergunta e a experiência tomaram conta da minha mente e do meu coração pelo resto do dia até que eu pudesse escrever esse texto aqui.

Eu já escrevi antes sobre como eu penso a respeito da reprodução da vida de Deus em nós e a adoção como sendo mais próximas do que a reprodução da vida biológica (ver aqui). Parece-me que a forma como Deus reproduz sua vida em nós se assemelha um pouco com a reprodução da vida na adoção. Deus e nós não somos biologicamente ligados. Nosso laço de parentesco, de relação e vínculo, existe por meio de uma iniciativa de graça que é capaz de reproduzir a vida no cuidado, na nutrição, na proteção, no compartilhar, na comunhão. Somos semelhantes a Deus, mas não somos Deus. Existe um acento forte na nossa relação com Deus que aponta para semelhança e proximidade e, ao mesmo tempo, distinção e separação. Obviamente que toda relação entre seres diferentes, mesmo entre filhos biológiccos e seus pais, por mais próximos que sejam até em sua bagagem genética, se dá na alteridade, ou seja, na distinção entre o Eu e o Outro. Contudo, acredito que é na experiência da adoção que nos aproximamos mais de como se dá a relação de Deus conosco, porque a alteridade é exarcebada e o vínculo parental é completamente dependente de laços de amor. Hoje, o vazio que eu senti por não poder segurar no meu colo um pequeno Caio ou pequena Dot pode ser uma experiência compartilhada com o próprio Deus que somente pode segurar em seu colo criaturas como eu e você, tão diferentes de si mesmo.

Mas hoje essa reflexão girou em torno da ressurreição. Mais uma vez, acredito que exista algo de muito belo na conexão entre ressurreição e adoção como formas de reprodução da vida que não seja a forma biológica. A ressurreição é uma forma de re-produção da vida que não é a forma comum, a expansão da própria vida na vida dos filhos biológicos. A ressurreição é uma afirmação de que a re-produção da vida de Deus é forte o suficiente, potente, para re-produzir a si mesmo num corpo mortal. Não se trata de uma re-produção natural, mas uma força divina além do natural. É claro que a força dessa re-produção de vida passa pela morte, um tipo de vazio que reconhece a força do que é natural e de como se dá a vida daqueles que escolhem o caminho daquilo que não é natural. A escolha de Jesus pela re-produção da vida não foi pela transmissão genética de filhos biológicos que levariam adiante, expandiriam sua própria vida. Nessa escolha, existe um vazio, um sentimento de que a experiência natural parece ser a verdadeira realidade. Mas nesse vazio há espaço para algo que não é natural, uma re-produção da vida para além da biologia.

Hoje, naquele vazio que senti pela forma de re-produção da vida pela adoção e não pela biologia, pude encontrar a força da ressurreição também. Existe na adoção uma re-produção da vida que não segue a realidade natural. Não se trata somente da re-produção da vida nos filhos adotados, que em grande medida passaram por experiências em que a morte os tocou, mas a vida foi a força mais potente. Há também a re-produção da vida nos pais adotivos, que muitas vezes possuem corpos incapazes de reproduzir. Eu diria que a vida dos filhos adotivos é re-produzida nos pais adotivos, mas, também, a vida dos pais adotivos é re-produzida nos filhos adotivos. E acho que aqui, nessa re-produção mútua de vida, está a relação forte entre ressurreição e adoção. Na ressurreição, a re-produção da vida de Deus no ser humano parece atingir o ápice, porque também aqui temos a re-produção da vida humana no próprio Deus. A ressurreição é a afirmação não somente de que a vida de Deus pode ser plenamente re-produzida no ser humano, mas também que a vida dos ser humano pode ser plenamente re-produzida em Deus. Na ressurreição, a vida humana faz parte de Deus e a vida de Deus faz parte da vida humana e nada disso acontece de forma natural, biológica. É o poder do amor e da graça operando na alteridade, no Outro, fazendo com que este seja o mas próximo possível do Eu, e vice versa. Adoção e ressurreição não são sobre o Eu se impondo sobre o Outro, mas um Encontro que atinge a ambos, muda a ambos. Não é mais o Caio reproduzindo o pequeno Caio, mas o Caio encontrando o Mikael e a Ruth, re-produzindo sua vida neles e deixando que a vida deles seja re-produzida nele. A questão é que para Deus e para os pais adotivos, a vida do Outro que é reproduzida em nós, traz consigo uma história carregada de dor e sofrimento, de morte. Re-produzir a vida, aqui, custa e custa muito. O vazio de não poder reproduzir um pequeno Caio não se compara com a dor de re-produzir em mim uma vida carregada de força e resiliência, mas também de dor e sofrimento. Mas não há outro caminho. A ressurreição dá sentido e acontece neste chão da vida humana em sua experiência mais sofrida. E se a vida humana é re-produzida no próprio Deus, o próprio Deus carrega em si, essa dor e esse sofrimento. Deus quis encorporar em sia a vida humana, por isso a cruz e por isso a ressurreição. Minha significativa experiência hoje no culto e minha longa trajetória da experiência da adoção me parecem lampejos da ressurreição como re-produção da vida que se dá de forma sobrenatural e não biológica.

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Caio Peres
Bodega de Bíblia

Mestre em Estudos Bíblicos e interessado em relacionar a Bíblia com tudo o que tem a ver com a experiência humana.