Imagem de Deus ou Imagem do Homem?
A relação entre os gêneros a partir de Gênesis 2:18–25 (Parte 3— “Auxiliadora Idônea”)
UM(A) PARENTE PODEROSO(A)
O relato da criação da humanidade em Gênesis 2 é muito peculiar diante de outros relatos contemporâneos a ele, inclusive de Gênesis 1. Sua peculiaridade não está em apresentar a criação da mulher e sua função na narrativa,[1] mas sim no fato de que a diferenciação dos gêneros é postergada para apresentar questionamentos sobre a identidade humana. É exatamente esse tempo entre a criação da humanidade e a diferenciação entre os gêneros que está toda a riqueza de Gênesis 2:18–25 e sua contribuição única a respeito da humanidade, sua identidade e sua função. É por isso que se faz necessário reafirmar um argumento do post Adam e Adamah, אָדָם (ʾādām), o ser humano primevo de Gênesis, não é diferenciado sexualmente ou por gênero. Como foi dito, isso significa ou que אָדָם (ʾādām) é andrógino ou sem sexo algum. Isso é até uma possibilidade para a característica do ser humano criado como “macho e fêmea” de Gênesis 1:26–28, ainda que a leitura mais comum seja a de que ali a humanidade consista de um par de humanos, “macho e fêmea”, de forma semelhante com o que é apresentado no Atra-ḫasīs, com seus sete pares de humanos. De qualquer forma, אָדָם (ʾādām), até aqui, não pode ser definido como homem, mas humanidade que carrega em si características ou potenciais que posteriormente serão diferenciados entre os gêneros.
Em praticamente todo o relato de Gênesis 2:18–25, a indiferenciação de gênero permanece. O ser humano primevo continua sendo chamado de אָדָם (ʾādām, 2:18, 19, 20, 21, 22). A primeira vez que temos uma referência diferente para o ser humano, usando um termo com especificidade de gênero é no versículo 22, quando o narrador chama um dos seres humanos formados por Deus de “mulher” (אִשָּׁה, ʾiššâ). Até aqui, falar de “homem” ou “mulher” vai contra o próprio texto bíblico.
Depois de instalar a humanidade no jardim que havia plantado e dado a instrução sobre quais frutos podia comer e não comer, Deus percebe um problema em sua criação. Após diversas afirmações de que sua criação era boa e até muito boa, em Gênesis 1, Deus fala pela primeira vez, “não é bom” (לֹא־טוֹב, lōʾ ṭôb). E o que não é bom é a solidão do ser humano. E aqui a decisão de Deus para responder a essa solidão humana que torna sua criação “não boa” é fazer um עֵזֶר כְּנֶגְדּוֹ (ʿēzer kǝnegdô). Obviamente, essa expressão é fundamental, pois é a definição divina da identidade e da função do novo ser humano a ser formado. Antes de abordar o seu significado, porém, precisamos ver a sequência do texto bíblico.
A sequência nos informa que Deus formou, a partir da אֲדָמָ֔ה (ʾădāmâ, “solo” ou “terra”), todos os animais do campo e todas as aves do céu (v. 19). Pelo desenvolvimento narrativo, a impressão é que os animais servirão como עֵזֶר כְּנֶגְדּוֹ (ʿēzer kǝnegdô). Essa não é uma opção absurda, já que o uso da אֲדָמָ֔ה (ʾădāmâ) faz com que animais e seres humanos compartilhem da mesma composição material, o que cria um vínculo de parentesco, como vimos no post Adam e Adamah. Considerando que o relato da criação de Gênesis 2 é introduzido com a fórmula, “essas são as gerações dos céus e da terra” (v. 4), humanidade e animais fazem parte de uma mesma classe de seres, uma mesma “geração”, ou seja, parentes, dos céus e da terra.[2] A possibilidade de algum ou alguns animais serem o עֵזֶר כְּנֶגְדּוֹ (ʿēzer kǝnegdô) da humanidade aumenta ainda mais quando consideramos as questões econômicas, especificamente o trabalho agrário que define a identidade e a função humanas no Enūma Eliš, no Atra-ḫasīs e mesmo em Gênesis 1–2. A tarefa agrária e a produção de recursos materiais para a subsistência humana dependiam, em culturas tradicionais, de uma relação de cooperação, mutualidade e até simbiose entre humanos e animais.[3] Seria completamente possível que o processo de formação dos animais e apresentação deles para que אָדָם (ʾādām) os conhecesse e os nomeasse servisse, exatamente, como essa descoberta de quais animais lhe serviriam como עֵזֶר כְּנֶגְדּוֹ (ʿēzer kǝnegdô). Ainda mais interessante é que na Epopeia de Gilgamesh, parece estar implícito que a proximidade e intimidade de Enkidu com os animais incluía relações sexuais, já que depois que Enkidu tem relações sexuais com uma mulher, Shamhat, os animais o rejeitam (Tabuinha 1, linhas 194–198). Mas em Gênesis 2:18–25, os animais não são suficientemente[4] עֵזֶר כְּנֶגְדּוֹ (ʿēzer kǝnegdô) para a humanidade (v. 20).
O texto não dá uma explicação direta do motivo para os animais não serem considerados suficientemente עֵזֶר כְּנֶגְדּוֹ (ʿēzer kǝnegdô). Mas existem muitas implicações importantes do processo de formação dos animais por Deus, sua nomeação por אָדָם (ʾādām), com a conclusão de que nenhum deles alcança o critério para ser considerado עֵזֶר כְּנֶגְדּוֹ (ʿēzer kǝnegdô) para a humanidade. Esse é um processo de reflexão e autoconhecimento, ou seja, é um processo pedagógico para a humanidade, o personagem literário e a audiência do texto. Trata-se de uma questão existencial e filosófica, o que é o ser humano?[5] Nós já sabemos, a partir de Gênesis 1 e 2, que parte da identidade da humanidade é seu parentesco com a terra, o que resulta em sua função e responsabilidade de trabalho agrário em cooperação e reciprocidade com a própria terra e seus elementos. Também sabemos que parte da identidade humana é seu parentesco com o próprio Deus, o que resulta em sua função representativa de realeza e sacerdócio para todos numa ordem horizontal e não hierárquica. Agora estabelece-se uma relação de parentesco entre a humanidade e os animais com a responsabilidade humana de discernir características comuns e diferentes, estabelecendo categorias gerais (identidade) e individualizadas (alteridade), resultando na nomeação. Identidade (parentesco), função (cooperação e reciprocidade) e alteridade (individualização), questões não abordadas na relação entre a humanidade e a terra ou entre a humanidade e a divindade, mas que surgem na relação da humanidade com os animais, serão fundamentais na diferenciação dos gêneros logo em seguida na narrativa.
Não somente temos aqui a introdução das questões fundamentais que Gênesis 2:18–25 se propõe a trabalhar a respeito das relações humanas e formação da comunidade humana, a partir da relação entre os gêneros, como também se apresenta já a lógica que as amarra: identidade relacional. Falarei mais sobre isso posteriormente, quando abordar o ato de nomeação da mulher (אִשָּׁה, ʾiššâ) pelo homem (אִישׁ, ʾîš), mas quero apontar algumas coisas a partir da nomeação dos animas por אָדָם (ʾādām). Nesse processo apresentado por Gênesis 2:19–20, a humanidade é apresentada com uma característica introspectiva e expansiva, típica da sua identidade relacional. Conhecer os animais, outros seres, é conhecer algo para além de si mesmo ao mesmo tempo que se conhece a si mesmo em relação ao outro. O ato de nomear os animais, אָדָם (ʾādām) fala tanto sobre o outro quanto de si mesmo, impondo sobre o outro uma identidade em relação a si mesmo, mas também impondo sobre si uma identidade em relação ao outro. Frederick Denny, professor de Estudos Religiosos na Universidade de Colorado, diz que “ser humano é nomear e ser nomeado, e assim possuir existência plena e a habilidade de se relacionar com o mundo de forma significativa”.[6] Na identidade relacional, não somente identidade e alteridade existem de forma dinâmica, mas nessa própria dinâmica já está incluída a função individual e social. O ato de nomear é um tipo de “parto social”, porque a nomeação é uma forma da comunidade humana discernir e estabelecer uma função ao indivíduo no drama social ao mesmo tempo que a integração do novo indivíduo na comunidade humana a torna diferente do que era.[7] É intrigante que Gênesis 2 trabalhe essas questões tão profundas da humanidade a começar pela sua relação com os animais e não entre seres humanos. Essa é uma forma tanto de conectar o ser humano aos animais quanto de o distanciar deles, afirmando que lhes falta algo que os faça ser עֵזֶר כְּנֶגְדּוֹ (ʿēzer kǝnegdô) para a humanidade.
Agora, sim, podemos falar especificamente sobre a expressão עֵזֶר כְּנֶגְדּוֹ (ʿēzer kǝnegdô). As traduções bíblicas que apresentam expressões depreciativas e já especificamente femininas, como a famosa “uma auxiliadora/ ajudadora idônea” (ARA, ACF) ou “uma ajudadora que lhe seja adequada/ semelhante a ele” (NAA, A21), refletem mais o seu próprio sexismo e misoginia do que o significado do texto bíblico.[8] Mesmo versões mais novas que eliminam o aspecto depreciativo, como a “polêmica” NVI23 com “uma aliada que lhe seja semelhante”, mantém a especificidade do gênero feminino, o que é problemático, como veremos logo. Algumas versões eliminam essa especificidade, como a NVI, “alguém que o auxilie e lhe corresponda” e a NVT, “alguém que o ajude e o complete”, mas mantém o aspecto depreciativo de auxílio e ajuda. É claro que a função de auxiliar e ajudar não aponta necessariamente para inferioridade, mas diante da história sexista e misógina que essa expressão carrega, qualquer ambiguidade pesa negativamente. Além disso, nenhuma dessas traduções chega perto do significado do texto bíblico.
A tradução da expressão no feminino é uma forma de estragar completamente o texto bíblico, eliminando a ambiguidade e o suspense do texto. Nem os personagens, nem a audiência, sabe a identidade do עֵזֶר כְּנֶגְדּוֹ (ʿēzer kǝnegdô). Ele poderia ser um animal, mas descobrimos que não é. Ao traduzir a expressão no feminino, as versões bíblicas eliminam o processo de reflexão, autoconhecimento e discernimento a partir das relações humanas que é tão importante para o entendimento do texto. A expressão עֵזֶר כְּנֶגְדּוֹ (ʿēzer kǝnegdô) é gramaticalmente masculina. Se o texto quisesse já impor o gênero feminino usaria o particípio feminino do verbo עזר, עֹוזֵרֵת (ʿôzērēt), ou o feminino do substantivo עֵזֶר, עֶזְרָה (ʿezrâ).[9] Existem duas implicações importantes disso para a discussão complementarista.
Primeiro, não há nenhum fundamento para considerarmos o gênero gramatical masculino de אָדָם (ʾādām) como evidência que o ser humano primevo era homem. Nós já vimos no post Adam e Adamah que gênero gramatical e gênero social não são a mesma coisa e que o próprio texto aponta para a indiferenciação de gênero do ser humano primevo, o que é bem captado pela tradição rabínica. Isso significa que mesmo o sufixo masculino (וֹ, ô) que aparece em כְּנֶגְדּוֹ (kǝnegdô) não implica na identidade masculina de אָדָם (ʾādām), que é o referente do sufixo. E aí temos a segunda e mais interessante implicação. Ao usar o gênero masculino para uma expressão que identifica um ser humano que será chamada de “mulher” (אִשָּׁה, ʾiššâ) — lembrando que os personagens da história e a audiência não sabem disso — , somos confrontados com a relação entre o אָדָם (ʾādām) e o ser humano que será chamado de “homem” אִישׁ (ʾîš). Assume-se, por causa do uso posterior de אָדָם (ʾādām) como nome do אִישׁ (ʾîš), que os dois são a mesma pessoa ou o mesmo ser.[10] Posteriormente vou considerar a questão de אָדָם (ʾādām) como nome do personagem “homem”. Mas o uso do gênero gramatical masculino para uma expressão que identifica um ser humano, que já sabemos é do gênero feminino, significa que o novo processo criativo divino não é sobre a formação de um novo ser humano feminino a partir de um masculino, mas da formação de dois novos seres humanos, agora diferenciados por gênero, a partir de um ser humano primevo que nãoo pode ser qualificado por qualquer gênero. Isso ficará mais claro quando lidarmos com a intervenção divina em si que fará a diferenciação de gênero em dois seres humanos (vv. 21–22).
Quanto ao significado específico da expressão עֵזֶר כְּנֶגְדּוֹ (ʿēzer kǝnegdô), temos que lidar com os dois termos que a formam. O mais fácil deles é עֵזֶר (ʿēzer), com um significado básico de alguém que ajuda, socorre. Que o seu significado não é depreciativo nem invoca inferioridade, como o termo “auxiliar” comunica, até mesmo intérpretes complementaristas ignorantes, como Yago Martins, são capazes de reconhecer hoje em dia. O argumento mais simples e comum para eliminar esse aspecto depreciativo é apontar para o fato de que o uso do substantivo na Bíblia tem Deus como maior referente (Êx 18:4; Dt 33:7, 26, 29; Sl 20:2;33:20; 70:5; 115:9, 10, 11; 121:1, 2; 124:8; 146:5; Os 13:9). No entanto, o status daquele que é referido como עֵזֶר (ʿēzer) varia em suas ocorrências, sendo 72% dos casos alguém de status superior ajudando/ socorrendo alguém de status inferior, 18% dos casos em que aquele que ajuda e o que é ajudado são de status iguais, e 10% em que aquele que ajuda tem status inferior ao que é ajudado. Por isso, o termo em si não define o status do referente e complementaristas e igualitaristas podem encontrar justificativas para suas posições aqui.[11]
Uma possibilidade interpretativa se abre quando é reconhecido que o termo עֵזֶר (ʿēzer) pode refletir duas raízes hebraicas distintas. A primeira raiz, com a primeira letra hebraica ע (ʿayyin) sem som, é a mais comum na literatura bíblica e segue o significado tradicional de ajuda ou socorro. O problema é que o aspecto sem som de ʿayyin não corresponde à sua característica mais antiga, que é a de um som gutural que corresponderia graficamente a ghayyin. Assim, עֵזֶר (ʿēzer), com ghayyin, teria o significado de “ser forte” ou “força” a partir de termos cognatos em árabe e ugarítico.[12] Essa distinção entre duas consoantes, ʿayyin e ghayyin, se perdeu em hebraico por causa de transformações na língua quando essa passou a ser escrita, usando o mesmo símbolo/ letra para as duas.[13] Pelo contexto, porém, é possível diferenciar esses dois significados. Um exemplo claro em que עֵזֶר (ʿēzer) significa “ajuda/ socorro” é Salmos 70:5: “Eu sou pobre e necessitado. Deus! Venha logo a mim. Você é meu socorro e minha libertação, não demore”. O paralelismo entre עֵזֶר (ʿēzer) e “libertação”, assim como o contexto de pobreza e necessidade, sugerem claramente o significado de socorro. Existem muitos exemplos, porém, em que distinguir entre um significado e outro é impossível, como Salmos 20:3: “Do santuário, que ele envie sua ajuda/ força, e seu sustento de Sião”. E, obviamente, existem exemplos em que o significado “ser forte” ou “força” é bem claro, como em Deuteronômio 33:29 e Salmos 33:20 em que עֵזֶר (ʿēzer) aparece junto com “escudo”, um instrumento militar.
Por que o significado de força para עֵזֶר (ʿēzer) é melhor aqui em Gênesis 2:18? Porque o estado declarado por Deus sobre o ser humano primevo é לְבַדּוֹ (lǝbaddô). A ênfase aqui não é um estado de necessidade pontual que precisa de ajuda ou socorro, como no caso de Salmos 70:5, citado acima. O estado do ser humano primevo é de isolamento, como um pedaço restante de algo que deveria ser completo (ver, por exemplo, 1 Reis 19:10). Nessa condição de isolamento, o ser humano primevo é apresentado com uma deficiência ou fraqueza. Uma comparação com a Epopeia de Gilgamesh pode corroborar ainda mais com a escolha de עֵזֶר (ʿēzer) como força que supri a condição de fraqueza original do ser humano primevo. A característica mais importante de Enkidu, tornando-o uma companhia adequada para Gilgamesh, é o fato de ele ser tão forte ou poderoso quanto Gilgamesh. O estado de Gilgamesh, como grande rei capaz de exercer domínio sobre seus subjugados a ponto de oprimi-los e violentá-los pelo exercício do seu poder, no fim, é um estado de fraqueza e deficiência, que é suprido pela companhia de um par que o corresponda adequadamente. Essa é a forma que a Epopeia de Gilgamesh lida com as questões de identidade e alteridade, formação da comunidade humana, a partir de uma identidade comum entre dois homens-guerreiros-deuses com força igual, mas culturas diferentes, como já vimos na parte 2 de Imagem de Deus ou Imagem do Homem?
Gênesis 2:18–25, claro, vai apresentar uma resposta diferente para a questão, o que vai ficar claro ao longo dessa série de posts. Mas além corroborar a tradução de עֵזֶר (ʿēzer) como força, a Epopeia de Gilgamesh também deixa claro que a deficiência apresentada pelo ser humano primevo só pode ser suprida por uma companhia que forma uma comunidade humana, tornando o estado humano menos vulnerável, ou seja, mais forte. De forma muito interessante, essa força da comunidade humana não surge pela multiplicação de novos seres humanos, mas pelo estabelecimento de uma forma específica de relação humana, como veremos posteriormente.[14] Ironicamente, de um ponto de vista complementarista, ou sexista de forma geral, em que o homem é visto como representante forte e poderoso, a atestação divina sobre o estado do ser humano primevo indica fraqueza e deficiência.[15] Somente com a intervenção divina, que inclui o surgimento da mulher, a humanidade poderá ser caracterizada pela força e potência.
Ficará claro que a força da humanidade a partir da relação entre os gêneros tem muito a ver com as relações familiares ou domiciliares e a divisão de tarefas entre os gêneros para produção de recursos materiais para seu sustento. A solidão do ser humano primevo o torna fraco e tal fraqueza é superada pelo estabelecimento de uma companhia capaz de formar comunidade, correspondendo cada um à força do outro. Por isso os animais são apresentados como possíveis respostas para a solidão humana, já que é possível formar uma comunidade entre humanos e animais, além de a cooperação entre seres humanos e animais, em grande parte, ser relacionada com a produção agrária. O problema dos animais não é que eles não são capazes de vida em comunidade com humanos, como um עֵזֶר (ʿēzer), uma força, mas porque eles não correspondem adequadamente à força do ser humano. Os animais, esses sim, são força complementar ao ser humano e não força correspondente. Daí que essa força que supre a solidão humana, precisa de uma qualificação, ela precisa ser כְּנֶגְדּוֹ (kǝnegdô).
Enquanto a discussão entre complementaristas e igualitaristas, a respeito de Gênesis 2:18, se concentrou no termo עֵזֶר (ʿēzer), a questão central para entender a lógica bíblica a respeito das relações humanas está no termo כְּנֶגְדּוֹ (kǝnegdô). Esse termo é formado por três partes distintas: a preposição כ (k), o substantivo נֶגֶד (neged) e o sufixo pronominal וֹ (ô). A preposição cumpre a função comparativa (“como”), o sufixo estabelece a quem o termo está sendo comparado “ele”, ou seja, אָדָם (ʾādām) — lembrando que o masculino aqui não tem nada a ver com gênero social, mas gramatical. A combinação da preposição com o sufixo marca uma relação de semelhança ou correspondência.[16] Assim, o plano divino para suprir a necessidade humana em sua condição de solidão é criar uma força que seja comparável à força de אָדָם (ʾādām). E é o substantivo que está no meio do termo כְּנֶגְדּוֹ (kǝnegdô) que vai estabelecer a identidade dessa força. Dessa forma, כְּנֶגְדּוֹ (kǝnegdô) não é um adjetivo. Os massoretas, rabinos medievais que preservaram o texto hebraico e acrescentaram vários sinais interpretativos ao texto, especialmente os sinais de vocalização, perceberam isso ao incluir um sinal que marca a separação entre עֵזֶר (ʿēzer) e כְּנֶגְדּוֹ (kǝnegdô). Dessa forma, o texto deveria ser traduzido assim: “farei para ele [אָדָם, ʾādām] uma força, como o seu נֶגֶד (neged)”.[17] A opção da NVI capta bem essa estrutura, apesar da terrível tradução do hebraico: “alguém que o auxilie e lhe corresponda”.
O termo נֶגֶד (neged) aparece somente aqui e no v. 20, na Bíblia, o que dificulta sua interpretação e tradução. Algumas versões modernas da Bíblia entendem נֶגֶד (neged) de uma forma bem concreta a partir do seu significado mais primário: “em frente a”. Em português, a Almeida Revista e Corrigida trás “uma adjutora que esteja como diante dele”. No entanto, quase todas as versões modernas optam por traduções conceituais, como “adequada” (A21), “semelhante” (NAA, NVI23), “correspondente” (NVI). Nessas opções, é o contexto e os pressupostos dos tradutores que, para o bem ou para o mal, ditam a interpretação. Não há nada de errado nisso, já que a própria língua hebraica, como qualquer língua, parte de um aspecto concreto, material, físico, para estabelecer significados conceituais. Por isso, a raiz que forma o substantivo נֶגֶד (neged), também forma o substantivo נָגִיד (nāgîd), “líder, governante, príncipe”, e o verbo נָגַד (nāgad), “declarar, revelar”.[18] Não é difícil entender como a posição física de estar “em frente a” fundamente os significados mais conceituais de liderança e de revelação. Será, então, que עֵזֶר כְּנֶגְדּוֹ (ʿēzer kǝnegdô) poderia indicar “uma força, como o seu líder”?
A sugestão é tentadora de um ponto de vista ideológico crítico ao complementarismo, já que a análise sintática da expressão corrobora fortemente essa opção. Contudo, apesar de sintaticamente possível e até razoável, essa opção não tem fundamento exegético, ou seja, não está em conformidade com o propósito ideológico e teológico mais amplo de Gênesis 2. (Obviamente, não foi por isso que essa opção nunca foi cogitada entre tradutores bíblicos, e sim por causa dos seus pressupostos sexistas e misóginos.) Como temos visto até aqui, a formação da humanidade no texto bíblico é crítico desse tipo de relação hierárquica, especialmente numa ordem social de privilégio da realeza. Mais ainda, Gênesis 1 e 2 buscam estabelecer a identidade humana a partir de fortes fundamentos em relações de parentesco, entre humanidade e Deus, e entre humanidade e a terra. E é isso que temos aqui também no substantivo נֶגֶד (neged).
Um dos significados conceituais derivados do significado concreto, material, de proximidade física é “parente”. Esse significado pode ser corroborado pela relação etimológica entre נֶגֶד (neged) e outro termo hebraico, נֶכֶד (neked), “filho, descendente” (e.g., Gênesis 21:23). Uma origem etimológica compartilhada entre os dois termos é possível, já que em geʾez, a língua etíope clássica com relação distante com o hebraico, o termo cognato nagad significa “tribo, clã, parente”.[19] Ziony Zevit faz uma interessante observação ao dizer que a partir dessa origem etimológica compartilhada corroborada pelo etíope clássico, a língua hebraica se desenvolveu de forma a diferenciar duas formas de relação de parentesco atestadas na diferente grafia e significado de נֶגֶד (neged) e נֶכֶד (neked): o último seria uma relação de parentesco por meio de linhagem vertical, ou seja, relação direta dos filhos e seus pais, enquanto o primeiro indica uma relação de parentesco horizontal, ou seja, irmãos e primos.[20]
Diante de toda essa longa discussão, a melhor tradução de Gênesis 2:18 seria: “Não é bom que o ser humano viva para ser sozinho, farei para ele uma força, um parente como ele mesmo”. A força da humanidade é correspondida na comunidade humana e não no individualismo ou numa hierarquia rígida que o isola das outras pessoas e o coloca em condição de abusar do próprio poder (lembra de Gilgamesh?). Como veremos posteriormente, é a relação de parentesco entre as duas criaturas que surgirão a partir dessa intervenção divina criativa, que será destacada a cada ponto do desenrolar da narrativa a partir daqui. É como se a expressão עֵזֶר כְּנֶגְדּוֹ (ʿēzer kǝnegdô) formasse o fundamento que será ampliado e aprofundado pelo relato de como um segundo ser humano foi criado, pelo ato de nomeação de um ser humano por outro, pela identificação de um ser humano pelo outro como osso dos meus ossos e carne da minha carne, assim como pela intervenção do narrador para estabelecer a unidade dos dois seres humanos. Esses são os próximos tópicos a seres abordados nos próximos posts.
Uma breve conclusão é útil aqui. Gênesis 1 e 2 se esforçam e muito para estabelecer a identidade e a função humanas a partir do estabelecimento da sua relação de parentesco com Deus e com o solo. Podemos e devemos entender que essas duas relações de parentesco da humanidade segue um tipo de linhagem vertical. Somos derivados de Deus, formando uma comunidade religiosa, e somos derivados do solo, formando uma comunidade ecológica. Todos os seres humanos compartilham igualmente dessa relação de parentesco. A criação de um ser humano primeiro, postergando a criação de um segundo ser humano, é importante para definir que tipo de relação definirá e formará a comunidade humana. O ser humano primevo passa por um processo de autopercepção a partir da sua relação com os animais, que o leva a questões sobre identidade, função e alteridade. A definição divina de um novo ser humano como עֵזֶר כְּנֶגְדּוֹ (ʿēzer kǝnegdô) revela algo sobre a humanidade como um todo e não somente sobre esse novo ser humano. A humanidade depende de comunidade para ser forte. O isolamento, inclusive o isolamento que a hierarquia promove, é fraqueza. A formação da comunidade humana se dá no estabelecimento de relacionamentos de parentesco horizontais. Em outras palavras, a comunidade humana não é marcada por relações de linhagem vertical, ou seja, pela reprodução genética, mas pelo vínculo de parentesco que poderíamos chamar de irmandade. O ser humano primevo, isolado, sem alguém que o corresponda, é incapaz de produzir parentes genéticos, mas pode, sim, produzir parentes adotivos (isso será explorado melhor posteriormente). É esse tipo de parentesco que fundamenta a comunidade humana, o tira do isolamento do individualismo ou da hierarquia e supre sua fraqueza ou deficiência. Por isso mesmo a gente ainda não tem uma diferenciação de gêneros aqui, estamos diante de dois seres humanos indiferenciados por gênero. Mas curiosamente ambos são referenciados pelo gênero masculino gramatical. A diferenciação de gêneros vai ser muito importante exatamente para estabelecer a comunidade humana e a relação de parentesco a partir de identidade e alteridade. Especialmente uma alteridade que menospreza a identidade masculina guerreira, por assim dizer, como no caso da Epopeia de Gilgamesh, e se foca nas relações e no cotidiano doméstico, como veremos posteriormente.
Por que essa minha ênfase na relação de parentesco em contraste com a relação de parentesco biológico? Em primeiro lugar, porque o próprio texto bíblico não apresenta a formação da comunidade humana a partir de uma atividade reprodutiva biológica. Isso seria impossível, já que existe somente um ser humano. A formação da comunidade humana começa com uma intervenção divina para formação de um novo ser humano, mas é completada somente a partir do estabelecimento de uma relação de apego entre esses dois seres humanos, um apego típico do vínculo de parentesco adotivo, já que a relação deles não se deu por linhagem. Tudo isso ficará mais claro posteriormente. De qualquer forma, em segundo lugar, mesmo de um ponto de vista neurológico, psicológico e antropológico, a linhagem genética não é capaz de formar comunidade humana. As relações biológicas entre pais e filhos, irmãos e irmãs, avôs e netos, primos e primas, tios e sobrinhos, somente podem formar parentesco e comunidade quando estes se adotam mutuamente por meio de apego, aceitam a relação familiar e se esforçam para estreitar e manter esses vínculos de parentesco.[21] Até achei interessante, nesse sentido, a opção de tradução da versão em português de O Livro: “O Senhor Deus achou que não era bom que o homem vivesse sozinho e decidiu arranjar-lhe uma companheira que vivesse com ele”. Aqui está, de fato, um tipo de parentesco horizontal baseado no vínculo de apego da adoção: um companheiro que vive junto. Posteriormente falarei mais sobre a formação do vínculo de parentesco a partir de experiências compartilhadas numa relação de simbiose. Mas adianto que é esse tipo de parentesco que será capaz de fazer com que os dois seres humanos que serão introduzidos um ao outro na narrativa se tornem parentes, família, comunidade. Com isso, a atribuição do outro ser humano como עֵזֶר כְּנֶגְדּוֹ (ʿēzer kǝnegdô) aponta para um processo e não uma identidade ou característica pontual. A formação de um “parente poderoso” depende do estabelecimento de vínculos de parentesco que se formam numa relação contínua. Ao ser humano primevo é negado pela narrativa bíblica reivindicar primazia e atribuir aos outros seres humanos algum tipo de derivação secundária. Isso seria um reflexo de ideologias hierárquicas de realeza, que é o exato o posto que o texto bíblico se propõe. Todas as relações humanas devem ser marcadas por um vínculo de parentesco horizontal e não vertical. E isso será afirmado de forma mais clara e explícita no texto bíblico a partir da relação entre os gêneros.
NOTAS
[1] É verdade que o Atra-ḫasīs apresenta a formação da mulher, mas a mulher não é uma personagem com função. Nesse sentido, Mark Smith está certo em dizer que essa característica de Gênesis 2–3 não existe em outros relatos mesopotâmicos da criação. Ver Mark S. Smith, The Genesis of Good and Evil: The Fall(out) and Original Sin in the Bible (Louisville: Westminster John Knox Press, 2019), 53.
[2] Cf. Mark G. Brett, Genesis: Procreation and the Politics of Identity (London: Routledge, 2000), 31.
[3] Cf. Ziony Zevit, What Really Happened in the Garden of Eden? (New Haven: Yale University Press, 2013),130.
[4] A expressão hebraica, nesse contexto, é mais significativa do que simplesmente “não havia”, “não encontrou”, não achou”. O verbo מצא implica numa ação de alcance, como a mão que alcança algo para obtê-lo. O texto, portanto, reconhece certo potencial na relação entre os animais e o ser humano primevo, mas não o suficiente.
[5] Ver Barbara Deutschmann, Creating Gender in the Garden: The Inconstant Partnership of Eve and Adam (Bloomsbury Publishing, 2022), 38–39.
[6] Frederick Denny, “Names and Naming”, Encyclopedia of Religion. Disponível em <https://www.encyclopedia.com/environment/encyclopedias-almanacs-transcripts-and-maps/names-and-naming> Acesso em 26 de setembro de 2024.
[7] Ver Søren Lorenzen, Spoken into Being: Self and Name(s) in the Hebrew Bible (Tübingen: Mohr and Siebeck, 2022), 108, que cita Bern Janowski, Hans Kippenberg e Marcel Mauss.
[8] Ver Chingboi Guite Phaipi, The Bible and Patriarchy in Traditional Tribal Society: Rereading the Bible’s Creation Stories (London: T&T Clark, 2023), 81. Definitivamente este não é um problema só das versões protestantes baseadas no texto de João Ferreira de Almeida. A Bíblia de Jerusalém apresenta, “uma auxiliar que lhe corresponda”, e a Tradução Ecumênica da Bíblia, “uma ajuda que lhe seja adequada”.
[9] Zevit, What Really Happened in the Garden of Eden?, 134.
[10] Ver Deutschmann, Creating Gender in the Garden, 37; Karalina Matskevich, Construction of Gender and Identity in Genesis: The Subject and the Other (London: T&T Clark, 2019), 19. Deutschmann considera que o sufixo masculino é uma referência à identidade masculina de אָדָם (ʾādām), enquanto o gênero masculino do termo עֵזֶר é uma referência à possibilidade de que o עֵזֶר כְּנֶגְדּוֹ (ʿēzer kǝnegdô) também tenha identidade masculina. Já Matskevich afirma que o אִישׁ (ʾîš) mantém a identidade de אָדָם (ʾādām), inclusive sua masculinidade.
[11] William J. Webb, Slaves, Women & Homosexuals: Exploring the Hermeneutics of Cultural Analysis (Downers Grove: InterVarsity Press, 2001), 128.
[12] R. David Freedman, “Woman, a Power Equal to Man”, Biblical Archaeology Review 9.1 (1983): 56–57.
[13] Freedman, “Woman, a Power Equal to Man”, 56.
[14] Deutschmann, Creating Gender in the Garden, 39.
[15] Ver Brett, Genesis, 31.
[16] Phaipi, The Bible and Patriarchy in Traditional Tribal Society, 83–84.
[17] Cf. Zevit, What Really Happened in the Garden of Eden?, 135.
[18] Ver Victor P. Hamilton. Genesis 1–17. The New International Commentary on the Old Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1990), 175, n. 4.
[19] Zevit, What Really Happened in the Garden of Eden?, 135.
[20] Zevit, What Really Happened in the Garden of Eden?, 134–35.
[21] De um ponto de vista neurológico e psicológico, fundamentalmente baseado ou em diálogo com teoria do apego (inglês: attachment theory), ver Louis Cozolino, The Neuroscience of Human Relationships: Attachment and the Developing Social Brain (2a edição; New York: W. W. Norton and Company, 2014); Pascal Vrtička, “The Social Neuroscience of Attachment”. In: A. Ibáñez, L. Sedeño e A. M. García (editores), Neuroscience and Social Science: The Missing Link (Cham: Springer, 2017), pp. 95–119; Judi Walsh, “Definitions matter: if maternal-fetal relationships are not attachment, what are they?” Archives of Women’s Mental Health 13 (2010): 449–451. De um ponto de vista antropológico da formação de parentesco como sempre sendo adotivo, ver Janet Carsten, After Kinship (Cambridge: Cambridge University Press, 2004); Marshall Sahlins, What Is Kinship and Is Not (Chicago: The University of Chicago Press, 2013). Para um diálogo entre neurociência, psicologia e antropologia, ver Nicholas J. Allen, Hilary Callan, Robin Dunbar e Wendy James (editores), Early Human Kinship: From Sex to Social Reproduction (Oxford: Blackwell, 2008).