Só tem um erro em ‘O Mecanismo’, não entender o que é uma narrativa.
Todos já devem saber, mas retomando. Dia 23 de março saiu a série da Netflix inspirada na Lava Jato “O Mecanismo” dirigida por José Padilha. Com uma certa distorção de fatos, permitida pelo anúncio no início de todos os capítulos, há dois lados na crítica que efervesceu.
Primeiro, um possível exagero pela verificação de fatos, por parte da esquerda, e um esquecimento desnecessário do objetivo inicial da série. E segundo, uma distorção (deixemos de lado, porque não importa para o nosso caso, a questão de intencionalidade), dos fatos que são referenciados pela série com o caso real.
Mas antes, por que falar disso? Pode parecer, e por um tempo parecia ser, um exagero crítico e fora da nossa realidade. Mas menos como uma crítica á marca, ao diretor, ela pode servir muito para uma reflexão.
QUAL NARRATIVA FOI CRIADA
No dia do lançamento da série, em uma entrevista publicada pelo canal Ligado em Série, José Padilha responde a Bruno Carvalho: “Estou pouco me importando com as reações”. Na mesma entrevista, não só ele mais também Selton Mello coloca que o objetivo da série é alertar sobre o mecanismo da corrupção, e não reproduzir os fatos, ou trazer algum culpado da história.
Até aí tudo bem e a construção de uma narrativa pode assumir o papel de mostrar isso, independentemente de ser uma leitura da verdade ou não. Acontece que mesmo que não tenha sido o objetivo, ela apenas alimentou mais uma vez a disputa de esquerda e direita do cenário da política brasileira.
É só perceber que a discussão sobre a série não chega nem perto de tratar do mecanismo da corrupção brasileira.
Acontece que a série, pelas constantes falas dos envolvidos, buscava desenvolver uma narrativa sobre a corrupção brasileira, mostrando ela como um mecanismo que atinge todos os lados e dimensões relacionadas ao sistema político. Um esforço que qualquer brasileiro aplaudiria.
Porém, ao contrário disso, alimentou o debate já existente entre a esquerda e a direita no Brasil, tornando isso o centro da discussão.
Ninguém mais entrevista o diretor, os atores, para falar sobre corrupção (o tema desejado da série), mas sim sobre o que pensam sobre todas as reações e manifestações que surgiram.
QUAL O PROBLEMA NA NARRATIVA
A grande questão é que os criadores parecem ter esquecido que uma narrativa — e não é estranho que um artista não queira aceitar isso — não pertence ao seu criador, mas sim ao universo em que ela é inserida.
Ou seja, não adianta Padilha criticar, dizer que não era o objetivo e falar que esperava mais da esquerda intelectual. A narrativa a qual a série busca não se forma e nem se encerra somente nela mesmo. Começa fora, nas entrevistas, nas falas, na crítica, tudo isso faz parte da narrativa. Não há como separar esses os dois mundos.
Esquecer que uma narrativa não pertence aos seus criadores e sim ao mundo é o verdadeiro erro.
E isso não acontece porque a série não retratou a verdade ou qualquer outra questão, mas porque, não importa qual foi a intenção, a distorção de fatos alimentou um anseio da esquerda de injustiça e perseguição que ao ser manifestada, faz a direita reagir. Isso poderia e deveria ter sido premeditado e mesmo não tendo acontecido, um ataque a crítica não vai mudar a sensação de perseguição da esquerda, apenas alimenta.
Enquanto isso, parafraseando o próprio diretor da série, “o mecanismo da corrupção agradece”, mas acredite, Padilha, Netflix, os atores não podem se colocar fora dessa construção, pois eles são parte, não como personagens, mas atores, da narrativa que se criou.
E O QUE FICA PARA NÓS?
Em relação a narrativas?
Toda a narrativa construída não é uma peça fechada, não é isenta dos fatos externos. Porque a narrativa se cria, se modifica e tem seu sentido a partir dos fatos internos sim (o que foi feito), mas relacionados aos fatos externos (o que se está falando, criticando e acontecendo). Isso é um pouco da complexidade de uma narrativa, e não uma série de episódios.
Em relação a crises de percepção?
Não se pode culpar os outros e simplesmente esperar uma racionalização da crítica a seu favor. Uma crise de percepção como essa, com pedido de boicote, deve ser analisada de forma mais pragmática. Qual é a causa disso? Porque isso está acontecendo? O que eu posso fazer para mudar isso? Se a causa é um senso de injustiça e distorção (irresponsável, intencional, ou até um erro), como eu faço para mudar isso? Isso deve ser pensado, como marca, diretor, artista, quando você realmente procura atingir o seu objetivo inicial.
Oficialmente, a empresa responde “é uma série dramática e de ficção inspirada em eventos reais acontecido no Brasil”. E Padilha ironizando, como se poderia imaginar de um artista.
Aproveitando o tema, e não é uma surpresa isso acontecer, já que em tempos com os de hoje a construção de narrativas — e até as disputas por elas — são constantes, em breve o GPRS estará com um projeto incrível na rua debatendo exatamente isso: narrativas. Entre em contato para saber mais: bo@gprs.com.br
Escrito por Nicolás de Arriba, voluntário no Grupo de Planejamento RS e planejamento na Escala.
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